Kwarteng vs. Hunt: o antes e o depois do “mini-orçamento” do Reino Unido

  • Joana Abrantes Gomes
  • 19 Outubro 2022

Kwasi Kwarteng apresentou um plano de corte de impostos e apoios para pagar as contas da energia. Três semanas depois, Jeremy Hunt toma o seu lugar e reverte "quase tudo". O que mudou?

Nem um mês depois da apresentação do “mini-orçamento”, que previa a maior descida de impostos em décadas e que obrigou a uma intervenção do banco central, o Governo britânico viu-se obrigado a recuar no seu ambicioso programa económico para tentar acalmar os mercados financeiros e estabilizar a libra. Traduzindo à letra, o novo plano, anunciado na segunda-feira pelo sucessor de Kwasi Kwarteng, chama-se mesmo “reviravolta” (U-Turn, em inglês): isto é, afinal, já não serão postas em prática as reduções de impostos e as medidas de apoio a famílias e empresas para fazer face à crise energética serão encurtadas para seis meses.

Foi no dia 23 de setembro que o agora ex-ministro das Finanças do Reino Unido, Kwasi Kwarteng, revelou os detalhes do “mini-orçamento”, com vista a implementar a principal promessa que marcou a campanha da primeira-ministra, Liz Truss, na corrida à liderança do Partido Conservador – uma redução generalizada de impostos. O objetivo era dinamizar o crescimento económico, num cenário de crise energética e inflação elevada, sobretudo na sequência da guerra que assola o leste da Europa.

“Acreditamos que impostos elevados reduzem o incentivo ao trabalho, impedem o investimento e são um entrave ao empreendedorismo. Vamos rever o sistema fiscal para o tornar mais simples, mais dinâmico e mais justo para as famílias”, defendeu Kwasi Kwarteng, nesse dia, diante do Parlamento britânico.

O “mini-orçamento”, ou o novo Plano de Crescimento, estimava um corte de impostos avaliado em 45 mil milhões de libras (51.680 milhões de euros à taxa de câmbio atual), mais pelo menos 100.000 milhões de libras (cerca de 114.910 milhões de euros) para financiar diretamente os custos da energia para famílias e empresas durante dois anos. Entre as principais medidas do plano económico do Governo liderado por Liz Truss, constavam:

  • Reversão do aumento da contribuição para a Segurança Social, introduzido em abril por Rishi Sunak para ajudar a financiar os custos adicionais no setor da saúde;
  • Cancelamento dos aumentos de impostos para bebidas alcoólicas;
  • Fim do teto para os prémios de remuneração dos banqueiros, para tentar atrair mais investimento do setor financeiro;
  • Corte no imposto sobre a compra de habitação;
  • Isenção de IVA para turistas;
  • Cancelamento da subida prevista para os impostos sobre as empresas (o equivalente ao IRC em Portugal);
  • Fim do escalão mais alto do imposto sobre os rendimentos (equivalente ao IRS) a partir de 2023, que taxa a 45% os cidadãos que ganham mais de 150 mil libras por ano, passando estes a pagar apenas 40%;
  • Descida da taxa de 20% para 19% no escalão mais baixo do imposto sobre os rendimentos;
  • Congelamento das faturas de energia durante dois anos, sendo que, para as empresas, o Governo propunha financiar quase metade das contas durante seis meses.

Para suportar estas medidas e compensar a quebra na receita fiscal, o Governo britânico decidiu recorrer ao endividamento público. Além disso, o anúncio do plano não se fez acompanhar de previsões económicas independentes do órgão fiscalizador do Reino Unido – o Gabinete de Responsabilidade Orçamental (na sigla em inglês, OBR – Office of Budget Responsibility) –, nem por medidas para reduzir a despesa, colocando em causa, desde logo, a sustentabilidade da dívida pública, que se encontra em 96,6% do Produto Interno Bruto (PIB).

A pressão sobre os mercados financeiros fez-se sentir imediatamente. O valor da libra caiu a pique, chegando a desvalorizar 5% face ao dólar entre a data de apresentação do “mini-orçamento” e 26 de setembro, dia em que registou a cotação mais baixa, e 1,2% desde 23 de setembro até 14 de outubro, quando Kwasi Kwarteng foi demitido. Ao mesmo tempo, as taxas de juro da dívida dispararam e arrastaram com elas os juros dos empréstimos à habitação. A yield das obrigações do Tesouro britânico a 10 anos passou de uma taxa de 3,3% a 21 de setembro para 4,5% a 27 de setembro, tendo a partir de então e até esta terça-feira, 18 de outubro, baixado para os atuais 3,9%.

"Foi uma ideia demasiado audaz e muito pouco refletida. Do ponto de vista da reação do mercado, é o pior que se pode fazer. Porque isto não é fazer um corte na despesa. Isto é dizer que vamos manter a mesma despesa, mas à custa do dinheiro dos investidores.”

João Duque

Economista e Professor do ISEG - Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade de Lisboa

 

De facto, os mercados não alinharam no plano económico de Kwasi Kwarteng e até o Fundo Monetário Internacional (FMI) criticou a estratégia do Governo britânico. Vários bancos retiraram do mercado centenas de produtos de crédito à habitação nos dias que se seguiram ao anúncio, devido à expectativa de analistas de que as taxas de juro poderiam aumentar até 6% em 2023.

Este cenário obrigou o Banco de Inglaterra (BoE, na sigla em inglês), que já estava a tentar controlar a inflação, a uma compra de emergência de títulos soberanos (as chamadas gilts) no valor de quase 75 mil milhões de euros, evitando assim o colapso de alguns fundos de pensões com grandes investimentos em títulos do Tesouro.

A reação “enérgica” do BoE, além do nervosismo dos mercados, é um “sinal que algo sério se passou e ainda está a passar”, sublinhou ao ECO o ex-presidente da AICEP Pedro Reis. Já Antoine Bouvet, do ING Group, considera que embora tenha reagido “como devia”, a intervenção do banco central do Reino Unido ocorreu “demasiado tarde e de forma limitada”. “Deveria ter durado mais tempo”, afirmou o economista, em declarações ao ECO.

Neste contexto, foi aumentando a pressão sobre Liz Truss para demitir o seu ministro das Finanças, inclusive dentro do seu próprio partido. No dia 4 de outubro, Kwarteng reverteu aquela que era a medida mais polémica do “mini-orçamento”: a abolição do imposto de 45% sobre os rendimentos superiores a 150 mil libras anuais. “Nós apenas falamos com as pessoas. Ouvimos as pessoas. Eu percebo isso. Além de falarmos com as pessoas, também vimos como reagiram”, justificou.

Esse recuo, no entanto, não foi suficiente para devolver a credibilidade junto dos mercados, e Liz Truss acabou mesmo por demitir Kwasi Kwarteng na passada sexta-feira, reconhecendo que os seus planos económicos tinham ido “mais longe” do que os investidores esperavam. “Ainda bem que ele saiu, não tinha qualquer hipótese”, considera o economista João Duque.

Hunt faz “marcha-atrás” em nome da estabilidade

Sob forte pressão política, a chefe do Governo britânico não tardou a anunciar a nova escolha para a pasta das Finanças. A nomeação de Jeremy Hunt, antigo ministro dos Negócios Estrangeiros e duas vezes candidato à liderança do Partido Conservador, foi confirmada ainda em 14 de outubro, dia em que Liz Truss anunciou mais um recuo no plano económico, repondo a subida do imposto sobre as empresas (de 19% para 25%) que tinha sido decidida pelo anterior Governo, quando Rishi Sunak era ministro das Finanças.

Bastaram dois dias para o sucessor de Kwasi Kwarteng começar a fazer mudanças e a primeira medida que tomou foi mesmo anular quase por inteiro o “mini-orçamento”, numa tentativa de controlar o aumento da dívida pública. “Vamos inverter quase todas as medidas fiscais anunciadas no plano de crescimento há três semanas que ainda não iniciaram a legislação no Parlamento”, admitiu Jeremy Hunt, numa comunicação transmitida em televisão na passada segunda-feira.

Para reduzir especulações “inúteis”, o novo ministro das Finanças decidiu revelar mais mudanças ao “mini-orçamento” original antes da apresentação do plano orçamental de médio prazo, que acontece em 31 de outubro. Eis as principais medidas anunciadas:

  • Sem cortes nas taxas de impostos sobre dividendos;
  • Mantém-se o IVA para turistas;
  • Os aumentos das taxas sobre bebidas alcoólicas não serão congelados;
  • O imposto sobre as empresas afinal vai aumentar de 19% para 25% no próximo ano;
  • Taxa básica do imposto sobre os rendimentos vai manter-se “indefinidamente” nos 20%, em vez de baixar para 19%;
  • Mantém-se o escalão máximo de 45% do imposto sobre os rendimentos, que Kwarteng pretendia abolir inicialmente;
  • O plano de Garantia de Preços da Energia, destinado a apoiar famílias e empresas, foi encurtado para durar até abril de 2023 e não durante dois anos.

Do “mini-orçamento” apresentado em 23 de setembro no Parlamento mantêm-se apenas a redução da contribuição para a Segurança Social e um desconto no imposto sobre a compra de habitação (“stamp duty”), visto que ambas as medidas já começaram a ser legisladas.

Antecipando que o cancelamento da redução de impostos vai permitir angariar mais cerca de 32.000 milhões de libras (37.000 milhões de euros) anualmente em receitas fiscais, Jeremy Hunt justificou as alterações com o facto de os mercados exigirem, “com razão, o compromisso com finanças públicas sustentáveis”.

O objetivo do novo ministro das Finanças passa agora por mostrar aos mercados financeiros que o Governo britânico vai ser prudente nas políticas económicas, abdicando de qualquer medida que conduza a um aumento dos níveis de endividamento público e esperando que o valor da libra recupere terreno e que as taxas de juro da dívida pública do país deixem de subir.

Certo é que, desde a demissão de Kwasi Kwarteng na sexta-feira até esta terça-feira, 18 de outubro, a libra já valorizou 1,2% face ao dólar norte-americano, enquanto na segunda-feira a moeda britânica ganhava 0,83% em relação ao euro e as gilts mostravam sinais de recuperação. E se, inicialmente, o OBR previa que, incluindo as medidas do “mini-orçamento” original, o Governo britânico enfrentava um défice de 72 mil milhões de libras, este valor estará agora mais próximo dos 50 mil milhões de libras em resultado das mudanças anunciadas por Hunt, de acordo com o ING Group.

As novas medidas estão a ser recebidas com recetividade pelos economistas, embora considerem difícil que venham colmatar a lacuna nas finanças públicas. Com o “mini-orçamento”, Kwarteng queria fazer do Reino Unido “um laboratório social”, critica João Duque, frisando que o objetivo de Jeremy Hunt deve ser recuperar a confiança dos mercados, eventualmente cortando na despesa para controlar o défice.

Para Antoine Bouvet, do ING Group, as novas medidas são “uma evolução muito positiva, porque dão mais receitas ao orçamento e também representam um sinal para os investidores de que o Governo está a levar a sério a sustentabilidade”. Porém, assinala que o mercado das gilts continua “muito frágil”. “A não ser que o BoE intervenha por um período de tempo mais longo”, será difícil que a yield caia muito, remata, acrescentando que tal dependerá, em último caso, do que acontecer com a inflação – que atingiu os 10,1% esta quarta-feira.

Até 31 de outubro ainda serão anunciadas mais medidas de reversão do “mini-orçamento”. Mas persiste “um problema de sustentabilidade, e atrás disso a credibilidade, e atrás disso a estabilidade, e atrás disso todo o crescimento que (o Governo britânico) tem de acautelar”, aponta Pedro Reis, que denota que o novo ministro das Finanças se depara com uma “equação muito difícil” num ano em que “o mundo está demasiado perigoso”. “Para fechar o tal buraco (da sustentabilidade), ou vai por medidas de corte de despesas, ou vai por medidas de abdicar de corte de receita – na prática, abdicar de mais receita“, disse o ex-presidente da AICEP.

Jeremy Hunt terá de tomar uma série de opções orçamentais nas próximas semanas numa altura em que ainda existe um clima de incerteza política sobre o futuro da primeira-ministra, com as críticas a crescer no seio da sua maioria parlamentar e alguns deputados conservadores a começarem a pedir a sua substituição. Segundo o economista Antoine Bouvet, é outra razão pela qual a volatilidade dos mercados financeiros permanecerá elevada. Uma nova intervenção do BoE pode estar em cima da mesa, visto que acalmar os mercados depois de atingir a credibilidade da gestão das finanças públicas “é muito complicado”, considera Pedro Reis.

"Ou o ministro das Finanças empresta credibilidade a Liz Truss e ela recupera alguma coisa, ou então, se os mercados continuarem reativos e nervosos, não me surpreenderia que o Banco de Inglaterra intervenha para estancar o problema, não olhando ao impacto político da agenda.”

Pedro Reis

Economista e ex-presidente da AICEP

Liz Truss, por seu lado, parece decidida a defender a sua posição. Na segunda-feira, numa tentativa de justificar as reversões ao plano económico inicial, escreveu na sua conta do Twitter que “os britânicos querem estabilidade”. “Tomámos ações para delinear um novo rumo para o crescimento que apoie e responda às necessidades das pessoas do Reino Unido”, afirmou.

Esta quarta-feira, no entanto, o Governo britânico já sofreu um novo revés, com a demissão da ministra do Interior, Suella Braverman, menos de uma semana depois da saída de Kwasi Kwarteng. Em causa estará uma violação das regras, ao ter enviado um documento oficial através do seu e-mail pessoal. Resta esperar pela apresentação do plano orçamental de médio prazo no final do mês, para perceber se a mudança de direção em Downing Street será suficiente para “dar gás” novamente aos mercados e salvar não só as obrigações e as taxas de juro, como também a relação de paridade entre a libra e o dólar.

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