Editorial

Uma demissão útil para Costa

A ministra que tinha fé nas mudanças no SNS acabou sozinha, e agora até dá jeito a Costa. O primeiro-ministro já tem um bode expiatório para ganhar tempo e brilhar com um cabaz de apoios sociais.

Marta Temido demitiu-se, e a única verdadeira surpresa foi mesmo a hora a que a governante anunciou ao primeiro-ministro e ao país a sua decisão. Já passava da uma da madrugada quando o Ministério da Saúde enviou um comunicado a revelar um desfecho político mais do que previsível, a demissão, e que só a teimosia do primeiro-ministro permitiu manter neste ‘novo’ Governo. Marta Temido passou uma pandemia — e os resultados têm muito que se lhe diga — e embrulhou-se em avanços e recuos, na incapacidade de gerir e de reformar uma máquina que é pesada e que não está a servir os portugueses, está crescentemente a transformar-se num serviço de saúde para os mais pobres.

O estado do SNS é caótico, como se percebe da gestão das urgências de obstetrícia nos últimos meses. E não foi por falta de dinheiro. Em quatro anos, o orçamento aumentou mais de três mil milhões de euros e mais 20 mil funcionários. Claro que tudo o resto serviu para quase ‘esfumar’ este esforço fiscal dos portugueses, e hoje o acesso ao SNS degradou-se de forma progressiva. As condições políticas de Temido já tinham desaparecido há muito, apesar das comissões e das medidas pontuais que tomou nas últimas semanas. Uma nova Lei de Bases da Saúde e agora, ao fim de quatro anos, um novo estatuto do SNS ainda por regulamentar, foram instrumentos que serviram para nada. A pandemia, essa, serviu para disfarçar o que era a realidade do SNS, e para justificar uma certa complacência pública. Temido disse tudo e o seu contrário, vendeu-nos a robustez de um SNS ao mesmo tempo que se justificava com os problemas estruturais, dos anos 80. Assumiu um confronto político com os privados do SNS para arranjar bodes expiatórios para a sua incapacidade política e para uma visão ideológica.

A responsabilidade maior, essa, é de António Costa. Apesar de ter sido, durante meses, uma espécie de estrela política do Governo — a própria convenceu-se disso –, Marta Temido é ministra. O primeiro-ministro é Costa, foi Costa a manter Temido no Governo quando se percebia que depois de dois anos de pandemia, seria necessário uma nova pessoa, politicamente fresca e com autoridade política. E a demissão, neste momento, quando ainda não passaram seis meses deste nova legislatura, dá muito jeito ao primeiro-ministro.

A ministra demissionária anuncia que deixou de ter condições para exercer as funções que tinha, mas o primeiro-ministro, sempre a surpreender, tem uma ideia peregrina. Não, Temido não vai sair já, vai ser ainda responsável pela regulamentação do estatuto do SNS, como se fosse uma coisa pequena. Não é, é tudo, como aliás ficou claro dos reparos de Marcelo na promulgação daquele diploma. Isto é peregrino, mas tem uma explicação, e não é bonita de se ler: O Governo está a preparar há semanas o pacote de emergência social — entretanto rebatizado de pacote anti-inflação, porque ninguém percebe que um plano de emergência fica na gaveta no período de férias — vai ser anunciado na próxima semana e a demissão de Temido vem mesmo a tempo de ‘congelar’ os problemas do SNS.

Com Marta Temido demissionária, Costa tem um bode expiatório para tudo o que possa suceder nas próximas semanas e pode ‘blindar’ o cabaz de presentes que vai apresentar ao país, mais um pacote de medidas para aprofundar a dependência do Estado e da decisão política.

A preocupação é sempre a mesma, tática, tudo assente nos focus group. Perante uma situação de degradação social, a pressão dos preços e a perda de rendimentos, a crise social limitada por um nível de emprego elevado — haverá mais pobres, e mais dos que trabalham muitas horas mas não ganham o suficiente para fugirem à armadilha da pobreza –, é preciso ganhar tempo e esse tempo não pode ser contaminado por outros problemas, problemas tão graves com o o SNS.

Costa habitou-se a comprar tempo. Agora, com este pacote de apoio social, não está a dar soluções aos portugueses, está a enganá-los, outra vez, como já sucedeu com os muitos planos apresentados nos últimos meses, para tudo e para nada. Mas como isto está, nem isso vai chegar.

O primeiro-ministro tem uma maioria absoluta, mas está em cima da corda bamba. Nestes primeiros meses, ficou claro que Costa anda a pensar noutras coisas, está com a cabeça noutro lado, seja na Europa ou na vontade de se ver livre da governação. Não está cá. O problema, por isso, já é muito mais profundo do que o caos na Saúde, ou que se pressente no que aí vem na Educação. Costa não é Guterres, mas o pântano é quase igual, e isso não se resolve com operações de comunicação e anúncio de cabazes para um suposto Natal antecipado. A demissão de Temido é útil agora para a Costa, mas valerá de pouco logo a seguir ao anúncio do plano de apoio anti-inflação se a política não mudar.

 

 

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