Exclusivo SIRESP: o país numa rede de interesses

Fernando Alexandre foi o governante que renegociou o SIRESP em 2015. Em análise, escreve que "o contrato continua a ser mau para o Estado". E admite uma posição maioritária do Estado no consórcio.

Na sequência da tragédia de Pedrógão Grande, o SIRESP — a rede de comunicações de segurança e emergência do Estado — está, mais uma vez, no centro das atenções. A atenção que em cada situação de emergência ou catástrofe é dada ao SIRESP mostra a importância desta rede de comunicações. O Estado esteve bem ao criar uma rede deste tipo, que permite a centralização do comando e a coordenação de todas as entidades envolvidas nas operações de emergência e segurança. Ao contrário do que tem sido referido em muitos artigos de opinião, e de acordo com o diagnóstico ao SIRESP realizado em 2014 pela consultora KPMG a pedido do Ministério da Administração Interna (MAI), o Estado esteve também bem ao escolher a tecnologia Tetra para o SIRESP — ainda hoje a tecnologia internacionalmente mais utilizada em redes de segurança e emergência.

Qual é então o problema com a rede SIRESP?

Os problemas surgem logo na sua criação — ver, por exemplo, o artigo de Paulo Pena no Público (acesso condicionado). A opção por uma Parceria Público-Privada (PPP) foi um excelente negócio para os privados envolvidos. Os privados desta parceria são os suspeitos do costume: SLN/BPN (hoje Galilei, uma sociedade em liquidação com milhões de euros de dívidas ao Estado português), PT (que durante muitos anos fez grandes negócios por ajuste directo com o Estado Português) e, claro, o BES (neste caso através da sua parceria com a Caixa Geral de Depósitos na ESegur). Estes associados, conhecidos pelas suas ligações ao poder político representam o pior da promiscuidade no nosso regime económico e político, como hoje todos sabemos. Esta é sem dúvida uma das razões da má fama do SIRESP.

A opção por uma PPP deveu-se a duas razões fundamentais. Primeiro, aos problemas orçamentais do Estado. Segundo, à tendência nas últimas décadas para a privatização dos serviços do Estado. No entanto, entregar uma rede de emergência e segurança do Estado a privados levanta muitas dúvidas. Para atingir os seus objetivos de coordenação, esta rede tem de incluir todas as forças e serviços de segurança – GNR, PSP, SEF, Polícia Judiciária, Protecção Civil, INEM, Corporações de Bombeiros, municípios, entidades gestoras de infraestruturas críticas, etc. Por exemplo, a Polícia Judiciária, em 2014, não utilizava a rede de forma integral alegando razões de segurança. Este tipo de dúvidas não pode existir numa rede de segurança e emergência do Estado.

Na minha opinião, tendo em conta a situação dos atuais acionistas, em particular da Galilei, o Estado deveria considerar a possibilidade de assumir uma posição maioritária na SIRESP, S.A..

Finalmente, o SIRESP surge no centro das atenções por lhe serem atribuídas falhas no seu funcionamento em situações de emergência, isto é, quando se esperava que não falhasse. Quando cheguei ao Governo, no final de abril de 2013, um dos dossiers que tinha em cima da mesa era a avaliação da rede, uma avaliação motivada pelas falhas do sistema durante um temporal na Região do Oeste. Convém sublinhar que esta foi a primeira avaliação do SIRESP. Rapidamente, percebemos que o SIRESP era um dos temas mais importantes no MAI. Não só por razões de segurança, mas também por razões orçamentais (cerca de 40 milhões de euros/ano na altura).

Em julho de 2013, foi assinado um protocolo com a ANACOM, para esta colaborar na elaboração do caderno de encargos para a contratação de um serviço de avaliação da rede. O caderno de encargos foi elaborado durante esse verão. As dificuldades em passar à fase de contratação do serviço de avaliação estiveram na origem do meu conflito com o então Diretor Geral João Correia, que resultou no seu pedido de demissão no início de 2014. Neste ano, foi concretizada a avaliação da rede SIRESP pela consultora KPMG. Foram identificadas debilidades e propostas medidas para as colmatar. As conclusões do relatório (classificado como ‘reservado’) foram apresentadas ao Conselho de Utilizadores, criado também no final de 2013. Estas conclusões serviram de base para a definição de um plano de ação para ultrapassar as debilidades do sistema. Várias dessas ações foram concretizadas em 2015, nomeadamente: a aquisição de serviços de geradores para o fornecimento de energia; a aquisição de estações móveis e mapas de cobertura do território; o início da contratação de serviços de manutenção das torres sob responsabilidade do Estado.

Na atual discussão sobre o SIRESP o estado de execução do referido plano de ação para colmatar as debilidades identificadas na avaliação realizada pela KPMG é uma questão muito importante.

No entanto, é importante não esquecer que não há redes de comunicações infalíveis e haverá sempre falhas de comunicações em situações de eventos extremos. Assim, tão ou mais importante que questionar as falhas é questionar a rapidez com que as comunicações são restabelecidas.

Uma rede que ainda não é única

Para que uma rede como o SIRESP garanta o comando único e a coordenação nas operações, é necessário que todas as entidades envolvidas em situações de emergência e operações de segurança estejam nela integradas. Aqui está outro grande problema da rede, que reflete problemas estruturais do nosso país. Um Estado fraco com dificuldades em impor a obrigatoriedade do uso desta rede de comunicações e garantir o funcionamento da rede no seu potencial. A resistência na adesão ao SIRESP tem várias causas, mas uma não despicienda é de natureza económica. A adesão ao SIRESP retira mercado aos operadores que prestam serviços de comunicações. O Governo Regional dos Açores, por exemplo, gastou milhões de euros a montar uma rede paralela ao SIRESP para a Proteção Civil (GNR e PSP utilizam o SIRESP), mantendo uma empresa local a gerir a rede (sugiro que visualizem com esta informação a reportagem de 2014 da TVI sobre o SIRESP).

De qualquer forma, foram feitos progressos. Em 2010, havia cerca de 18 mil terminais ativos (essencialmente nas forças de segurança, que têm mais de 40 mil elementos); em 2015, já eram quase 40 mil terminais ativos, com um aumento muito significativo do número de entidades utilizadoras (em particular, de corporações de bombeiros, de municípios e empresas gestoras de infraestruturas críticas). No entanto, mantém-se o desafio de uma utilização eficiente pelas entidades, o que implica ações de formação, sobretudo das corporações de bombeiros.

A renegociação de 2014/2015 da PPP

Quando cheguei ao MAI no final de abril de 2013, na primeira reunião com as forças e serviços de segurança, no dia 2 de maio, tive de anunciar um corte total de 70 milhões de euros. A troika tinha sugestões de cortes, algumas sensatas, outras absurdas (que ignorámos propondo alternativas).

Numa área que envolve a segurança das pessoas e dos seus bens, os cortes não podiam ser ‘transversais’. A estratégia seguida foi a de pedir às forças e serviços de segurança propostas para reduzir a despesa do MAI que não pusessem em causa a sua operacionalidade. A redução da despesa com as comunicações surgiu na primeira linha, com destaque para o SIRESP (cerca de 40 milhões/ano). De facto, a despesa com comunicações tinha um peso importante na despesa do MAI: para além do SIRESP, existia ainda a Rede Nacional de Segurança Interna (7/8 milhões de euros/ano), outras comunicações móveis e o 112. Todos estes serviços eram fornecidos pela PT e contratados por ajuste direto.

Fomos sujeitos a muitas críticas por lançarmos concursos públicos para o fornecimento daqueles serviços — o deputado José Magalhães, do PS, por exemplo, disse ao DN e no Parlamento que ao lançarmos concursos públicos para aqueles serviços estaríamos a pôr em causa a segurança nacional, nomeadamente porque poderíamos estar a entregar serviços numa área crítica a uma empresa estrangeira (embora a PT na altura, ainda antes da compra pela Altice, já tivesse 70% de capital estrangeiro). Os concursos públicos avançaram e os serviços foram adjudicados (em dois casos à própria PT) por cerca de 50% do valor anterior.

Assim, a par da avaliação da qualidade da rede, no início de 2014, o MAI iniciou o processo de renegociação da PPP, com a nomeação por mim e pelo Secretário de Estado das Finanças da comissão de renegociação, liderada pela UTAP (Unidade Técnica de Acompanhamento de Projetos). Depois de um longo e complexo processo, a comissão de renegociação alcançou um acordo com a SIRESP, S.A., para uma redução de 25 milhões de euros (cerca de 10% do valor em dívida na altura), sem redução de serviços.

A renegociação do SIRESP foi concluída em 8 de abril de 2015 e ratificada em Assembleia Geral do SIRESP de 14 de abril de 2015. Eu demiti-me das minhas funções de Secretário de Estado em 22 de abril de 2015. O acordo final da renegociação do SIRESP só viria a ser assinado em dezembro de 2015 pelo atual Governo.

No entanto, apesar desta última renegociação, o contrato do SIRESP continua a ser mau para o Estado.

Concluindo, o SIRESP tem debilidades, mas é uma rede de comunicações da maior importância para Portugal. Por isso, o Estado tem a obrigação de garantir o seu bom funcionamento. Caso contrário, quando o contrato SIRESP acabar em 2021, estarão reunidas as condições para o Estado contratualizar uma nova rede, mais cara, que todos pagaremos, mas não necessariamente melhor. E não faltará apoio da opinião pública.

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