Os argumentos das Finanças e dos ex-gestores da TAP, frente a frente

A deliberação da Direção-Geral do Tesouro que determina o afastamento da CEO e do chairman da TAP rebate a defesa jurídica dos antigos administradores. Conheça os argumentos dos dois lados.

A antiga CEO da TAP e o ex-presidente do conselho de administração responderam aos ofícios para a sua demissão contestando o processo desencadeado pelo Ministério das Finanças. Nas 12 páginas da deliberação que confirma a destituição dos administradores, o Governo rebate os argumentos.

A decisão de demitir Christine Ourmières-Widener e Manuel Beja foi anunciada pelo Governo no dia 6 de março, durante a apresentação do relatório da Inspeção-Geral de Finanças (IGF) sobre o contrato celebrado entre a TAP e Alexandra Reis para a desvinculação da administradora e o pagamento de uma indemnização bruta de 500 mil euros. Aquela entidade considerou o acordo “nulo”, por o Estatuto do Gestor Público (EGP) não prever “a figura formalmente utilizada de ‘renúncia por acordo’ e a renúncia ao cargo contemplada naquele Estatuto não conferir direito a indemnização”.

A Direção-Geral do Tesouro e Finanças (DGTF) notificou os administradores da demissão, dando-lhes dez dias úteis para responder, como prevê a lei. A deliberação, que foi juntada à ata da assembleia geral que a 12 de abril efetivou a demissão dá conta da argumentação da CEO e do presidente do conselho de administração (PCA), que contestam a violação do direito à audiência prévia ou que não tenho informado a tutela, embora apenas uma delas.

A DGTF e a Parpública, ambas na dependência do Ministério das Finanças, rebatem e concluem que existiu uma violação das normas legais estatutárias com “inequívoca gravidade”. O ECO deixa-lhe um frente a frente dos argumentos invocados.

CEO quis que fossem ouvidas testemunhas, Finanças não aceitaram

Na resposta ao ofício da Direção-Geral e Finanças (DGTF) com o projeto de demissão, Christine Ourmières-Widener requereu a audição de seis testemunhas, que não são identificadas na deliberação. As Finanças rejeitaram essa pretensão, com o argumento de que quatro já foram pessoalmente ouvidas ou prestaram declarações por escrito perante a IGF no âmbito do relatório de auditoria. As outras duas, “são ou foram agentes da TAP e do Ministério das Infraestruturas e da Habitação, cujos mais altos responsáveis, à data dos factos relevantes, já foram ouvidos ou prestaram declarações”, sustenta a deliberação.

É ainda aduzido que, na resposta da CEO, “não é concretamente associada, em relação a nenhuma dessas seis testemunhas, qualquer matéria factual precisa cujo apuramento se possa prefigurar relevante — donde, se considera desnecessário fazer promover a respetiva audição”.

Violação do direito de audiência prévia

O Estatuto do Gestor Público (EGP) determina que, antes de serem efetivamente demitidos em assembleia geral, os administradores têm de ser ouvidos em sede de audiência prévia. Ora a demissão da CEO e do e do presidente do conselho de administração (PCA) da TAP foram anunciadas a 6 de março numa conferência de imprensa do ministro das Finanças, Fernando Medina, e do ministro das Infraestruturas, João Galamba, na sequência da divulgação do relatório da IGF.

Na sua pronúncia, Manuel Beja alega a “violação do direito de audiência prévia”, no essencial porque, da sua perspetiva, “a partir do momento em que a decisão de demissão foi tomada e comunicada urbi et orbi por membros do Governo português, a audiência prévia do interessado serve apenas o propósito de criar uma aparência de regularidade do procedimento”.

Christine Ourmières-Widener também invoca a “nulidade do procedimento por fraude à lei”, sustentando que “o Governo degradou a audiência prévia a uma mera formalidade não essencial, desprovida de qualquer sentido útil”.

As Finanças contrapõe que a comunicação no dia 6 de março da decisão de proceder às demissões “não consubstanciou nem a adoção de qualquer decisão final nem a prática de qualquer ato de exoneração pública, limitando-se a traduzir o resultado da avaliação que, em face do teor e conclusões do Relatório da IGF, aqueles membros do Governo efetuaram quanto à existência de fundamento legal para demitir o PCA e a CEO, seguindo-se a partir daí o procedimento legalmente devido para o efeito”. Consideram ainda que “não degrada a relevância” da pronúncia do PCA e da resposta da CEO apresentadas.

A iniciativa do acordo com Alexandra Reis

Segundo a deliberação, Christine Ourmières-Widener, diz que “não tomou a iniciativa de suscitar a substituição da Eng.ª Alexandra Reis” e de que o processo tendente à saída dessa ex-administradora “só teve início no dia 25 de janeiro de 2022”.

A DGTF afirma que “não se aceitam as alegações factuais, trazidas em sede de audiência prévia” pela CEO, tendo em conta que a TAP prestou informação de que “a CEO da TAP solicitou a autorização do Ministério das Infraestruturas e da Habitação [MIH] para proceder à substituição da [Eng.ª Alexandra Reis], por divergências profissionais irreconciliáveis na comissão executiva que punham em causa o seu funcionamento” e que a própria presidente executiva declarou: “a iniciativa foi minha enquanto CEO”.

Nota ainda que, nos termos do relatório da IGF, a CEO tomou a iniciativa de suscitar a substituição da administradora junto do Ministério das Infraestruturas no dia 4 de janeiro de 2022.

A responsabilidade pela decisão

A antiga presidente executiva afirma na sua resposta que, “em todo o processo que levou à saída da Eng.ª Alexandra Reis, não tomou nenhuma decisão material relevante” e que “os desenvolvimentos do processo negocial, a cargo dos advogados que representavam a TAP e a Eng.ª Alexandra Reis, foram sempre transmitidos ao MIH e submetidos à sua apreciação e aprovação, sendo todas as decisões finais por este tomadas”.

Para sustentar o envolvimento da CEO, o documento cita as comunicações trocadas entre a gestora francesa e o advogado por si mandatado e com o secretário de Estado Adjunto e das Comunicações, Hugo Mendes, e a então chefe de gabinete do Ministro das Infraestruturas. A estes últimos encaminhou os termos essenciais das negociações havidas com Alexandra Reis, “apodando-os como o final agreement that I would recommend.

Socorre-se ainda do facto apurado pela IGF de que “a CEO conduziu, entre os meses de janeiro e fevereiro de 2022, o processo tendente à cessação de funções” da antiga administradora.

Destituição ou acordo para cessação do contrato de trabalho?

Christine Ourmières-Widener alega que a “saída da Eng.ª Alexandra Reis não se traduziu numa destituição, mas sim num acordo global para a cessação do contrato de trabalho e de renúncia ao cargo de administradora, o que, segundo informação prestada, se afigurava pacificamente válido”.

As Finanças sustentam que “diferentemente do sugerido pelo PCA e pela CEO, a cessação de funções da Eng.ª Alexandra Reis não operou por via de uma unilateral renúncia enquadrável nos termos do artigo 27.º do EGP, mas sim através de um — não legalmente previsto — Acordo de Cessação de Relações Contratuais, que o PCA e a CEO outorgaram, e em cujos termos se convencionou pagar um — também não legalmente previsto — montante compensatório por conta da cessação antecipada de funções daquela ex-administradora”.

A deliberação frisa que a IGF considerou o acordo “nulo” e determinou a devolução de parte da indemnização paga.

Violação grave dos administradores

De acordo com a deliberação, Christine Ourmières-Widener afirma “não se poder concluir que as violações da lei dos estatutos apuradas sejam graves ou tornem inexigível a sua manutenção no cargo, considerando entre o mais que, “se a [sua] conduta fosse de tal modo grave e intolerável, o Governo não a teria mantido em funções durante mais de um mês”. A CEO considera ainda “não lhe serem individualmente imputáveis as violações da lei e dos estatutos apuradas, considerando entre o mais que a sua atuação ‘traduz exemplarmente a conduta de um gestor diligente e criterioso'”.

Manuel Beja também defende não ter ocorrido ou não lhe ser imputável a violação grave, por ação ou por omissão, da lei ou dos estatutos da empresa. Argumenta que “o responsável pela função acionista sempre foi o ministro das Infraestruturas e da Habitação, pelo que, uma vez obtida a confirmação da respetiva concordância com os termos do acordo, e atendendo ao facto de o processo de negociação e elaboração do acordo ter sido assessorado por sociedades de advogados de renome, não tinha razões ou mesmo indícios para crer que haveria lugar à violação de normas legais procedimentais”.

As Finanças consideram que a cessação de funções de Alexandra Reis, realizada nos termos do acordo outorgado pelo chairman e pela CEO, implicou a violação de normas legais imperativas contidas em diplomas aplicáveis à TAP e ao conselho de administração, nomeadamente o Estatuto do Gestor Público e o Regime Jurídico do Setor Público Empresarial. Este último determina que cabe ao membro do governo responsável pela área das Finanças a função acionista em empresas públicas, a qual integra, designadamente, o poder de destituição dos titulares dos órgãos sociais.

Acresce a violação dos Estatutos da TAP SGPS, que atribuem exclusivamente à assembleia geral a competência para destituir os membros do conselho de administração. E ainda a “violação dos deveres de cuidado e de lealdade impostos ao exercício de funções de administração societária, decorrentes do Código das Sociedades Comerciais — em especial, na parte em que deles resultam obrigações de informação aos acionistas e a outros titulares de órgãos sociais”.

Segundo a deliberação, a violação verificou-se por ação, na outorga do acordo com Alexandra Reis, e por omissão”, por força da não comunicação, em nenhum momento, da negociação e outorga do acordo ao membro do Governo responsável pela área das Finanças ou aos seus representantes no exercício da função acionista.

A DGTF considera que a violação das normas legais e estatutárias assume “inequívoca gravidade”, impedindo a manutenção do PCA e da CEO nos respetivos cargos. Argumenta que o desconhecimento e violação da legislação “numa das empresas públicas de maior dimensão do país não pode deixar de ser considerada especialmente censurável à luz do elevado padrão dos deveres de cuidado legalmente exigidos a estes gestores públicos”.

Por outro lado, a continuada omissão nos deveres de informação e reporte Finanças “conduz à quebra das relações de integridade, lealdade, cooperação, confiança e transparência com o acionista“. Aduz ainda as “consequências notoriamente negativas sobre a reputação e boa gestão” das empresas públicas e o facto de a TAP estar submetida às obrigações do Plano de Reestruturação, o que “reclama dos seus gestores acrescidas obrigações de transparência e especiais deveres de cuidado na gestão financeira da empresa, ostensivamente violados pelo PCA e pela CEO”.

O papel do Ministério das Infraestruturas

Manuel Beja contesta na sua pronúncia que não tenha informado a tutela. Alega verificar-se uma “conduta abusiva por parte dos acionistas da TAP”, no essencial por entender que “a invocação da violação das normas legais e estatutárias aplicáveis por ausência de comunicação do acordo ao [Ministério das Finanças] e de deliberação da Assembleia Geral revela-se violadora do princípio da boa-fé, uma vez que foi incutida no interessado a confiança de que o correto procedimento passaria pela intervenção do [Ministério das Infraestruturas]”.

Para a DGTF, “não relevam para o apuramento nem excluem as documentadas violações da lei e dos estatutos da empresa” a alegação quanto à suficiência da intervenção do Ministério das Infraestruturas e da Habitação no processo de cessação de funções de Alexandra Reis. “Em existindo, essa confiança não pode em caso algum caucionar a desconsideração da obrigação de cumprir as normas legais e estatutárias violadas“, argumentam as Finanças.

A deliberação contesta ainda “a alegação, por parte da CEO, de uma suposta “violação do interesse público superior” e do seu “excelente desempenho profissional”, considerando tratarem-se de aspetos de apreciação gestionária totalmente alheios à apreciação objetiva da ilegalidade das suas concretas atuações por referência à outorga do acordo.

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