Uma carta a José Sócrates com 600 anos

Esta semana, o juiz de instrução decide se o antigo primeiro-ministro vai a julgamento e por que crimes. Há quem já esteja a antecipar um forte abalo na justiça ou na política, consoante a decisão.

Os 28 arguidos da Operação Marquês vão saber, esta sexta-feira, se vão ou não a julgamento, estando acusados ao todo de 188 crimes. Não é 8, nem 80, são 188.

Será o juiz Ivo Rosa a decidir se fará ou não a pronúncia e será também o madeirense a decidir os crimes pelos quais estes arguidos terão de responder em julgamento. A figura principal e mais mediática desta investigação é o antigo primeiro-ministro José Sócrates, acusado de 31 crimes (três de corrupção, três de fraude fiscal qualificada, 16 de branqueamento de capitais e nove de falsificação de documentos).

Tendo em conta a robustez das acusações e os 38 recursos de contestação a decisões do juiz Carlos Alexandre e do Ministério Público feitos por José Sócrates desde o dia em que foi preso preventivamente, — e com 37 decisões sempre favoráveis à acusação (a exceção foi de uma decisão do juiz Rui Rangel), — seria de esperar que a decisão na fase de instrução fosse uma mera formalidade.

Mas, não será. Porque o processo, por sorteio, não calhou nas mãos do “justiceiro” juiz Carlos Alexandre, mas ao invés calhou nas mãos do juiz Ivo Rosa que, como escrevia o Observador, “é conhecido por uma visão hiper-garantistica da lei e uma desvalorização quase total da prova indireta — um tipo de prova que costuma marcar os casos da criminalidade económico-financeira”.

Aqui vale a pena um parêntesis para fazer uma pequena reflexão. É um absurdo que o Tribunal Central de Instrução Criminal, conhecido como Ticão, tenha apenas dois juízes de instrução com visões diametralmente opostas sobre a Justiça. Isto transmite uma ideia de aleatoriedade da Justiça, como se o destino dos arguidos e dos processos dependesse de uma decisão com a mesma consistência e objetividade de uma moeda atirada ao ar: cara ou coroa, Ivo ou Carlos?

Daí a importância da proposta que a ministra Francisca Van Dunem apresentou na Estratégia Nacional Anticorrupção 2020-2024 que prevê acabar com a dupla de juízes no Ticão, colocando ali a trabalhar mais magistrados. Justifica a tutela que “a atual configuração deste tribunal, com dois juízes, é indutora de um menor grau de aleatoriedade na distribuição de processos e geradora de uma perceção pública de personalização nos métodos e nas decisões, o que é contrário à imagem de objetividade da justiça”.

Se Van Dunem conseguir mudar a roleta em que se transformou o Ticão vai deixar uma marca importante na Justiça. A bem da verdade, é preciso reconhecer que o sistema não está totalmente nas mãos dos humores de Ivo Rosa ou de Carlos Alexandre, já que após a decisão instrutória, o Ministério Público e o procurador Rosário Teixeira poderão sempre recorrer ao Tribunal da Relação que funciona como válvula de segurança e de despersonificação do sistema judicial.

No entanto, não deixa de haver uma grande expectativa sobre decisão de Ivo Rosa esta sexta-feira, sobretudo para se saber se o juiz de instrução aceitará que Sócrates seja acusado de corrupção, um crime considerado de prova difícil. Caindo a corrupção, também é provável que por efeito dominó caiam os crimes de fraude fiscal e branqueamento de capitais, já que os milhões que alegadamente eram para José Sócrates foram objeto de amnistia fiscal no âmbito do RERT (Regime Excecional de Regularização Tributária), regime aprovado pelo próprio Sócrates quando este era primeiro-ministro.

Daí que muitos olhem para a decisão desta sexta-feira como um teste à credibilidade da política e da justiça. Como referia Manuel Alegre no jornal Expresso este fim de semana, “se houver julgamento mas não incidir sobre as acusações mais graves, deixa mal a investigação e o Ministério Público. Se essas acusações mais graves forem confirmadas, abala ainda mais a confiança no sistema político”. No mesmo jornal, o histórico socialista também se mostrou incomodado com a demora deste caso, e cita uma carta com quase 600 anos, do infante D. Pedro ao irmão D. Duarte, em que o primeiro aconselhava justiça feita “sem delonga”.

Na carta, citada por Manuel Alegre, conhecida como a ‘Carta de Bruges’, o viajado D. Pedro, duque de Coimbra, escreve ao irmão D. Duarte, herdeiro do trono régio, e propõe uma série de reformas, nomeadamente na área da justiça e da política. Além da “lentidão da justiça”, D. Pedro também critica “as despesas exageradas que recaem sobre o povo, sob a forma de impostos e de requisições de animais”, e ainda o facto de muita “gente ambicionar viver na Corte, sem outra forma de ofício”.

A Justiça (e o Correio da Manhã) descobriram que José Sócrates vivia em França, à grande e à francesa (literalmente à francesa), sem que se lhe conhecesse o exercício de qualquer “ofício” que lhe pudesse proporcionar aqueles rendimentos e aquele bem-estar. E a verdade é que Sócrates, ao contrário do que escreveu D. Pedro, nunca requisitou animais, mas como escreveu um dos juízes do Tribunal da Relação, que negou um recurso ao ex-primeiro-ministro, “quem cabritos vende e cabras não tem, de algum lado lhe vem”.

Perante a ausência de cabras do património de Sócrates, e perante a ausência do crime se enriquecimento ilícito no nosso enquadramento jurídico, que mais poderiam fazer os procuradores senão investigar e acusar José Sócrates?

Isto tudo para concluir que se a decisão de sexta-feira de Ivo Rosa, por absurdo, e é mesmo por absurdo, não for de pronunciação, não deixará mal a Justiça. Fez o que tinha a fazer, ou seja, investigar. A política também não ficará pior do que já está. António Costa, de forma inteligente, colocou uma cerca sanitária à volta da figura do ex-líder socialista e dos seus cabritos. O instinto de sobrevivência levou o PS a sacrificar politicamente o outrora “animal feroz”, que passou a ovelha negra da família socialista. É Páscoa, ninguém leva a mal.

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