Solvência II e IFRS 17: Da Complexidade à Vantagem Competitiva
Nuno Matos, Sócio da Carrilho & Associados, SROC, defende que as empresas de seguros devem estar prontas para transformar a complexidade regulatória numa vantagem competitiva.
A Solvência II entrou em vigor a 1 de janeiro de 2016, introduzindo pela primeira vez um modelo económico padrão obrigatório para a avaliação da solvência das empresas de seguros na União Europeia (EU). Este marco regulatório trouxe uma mudança significativa na forma como as empresas de seguros gerem os seus riscos e capital. Utilizando princípios de gestão de riscos quantitativos, a Solvência II exige requisitos de capital de solvência, determinados tendo por base dados sistemáticos categorizados auditáveis, com um nível de confiança de 99,5%, garantindo assim a solvência de cada empresa de seguros e, inerentemente, a resiliência do setor segurador e a macro estabilidade do sistema financeiro.
Embora sempre tenha existido a possibilidade em Solvência II das empresas de seguros utilizarem parâmetros específicos (USPs – User Specific Parameters) e desenvolverem modelos internos (parciais ou totais) para calcular os seus requisitos de capital de solvência de forma mais precisa e adaptada à sua realidade, a maioria optou por não seguir esse caminho, porventura pelas seguintes razões:
- Complexidade e Custo: Desenvolver e implementar USPs e/ou modelos internos (parciais ou totais) requer um investimento significativo em termos de tempo, recursos humanos e financeiros;
- Benefícios Percebidos: No contexto do binómio custo/benefício, algumas empresas de seguros terão concluído não existirem vantagens significativas em termos de poupança de capital ao utilizar USPs e/ou modelos internos (parciais ou totais), tendo porventura tão somente ponderado os elevados custos de desenvolvimento e manutenção associados, já que sem a implementação desses modelos, não é possível quantificar a poupança de capital em comparação com os modelos e parâmetros padrão;
- Capacidade Técnica: Desenvolver modelos internos robustos requer conhecimentos e capacidade técnica avançada, sobretudo em modelização estatística, modelização financeira e gestão quantitativa de riscos;
- Regulamentação e Aprovação: A utilização de USPs e/ou modelos internos (parciais ou totais) exige a aprovação da Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões (ASF), o que pode ser um processo longo e complexo, pelo que terão preferido utilizar os modelos e parâmetros padrão, obviando questões regulatórias;
- Governo e Cultura Organizacionais: A adoção de USPs e/ou modelos internos (parciais ou totais) exige mudanças significativas no governo corporativo, na cultura organizacional, nos processos e nos controlos-chave das empresas de seguros.
Contudo, mais recentemente, em 1 de janeiro de 2023, a IFRS 17 e a IFRS 9 vieram “forçar” a introdução de modelos económicos internos para efeitos de relato financeiro. Estas normas internacionais de relato financeiro requerem que as empresas de seguros utilizem modelos internos para mensurar e relatar os seus ativos e passivos técnicos e financeiros (a IFRS 17, em particular, estabelece novos requisitos para o reconhecimento, mensuração, apresentação e divulgação de contratos de seguros; enquanto a IFRS 9 trata da classificação e mensuração de instrumentos financeiros, perdas por imparidade e contabilidade de cobertura). Estes modelos internos que sustentam o relato financeiro baseiam-se amplamente em séries temporais históricas de parâmetros não financeiros e financeiros, que refletem as condições atuais de mercado e, bem assim, expectativas futuras de mercado, que ao incorporarem igualmente informações e cenários prospetivos, capturam a incerteza e a volatilidade inerente à estimativa estocástica dos fluxos de caixa futuros, resultantes dos contratos de seguro e instrumentos financeiros vigentes à data de cada relato financeiro.
A utilização combinada de dados históricos e projeções futuras nestes modelos internos permite que as empresas de seguros não só giram a realidade atual de forma mais efetiva, como também antecipem possíveis mudanças no mercado, além de proporcionarem uma visão mais holística, integrada e dinâmica da gestão dos riscos, evidenciada, entre outros exemplos ilustrativos:
- No apoio do processo de autoavaliação de riscos e de solvência (ORSA), conforme exigido por Solvência II, garantindo que as empresas de seguros prospetivamente mantêm níveis adequados de capital no futuro previsível;
- Numa tarifação mais dinâmica, que obvie grupos de contratos onerosos, levando a ajustamentos mais regulares dos prémios, que capturam de forma mais precisa os riscos e as condições de mercado;
- No provisionamento estocástico, melhorando a precisão das reservas técnicas e a gestão dos passivos por contratos de seguro;
- Na introdução de uma gestão proativa e prospetiva da gestão do risco de crédito. De facto, a complementaridade entre a IFRS 17 e a IFRS 9 com o framework de Solvência II veio ajudar a consubstanciar as funções de gestão de riscos e atuarial como pilares do bom governo e da gestão sã e prudente das empresas de seguros.
Ao utilizarem modelos internos que sustentam o relato financeiro, as empresas de seguros estão concomitantemente a calibrar parâmetros específicos, que poderão ser igualmente utilizados para fins de Solvência II. Estes parâmetros específicos são regularmente ajustados para refletir as características únicas do portfolio da empresa de seguros, quer dos ativos quer dos passivos técnicos e financeiros, permitindo uma avaliação mais precisa dos riscos e respetivos requisitos de capital de solvência numa base económica.
Como referido, os modelos internos para efeitos de solvência são projetados para garantir que as empresas de seguro mantêm um nível adequado de capital para cobrir os riscos a que estão expostas com um nível de confiança de 99,5%, o que significa que devem manter capital suficiente para cobrir as suas obrigações em 99,5% dos cenários possíveis num horizonte de um ano. Como já mencionado, este elevado nível de confiança é necessário para assegurar a proteção dos segurados e a estabilidade financeira, mesmo em condições de mercado extremamente adversas. Os modelos internos que sustentam o relato financeiro, por outro lado, pretendem reportar de uma forma verdadeira e apropriada, em todos os aspetos materialmente relevantes, a situação patrimonial e o desempenho financeiro da empresa de seguros. Embora a precisão seja igualmente relevante, o nível de confiança é manifestamente menor do que o exigido para efeitos de solvência, pois o foco está centrado na imagem verdadeira e apropriada do relato financeiro (princípio da materialidade) e não na proteção dos segurados e na estabilidade financeira. Enquanto os modelos de solvência consideram um horizonte de um ano, os modelos de relato financeiro podem ter uma perspetiva mais curta ou mais longa, dependendo da duration dos ativos e passivos técnicos e financeiros mensurados.
No contexto de Solvência II, a Autoridade Europeia dos Seguros e Pensões Ocupacionais (EIOPA) fornece as estruturas de taxas de juro sem risco que são utilizadas para mensurar as provisões técnicas resultantes dos contratos de seguro. Para efeitos de relato financeiro, a IFRS 17 “Contratos de seguro” prescreve que as empresas de seguro têm a opção de utilizar duas abordagens diferentes, a saber:
- Abordagem bottom-up, onde a uma curva de rendimento sem risco é adicionada um prémio de liquidez para refletir as características dos fluxos de caixa das obrigações dos contratos de seguro; ou
- Abordagem top-down, onde a taxa de desconto é derivada da yield de uma carteira de investimentos de referência, à qual são deduzidos os riscos de crédito e outros riscos não relacionados com a liquidez.
Não obstante estas diferenças, perfeitamente identificadas e reconciliáveis, as empresas de seguros poderão, e porventura deverão, usar os mesmos modelos e pressupostos para efeitos de relato financeiro e de Solvência II, reduzindo assim a complexidade e eventuais inconsistências entre os relatos financeiros e o regulamentar, aumentando a transparência e a comparabilidade entre o relatório e contas e os relatórios de solvência, ambos objeto de certificação. A harmonização dos modelos e pressupostos utilizados para diferentes fins, o de relato financeiro e o regulamentar, pode igualmente simplificar os processos internos das empresas de seguros e melhorar a qualidade e a consistência das informações divulgadas.
Estes modelos permitem que as empresas de seguros adaptem a avaliação de riscos e os cálculos de requisitos de capital aos seus perfis específicos de risco, proporcionando uma abordagem mais precisa, dinâmica e integrada, em comparação com a fórmula-padrão. A capacidade de personalizar os modelos de acordo com as características específicas de cada empresa de seguros permite uma gestão de riscos mais eficaz e uma utilização mais eficiente do capital.
Portanto, seria desejável que os modelos internos se tornassem na pedra angular da gestão de riscos no setor segurador, sustentando quer o relato regulamentar em Solvência II quer o relato financeiro em IFRS.
Contudo, como mencionado, a utilização de modelos internos para efeitos de solvência exige um processo de aprovação rigoroso, que inclui a demonstração de como o modelo atende os requisitos estabelecidos no framework de Solvência II. Adicionalmente, a aprovação de um modelo interno não é um ato isolado, pois as empresas de seguros deverão demonstrar continuamente que os seus modelos internos permanecem precisos e eficazes ao longo do tempo. Esta supervisão contínua é um aspeto crítico da supervisão e envolve revisões e atualizações regulares dos modelos.
Não obstante, os modelos internos desempenharão um papel crescente na ajuda às empresas de seguros na gestão dos seus riscos de forma efetiva e eficaz, conduzindo consequentemente a uma gestão de capital mais eficiente. As empresas de seguros parecem finalmente estar prontas para transformar a complexidade regulatória numa vantagem competitiva!
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