Cloudflare, o novo irritante nas relações entre Portugal e os EUA
O chumbo da CNPD à utilização da Cloudflare nos Censos 2021 criou grande desconforto na diplomacia americana. Encarregada de negócios admite consequências no comércio entre os dois países.
A independência dos EUA a 4 de julho de 1776 foi celebrada com vinho da Madeira e Portugal foi um dos primeiros países neutros a reconhecer a autodeterminação. A Base das Lajes e a participação conjunta na NATO são outros marcos de uma relação que foi sempre boa e auspiciosa, ainda que com alguns irritantes pelo meio. O mais recente envolve o afastamento da norte-americana Cloudflare do processo do Censos, depois da intervenção da Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD). O investimento chinês em grandes empresas portuguesas também não é bem visto.
O desconforto foi verbalizado na quarta-feira durante a intervenção da encarregada de negócios da embaixada dos EUA em Portugal na conferência “Trasatlantic Economic & Trade Summit”, organizada pela Amcham, a Câmara de Comércio Americana em Portugal. “Estamos preocupados com a recente decisão da agência portuguesa de proteção de dados envolvendo a Cloudflare”, disse Kristin Kane. “As consequências ameaçam não só perturbar o comércio entre os EUA e Portugal, mas ter outras implicações significativas e afetar a transição digital de Portugal”, avisou.
"As consequências ameaçam não só perturbar o comércio entre os EUA e Portugal, mas ter outras implicações significativas e afetar a transição digital de Portugal.”
Esta história começa a 27 de abril quando a CNPD deu 12 horas ao INE para suspender o envio de dados pessoais dos Censos 2021 para os EUA ou outros países terceiros sem um nível de proteção adequado, seja através da Cloudflare, lnc., ou de outra empresa, na sequência de uma investigação a participações recebidas no âmbito do inquérito. O instituto responsável pelas estatísticas nacionais teve de ir a correr suspender os serviços contratados à tecnológica com sede na Califórnia.
No dia seguinte, a Cloudfare respondeu ao Público que “nunca existiu transferência de dados dos Censos para os Estados Unidos”, referindo ainda que as declarações da Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) “não refletem com exatidão o serviço prestado”. O INE também esclareceu que não foi contratada qualquer solução ou serviços que implicassem o registo e alojamento dos dados, a fornecer pelos cidadãos no âmbito do Censos 2021.
Os dados são a matéria-prima das grandes tecnológicas, nomeadamente das norte-americanas, e sem poderem aceder a eles o seu negócio fica comprometido. Daí a preocupação com a decisão da CNPD e as repercussões que possa ter.
Kristin Kane não foi a única a abordar o tema. “Quero agradecer à encarregada de negócios pela sua intervenção nesta questão específica, incluindo a Cloudflare em Portugal. Apoio as suas observações como um exemplo realmente notável do que estamos a enfrentar nesta área”, disse por sua vez Michael Lally, ministro-conselheiro para os Assuntos Comerciais da embaixada dos EUA junto da União Europeia.
O responsável defendeu antes que “a capacidade de mover dados livremente e sem barreiras desnecessárias, mas com proteções de privacidade adequadas, é fundamental para a inovação e o crescimento dos negócios em todos os setores, em todos os setores e em empresas de todas as dimensões”. Este tem sido um tema quente nas relações transatlânticas e Michael Lally sublinhou a vontade da nova secretária de Estado do Comércio, Gina Raimondo, em alcançar um compromisso com a UE sobre um “escudo de privacidade”.
As críticas destes responsáveis diplomáticos em relação ao chumbo da CNPD à Cloudflare, somam-se às de Alejandro Mayorkas, líder do Departamento de Segurança Interna dos EUA, que em entrevista ao Observador também se mostrou preocupado, sem, no entanto, ameaçar com consequências.
“Estamos muito preocupados com a decisão. Percebemos a importância de proteger dados. Ao mesmo tempo, a partilha de dados ajuda a fortalecer e faz avançar os nossos interesses económicos comuns. Enquanto expressámos preocupação em respeito a essa decisão, estamos a olhar sobre como podemos avançar com a proteção de dados”, afirmou Alejandro Mayorkas.
Investimento chinês também na mira
Se todos sublinham a importância da visita do Presidente Joe Biden à Europa como um momento de revitalização e renovação das relações transatlânticas, já a adoção de um discurso mais duro contra a China tem encontrado resistência em várias capitais europeias, nomeadamente em Berlim. Kristin Kane não fugiu ao tema e, também aqui, deixou recados a Portugal.
“Sabemos que a infraestrutura crítica de Portugal é um dos principais alvos do investimento chinês na Europa e mantemo-nos preocupados com os interesses e investimentos chineses usados para ganhar influência política e económica”, afirmou a encarregada de negócios, acrescentando que “essa preocupação se estende às regiões onde a democracia e o bom governo estão ainda em processo de construção”.
"Estou a falar de regiões importantes para Portugal e os EUA, como a África subsariana e a América Latina, onde empresas portuguesas com posições fortes da China no capital estão a fazer incursões.”
“Estou a falar de regiões importantes para Portugal e os EUA, como a África subsariana e a América Latina, onde empresas portuguesas com posições fortes da China no capital estão a fazer incursões”, disse ainda. A última grande ofensiva chinesa foi na Mota-Engil, que tem negócios naquelas regiões, com a aquisição de 23% do capital pela China Communications Construction Company.
As relações com a China já tinham motivado uma intervenção mais incisiva da diplomacia americana em Portugal no ano passado, a pretexto do fornecimento de equipamento para as redes 5G pela Huawei. George Glass, o embaixador cessante, chegou a dizer que Portugal tinha de escolher entre os “amigos aliados” Estados Unidos e o “parceiro económico” China.
Luís Castro Henriques, que foi orador num dos painéis da conferência da Amcham, defendeu o acolhimento do capital chinês. “Acho que todos percebem que Portugal, até com o seu desejo de ser competitivo, é um país aberto ao investimento, desde que venha e respeite as regras locais. Se é investimento de natureza produtiva, eu não vejo motivo para que Portugal prejudique o seu próprio interesse”, afirmou o presidente da AICEP.
"Se é investimento de natureza produtiva, eu não vejo motivo para Portugal prejudique o seu próprio interesse.”
“Eu vejo sim é uma grande oportunidade para as empresas americanas aumentarem muito o seu investimento. Se isso é uma preocupação, na globalização a melhor solução é sempre ocupar o espaço”, rematou Luís Castro Henriques.
Estas foram exceções num conjunto de intervenções onde se celebraram as boas relações entre os dois países e o caminho que podem fazer juntos em temas como a transição digital e energética. O recente anúncio do investimento anglo-americano no hyperscaler data centre de Sines foi muito elogiado. “Este investimento projeta Portugal como um hub de tecnologia e é um símbolo forte das relações transatlânticas”, destacou Kristin Kane.
(Notícia atualizada com esclarecimento do INE de que a solução contratada à Cloudflare não envolveu o alojamento de dados do Census)
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