Uma história americana

A Palantir é a oferta em bolsa mais aguardada do ano, a maior tecnológica a ir ao mercado desde a Uber. E é também um símbolo do que está mal no capitalismo tecnológico americano.

A Palantir representa o pior da cultura da exploração de dados privados aplicados à segurança e à defesa – e o seu antecipado sucesso em bolsa será um sinal de quão errados estão os pressupostos dos mercados financeiros americanos.

A empresa nunca deu lucro em 17 anos de vida, mas isso será pouco importante. A palantir oficializa a erosão da liberdade individual como política capitalista, minando os direitos privados dos cidadãos em nome de um agigantar do aparelho de Estado. E esses serão os princípios que terão a bênção dos grandes investidores da bolsa. Um dia far-se-á a história de como o século XXI americano transformou o capitalismo numa ferramenta que atenta contra as liberdades individuais que estiveram na sua génese, e nele a Palantir e o seu fundador Peter Thiel terão direito a um capítulo inteiro por mérito próprio.

A Palantir nasceu no rescaldo do 11 de setembro e é filha direta da mentalidade que defende a troca de mais segurança por menos privacidade. O primeiro investimento relevante veio da própria CIA, mas os laços com as agências governamentais só se têm intensificado desde aí. O problema não é a sua área de especialização – a segurança – nem as raízes do investimento. O problema é o contexto.

A Palantir usa reconhecimento facial, algoritmos e machine learning para agregar dados dispersos e fornecer uma plataforma de visualização e interação – que leva diretamente à erosão das liberdades individuais. É a peça que faltava no puzzle da morte da privacidade que se montou na sociedade americana, funcionando para as indústrias de defesa e segurança como a Cambridge Analytica funcionou para as campanhas políticas.

A empresa comercializa um produto que é um misto de software e consultadoria e é usado em contratos com forças policiais e de segurança para encontrar criminosos, imigrantes ilegais e terroristas. Pelo meio já criou ferramentas que tentam antecipar crimes e deter os seus autores, que serviam apenas para atacar minorias empobrecidas, bem como utensílios para atacar jornalistas e defensores dos direitos civis.

Embora afirme estar comprometida com a democracia liberal, admite ajudar aliados americanos que não a praticam – como seria o caso da Arábia Saudita e, nesta Casa Branca, das Filipinas e até da Rússia. A empresa reproduz os vícios das maiores empresas tecnológicas americanas, explorando enormes bases de dados de utilizadores privados, e já se expandiu internacionalmente: tem contratos com a Europol e com o governo britânico, para quem desenvolveu a app anti-covid, gerindo consequentemente as bases de dados que incluem os dados biométricos dos seus utilizadores.

Ao ser cotada em bolsa, a empresa passa a ter uma obrigação direta para com os seus acionistas – gerar mais valor. E isso vai baixar ainda mais as poucas inibições da Palantir e reforçar os seus esforços de controlo social. Dezenas de governos mais ou menos liberais estão na fila enquanto potenciais clientes e uma cotação em bolsa permite que os mais ricos tomem posse de uma parte da empresa e do seu futuro. E não será o pormenor de a empresa nunca ter dado lucro que vai afastar potenciais investidores: o potencial de retorno financeiro para quem trabalha nas margens da segurança é demasiado grande para ser ignorado. E talvez até a bela promessa de nunca trabalhar com a China venha a ser abandonada.

O seu fundador é Peter Thiel, que fez fortuna ao fundar a PayPal – que depois vendeu e aproveitou para se tornar o primeiro investidor no Facebook. Thiel é também um tradicional apoiante republicano, que tem uma compensadora carreira enquanto investidor em políticos de direita conservadora. Depois da vitória de Trump, Thiel passou a ser membro da sua equipa de transição e seu conselheiro para questões tecnológicas. O seu chefe de gabinete foi nomeado em 2017 para Chief Technology Officer da Casa Branca e este verão passou a ser a quarta pessoa mais poderosa no Pentágono, com um orçamento de 60 mil milhões de dólares pensado para criar “armas inteligentes”.

Ao mesmo tempo, este conhecido libertário ataca as próprias fundações do Estado liberal que o sustenta. Thiel segue as orientações ideológicas de Ayn Rand e acrescenta o poder de Wall Street com a tecnologia de Silicon Valley, defendendo que democracia e liberdade não são compatíveis, pelo que uma deve ser sacrificada para manter a outra. O investidor dá dinheiro a jovens empreendedores para abandonarem a universidade, investe em empresas que buscam a imortalidade do ser humano e em tecnologias que exploram os limites da jurisdição governamental – seja através da exploração de domínios marítimos não reclamados ou da utilização da liberdade concedida a empresas tecnológicas. Pelo meio, defende que os monopólios privados são uma expressão saudável da economia e que a transparência mina o sucesso empresarial. Precisamente o tipo de pessoa que nunca se deveria aproximar de um poder público ou de uma indústria de defesa ou segurança – mas na América de Zuckerberg e Trump, é precisamente o que acontece.

Ler mais: O veterano e controverso jornalista americano Robert Scheer escreveu um livro em 2015 sobre uma série de ações de controlo social patrocinadas por governos e empresas, incluindo a Palantir. Em They Know Everything About You, o autor defende que os dados públicos e os algoritmos privados estão a ser usados para minar a democracia e as liberdades individuais.

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