Mensagens privadas, decisões públicas. Até onde vai a privacidade dos telemóveis dos políticos?
Em regra, mensagens de texto são privadas. Mas se os políticos tomarem decisões públicas através delas, cria-se um conflito entre o direito à privacidade e o dever de transparência.
Mensagens ou e-mails dos políticos, que envolvem decisões políticas, têm estado no centro de várias polémicas nos últimos anos. Um dos casos mais conhecidos remonta a 2016, com a controvérsia dos e-mails de Hillary Clinton, candidata derrotada às presidenciais dos EUA nesse ano. Depois, no decorrer da pandemia, as mensagens trocadas entre a presidente da Comissão Europeia e o CEO da Pfizer durante as negociações da compra de vacinas contra a Covid-19. Em Portugal, soube-se em janeiro que o ex-ministro Pedro Nuno Santos autorizou o pagamento da indemnização de meio milhão de euros a Alexandra Reis também através de mensagens de texto.
Quando estão envolvidos dinheiros públicos, como na compra de vacinas ou na indemnização de um gestor, o escrutínio pode passar pelo acesso às comunicações pessoais dos políticos. Mas a lei, a nível nacional e europeu, só o permite em determinadas circunstâncias e, mesmo assim, conforme a interpretação.
Agora que foi aprovada uma nova comissão parlamentar de inquérito (CPI) à TAP, impulsionada também pelo caso de Alexandra Reis, resta saber se a controversa mensagem de Pedro Nuno Santos a dar autorização à indemnização de 500 mil euros deve ser um dos documentos a ser analisado pelos deputados – segundo o Expresso, o ex-ministro das Infraestruturas terá usado o iMessage (aplicação de mensagens do sistema iOS, da Apple) para dar ‘luz verde’ à saída da ex-administradora da TAP. O ECO tentou contactar Pedro Nuno Santos, sem sucesso até à publicação deste artigo.
A CPI, proposta pelo Bloco de Esquerda (BE), tomou posse no dia 22 de fevereiro e todos os partidos já pediram os documentos a que querem ter acesso. Em declarações ao ECO, a deputada Mariana Mortágua, que representa o partido proponente na nova comissão de inquérito, diz que o acesso à correspondência privada de Pedro Nuno Santos “é um precedente que não se deve abrir, é perigoso”.
A candidata a líder do BE explica, aliás, que foram pedidas “todas as comunicações que as entidades entendam que faz sentido perante a lei”, mas subentendendo-se que “prevalece a interpretação de que mensagens privadas não fazem parte”, já que a sua posição é que “não se pode pedir comunicações privadas”.
Em Portugal, a regra é que as comunicações privadas só podem ser acedidas por decisão judicial no âmbito de uma investigação de natureza criminal. Na Constituição portuguesa, o direito à proteção dos dados pessoais está salvaguardado nos artigos 34.º e 35.º, onde se lê — no n.º 1 do artigo 34.º — que “o domicílio e o sigilo de correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis”.
O mesmo direito é reforçado no Código de Processo Penal (artigo 189.º), segundo o qual a obtenção de “registos da realização de conversações ou comunicações só podem ser ordenadas ou autorizadas, em qualquer fase do processo, por despacho do juiz”.
Se aplicarmos esta legislação ao caso que envolve o ex-ministro das Infraestruturas, conclui-se que à partida, as mensagens do Pedro Nuno Santos são, por regra, privadas, pelo que o acesso por terceiros deve seguir os termos dos direitos fundamentais aplicáveis a todos os cidadãos.
“Não comentando casos concretos”, precisamente por existir uma comissão de inquérito a decorrer, a deputada do PS Alexandra Leitão considera, em declarações ao ECO, que os políticos, “por serem eleitos, seguirem funções públicas, usarem dinheiros públicos e tomarem decisões que nos afetam a todos, estão e devem estar sujeitos a um escrutínio maior”, tendo deveres “mais rigorosos” que outros cidadãos não têm.
Contudo, os políticos têm os mesmos direitos de defesa, de reserva da vida privada e da sua intimidade que os restantes cidadãos, ressalva a parlamentar socialista, que preside à comissão de Transparência e Estatuto dos Deputados.
Significa isto que “as comunicações dos seus telefones, sejam através de som, SMS ou o que for, não são públicas”, excetuando “no quadro de uma investigação criminal em que haja intervenção judicial a determinar a vigilância e/ou o acesso a essas comunicações privadas”, sustenta.
Mas, na verdade, uma comissão parlamentar de inquérito tem poderes alargados, “de investigação próprios das autoridades judiciais e demais poderes e direitos previstos na lei”, de acordo o Regimento da Assembleia da República (artigo 237º). O próprio regime jurídico das CPI (artigo 13.º) refere também que “gozam dos poderes de investigação das autoridades judiciais que a estas não estejam constitucionalmente reservados“.
Neste caso, pode então uma CPI pedir acesso a mensagens privadas de políticos, que tenham tido impacto em decisões públicas? Embora uma comissão de inquérito atue como uma autoridade pública, podendo investigar factos que indiciam um crime e recolher os correspondentes meios de prova para fins de controlo parlamentar e de apuramento de responsabilidades políticas, não tem por missão aplicar a lei penal.
E, ao mesmo tempo, o acesso a comunicações privadas está previsto apenas no âmbito da investigação de um dos crimes previstos no artigo 187.º do Código de Processo Penal e tem de ser autorizado por despacho do juiz de instrução e mediante requerimento do Ministério Público.
Os políticos têm deveres mais rigorosos. É normal e é desejável que sejam mais escrutinados que os outros cidadãos. Têm, contudo, os mesmos direitos de defesa, de reserva da vida privada, de reserva da sua intimidade, o que faz com que as comunicações dos seus telefones, seja através de som, SMS ou o que for, não sejam públicas e só sejam públicas no quadro de uma investigação nos termos legais aplicáveis.
Já em 2017, na segunda comissão parlamentar de inquérito à Caixa Geral de Depósitos, houve essa dúvida. O objetivo desta CPI era apurar se o ministro das Finanças da altura, Mário Centeno, negociou através de SMS a dispensa da apresentação da declaração de rendimentos de António Domingues, nomeado para a liderança do banco público.
Até o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, teria conhecido, segundo os media, o conteúdo dessas mensagens. Os partidos da oposição (PSD e CDS) pediram acesso à correspondência privada entre Centeno e Domingues, mas só puderam aceder aos e-mails, ficando de fora as SMS.
Direito à privacidade versus dever de transparência
O presidente da Transparência Internacional Portugal reconhece, em declarações ao ECO, que há um “problema nacional” de “falta de cultura de abertura e transparência, desde os líderes aos operacionais, passando pelas normas e comportamentos adotados, sobretudo quando se exerce o poder”. Nuno Cunha Rolo indica que, se os “agentes políticos começam a decidir através de meios privados e pessoais de comunicação, gera-se um conflito entre o direito à privacidade e o dever de transparência da Administração Pública”.
Um conflito “perfeitamente evitável”, aponta, ressalvando porém que, se surgir, é necessário “ter em atenção que os direitos fundamentais não são absolutos e se devem compatibilizar com outros valores constitucionais, como a integridade e a transparência da atuação dos poderes públicos”.
O jurista, que tomou posse como presidente da associação em setembro do ano passado, não vê no entanto necessidade de os deputados da comissão parlamentar de inquérito acederem às mensagens trocadas pelo ex-ministro no caso de Alexandra Reis. “O acesso a mensagens privadas deve ser muito restrito e devidamente contextualizado, pois é constitucionalmente protegido. Não podemos, como país, permitir a devassa privada, ainda que de governantes, por razões menores”, porque “abre caminho a violações e excessos do Estado de direito”, argumenta.
O mais importante, diz, é “cumprir a Constituição”, especialmente “no domínio dos Direitos Fundamentais e da Transparência e Escrutínio do Estado e das administrações públicas”. Nuno Cunha Rolo acredita que a lei atual é “suficiente, desde que as autoridades tenham todos os meios humanos técnicos e humanos para detetar, investigar e perseguir infrações e os agentes (tenham) sentido ético e de integridade no exercício das suas funções“.
Comunicações privadas sobre decisões políticas são documentos oficiais?
A (falta de) transparência é também o que está em debate no caso que envolve a presidente da Comissão Europeia e o CEO da Pfizer. Mas não só. A lei europeia vai mais longe que a nacional, ao ponto de classificar o que é um documento oficial.
“Se as mensagens de texto disserem respeito a políticas e decisões da UE, devem ser tratadas como documentos da UE”, afirma, ao ECO, a Provedora de Justiça Europeia, Emily O’Reilly. Isto para além de que a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (artigo 42.º) diz que os cidadãos europeus têm o direito de aceder a qualquer documento oficial da UE “qualquer que seja o meio”.
É com base neste enquadramento jurídico que Alexander Fanta, jornalista do Netzpolitik, pediu acesso às mensagens trocadas entre Ursula von der Leyen e Albert Bourla no negócio da compra de 1,8 mil milhões de doses de vacinas contra a Covid-19.
A Comissão Europeia alegou, na resposta enviada a Alexander Fanta, não ter identificado nenhuma mensagem de texto como sendo abrangida pelo âmbito do seu pedido, pelo que o jornalista recorreu à Provedoria de Justiça Europeia, que conduziu uma investigação ao tratamento que o Executivo comunitário deu ao pedido de acesso às mensagens em questão.
Depois de, em janeiro de 2022, acusar a Comissão Europeia de “má administração” nas tentativas de recuperar as mensagens de texto, Emily O’Reilly pediu para que o gabinete de von der Leyen fizesse uma procura “mais exaustiva”.
As mensagens dos governantes são, por regra ou definição, privadas, pelo que o acesso por terceiros deve seguir os termos dos direitos fundamentais aplicáveis a todas as pessoas. As exceções são as que se prendem por razões criminais, de defesa ou segurança nacionais, ou seja, situações muito excecionais, específicas e delimitadas
A investigação viria a ser concluída em julho do mesmo ano, com Emily O’Reilly a criticar o Executivo comunitário por “falhar em dizer se tinha procurado direta e corretamente as mensagens de texto e, em caso negativo, porque não”. Ao mesmo tempo, a provedora apontou que, embora a Comissão tenha reconhecido que as mensagens de texto relacionadas com decisões políticas podem ser documentos da UE, mostrou que “a sua política interna é, de facto, não registar mensagens de texto”.
Na altura do inquérito, a comissária europeia dos Valores e da Transparência, Vera Jourová, disse que as comunicações em questão podem ter sido apagadas, devido ao seu “caráter efémero e de curta duração”, mas defendeu que as mensagens de texto em questão não podem ser qualificadas como documentos oficiais ao abrigo do regulamento 1049/2001.
Este regulamento, que estabelece o direito de acesso do público aos documentos da UE, define um documento como “qualquer conteúdo, seja qual for o seu suporte (escrito em papel ou armazenado em formato eletrónico ou como uma gravação sonora, visual ou audiovisual), relativo a uma matéria relacionada com as políticas, atividades e decisões que se enquadrem na esfera de responsabilidade da instituição”.
Segundo Emily O’Reilly, o objetivo do inquérito à Comissão Europeia era que esta identificasse as mensagens de texto pedidas pelo jornalista Alexander Fanta e depois “avaliasse, ao abrigo da lei da transparência da UE, se estas poderiam ser divulgadas ao público”.
A posição da Provedora de Justiça Europeia é que as mensagens de texto relacionadas com trabalho “devem ser registadas” e, desta forma, os cidadãos “poderão fazer pedidos de acesso às mesmas que podem depois ser avaliados ao abrigo da lei da transparência da UE“, acrescenta.
Por entender que se trata de uma questão “relativamente nova” para a administração da UE, a Provedoria de Justiça emitiu uma série de diretrizes para o registo de mensagens de texto relacionadas com políticas e decisões de Bruxelas.
Assim, além de apelar para que as mensagens sejam reconhecidas como documentos oficiais, recomenda que devem ser postas em prática soluções tecnológicas “para permitir o fácil registo de tais mensagens”, fornecendo orientações ao staff sobre como devem ser gravadas, enquanto “os pedidos de acesso público a documentos que possam abranger mensagens de texto devem ser tratados de forma a considerar todos os locais onde tais mensagens possam ser armazenadas”.
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