Zona de impacto na saúde
O reforço do financiamento público na saúde, reflectindo a escolha dos eleitores, deve ir ao encontro directo de cada cidadão e que cada um faça a sua escolha.
Hoje, ou amanhã o mais tardar, será provavelmente anunciado que se atingiu aquele limiar que tanto gostaríamos de evitar: o esgotamento da capacidade instalada de camas de cuidados intensivos, dedicadas à COVID19, no Serviço Nacional de Saúde (SNS). De acordo com números revelados há dias pelo Governo (a 30/10), quando 275 camas ocupadas representavam uma taxa de ocupação de 81% da capacidade instalada nos cuidados intensivos, teremos no SNS cerca de 350 camas de cuidados intensivos dedicados à COVID19.
Assim, no total, entre camas dedicadas a doentes COVID e doentes não-COVID, o SNS contará com perto de 800 camas de cuidados intensivos – a fazer fé nas informações (nem sempre precisas) do Governo. Estamos, portanto, com 8 camas por cada 100 mil pessoas, das quais menos de metade dedicadas à pandemia, e bem abaixo da média europeia que antes da pandemia (sublinho, antes da pandemia) era de 12 camas por cada 100 mil pessoas.
Em face desta situação, o primeiro-ministro assegura que existe capacidade de expansão dos cuidados intensivos no SNS. É possível que exista alguma capacidade de expansão, embora para tal não bastem as camas. Porém, do que vamos ouvindo dos profissionais da saúde, o optimismo do primeiro-ministro assemelha-se cada vez mais a uma fezada, a um excesso de optimismo, do que a um julgamento isento e rigoroso da efectiva capacidade de expansão do SNS.
O próprio pedido de declaração do estado de emergência, justificado pelo Governo, entre outras, pela razão de facilitar a mobilização de recursos pelo SNS – leia-se, a previsível tomada de posse administrativa dos recursos do sector privado e social pelo Estado ou, numa linguagem mais doce, a requisição civil dos mesmos –, tudo leva a crer que a capacidade de expansão do SNS estará largamente aquém daquela anunciada pelo Governo.
Há já algum tempo, mesmo antes da pandemia, que tenho vindo a chamar a atenção para o financiamento e prestação da saúde em Portugal. Há cerca de dois anos, escrevi aqui no ECO que era preciso salvar o SNS da nova lei de bases da saúde, fortemente marcada pela ideologia estatizante do Governo.
Chamei então a atenção para o subfinanciamento público da saúde em Portugal, bem como para a diferente qualidade de serviço entre prestadores públicos e privados comparáveis entre si (confirmada pelo trabalho de auditoria do Tribunal de Contas). Relativamente ao subfinanciamento, chamei a atenção para a despesa pública na saúde, apenas 11-12% da despesa pública total em Portugal, face à despesa pública média em saúde nos países da OCDE (15% da despesa pública total) e face à Alemanha (20% do total) onde a estrutura etária da população é semelhante à nossa. Mas desde então os números não mudaram grandemente, nem mesmo depois da pandemia; em 2021 continuaremos a dedicar à saúde os 12% do costume.
A saúde em Portugal padece de vários problemas. O subfinanciamento é apenas um deles. A má gestão dos hospitais públicos é outro. O acesso à saúde é outro ainda. A este respeito, em Portugal a chamada despesa “out-of-pocket”, ou seja, a despesa não financiada por recursos públicos, representa um terço da despesa total realizada pela população em saúde. Na OCDE a despesa “out-of-pocket” representa um quarto do total e, portanto, os portugueses gastam mais do seu próprio bolso do que em média acontece nos países da OCDE.
Entre as possíveis explicações para isto, temos a ausência de capacidade de resposta do SNS e/ou a preferência da população pelos serviços de outros prestadores de cuidados de saúde. Mas isto é apenas para aqueles que têm efectiva liberdade de escolha. Para os demais, isto é, para aqueles que não têm liberdade de escolha porque não a podem pagar, as limitações traduzem-se num menor acesso a cuidados de saúde como se tem visto, de forma dramática, nos tempos mais recentes.
O acesso à prestação de cuidados de saúde é hoje, consensualmente, um bem público. O avanço civilizacional, a preocupação com o bem-estar dos indivíduos, e a existência de sociedades que estão cada vez mais envelhecidas assim o determinam. É por isto que países diferentes, independentemente da ideologia política, dedicam recursos do erário público ao financiamento dos cuidados de saúde. Não está, portanto, em causa a retirada de recursos públicos à saúde. Bem pelo contrário: Se alguma coisa está em causa é o reforço desses recursos através da retirada de recursos de outras áreas em que estes são dispensáveis. Coisa diferente, e aqui sim há discórdia, é o modo de prestação dos cuidados de saúde, mormente, a definição do ponto fulcral a atender. A discussão a ter não passa necessariamente pela natureza pública ou privada dos meios envolvidos, mas sim pela sua finalidade.
Sobre os fins, o ponto fulcral de qualquer bem público é o cidadão. E isto facilita bastante toda a restante problemática, designadamente a forma como se discute o papel do público, do privado e do social na saúde. Trata-se de uma discussão frequentemente sem fim que, no entanto, pode ser desempatada de forma bastante simples.
A solução está, pois, em deixar a avaliação do modo de prestação a cada cidadão em particular. Ou seja, que o reforço do financiamento público na saúde, reflectindo a escolha dos eleitores, possa ir ao encontro directo de cada cidadão e que cada um faça a escolha que bem entender entre prestadores públicos, privados, sociais ou outros quaisquer.
Num país em que há 700 mil pessoas sem médico de família, o ponto de partida poderia ser, por exemplo, a escolha (por acção ou omissão) de um médico de família por parte das próprias famílias. Na realidade, são elas as primeiras interessadas em fazerem boas escolhas. Há que lhes dar essa oportunidade.
Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico
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