Longe da reforma, velhos para trabalhar. Porque se desperdiça talento +50?

Com a idade da reforma nos 66 anos, recusar profissionais com 50 anos significa desperdiçar 16 anos de vida ativa. Isto num mercado que se queixa de escassez de talento.

“Tens um bom currículo, mas com a tua idade…” Marta Vidal Pinheiro sentiu na pele a discriminação quando, aos 51 anos, e depois de quase 25 anos como diretora comercial de um laboratório, procurou uma nova oportunidade de trabalho. “Estar na ‘fasquia +50’ à procura de um novo trabalho é muito desafiante”, admite em conversa com o Trabalho by ECO. As empresas que afastam profissionais mais com mais de 50 anos são, muitas vezes, as mesmas que se queixam da escassez de talento. A dNovo, associação que promove o regresso ao mercado de trabalho dos +50, aponta, até 2025, um benefício de 15 milhões para o Estado com o regresso à vida ativa de, apenas, cerca de dois mil profissionais.

A escassez de talento tem sido um tema recorrente nos últimos anos, com as empresas a sentirem dificuldades em encontrar pessoas que sirvam os seus planos de crescimento de negócio. Em Portugal, 2.229.409 pessoas têm entre 50 e 64 anos. Uma faixa etária que representa 21,3% do total da população portuguesa, segundo os dados referentes a 2022 divulgados pela Pordata.

Estão ainda longe da idade da reforma, mas com mais de 50 anos são já considerados ‘demasiado velhos’ para trabalhar. Se considerarmos que a esperança média de vida é cada vez maior e a idade da reforma em Portugal está, agora, nos 66 anos, recusar na hora de recrutar profissionais de 50 anos, apenas por uma questão de idade, significa desperdiçar 16 anos de vida ativa, agravando o problema da escassez de talento.

Há um certo clima de ‘tens um bom currículo, mas com a tua idade…’ difícil de descrever. Vários conhecidos relacionados com os recursos humanos referiram-me, na altura, que nesta faixa etária iria ser difícil conseguir uma nova colocação, e isso é muito desmotivante e até angustiante, pois tenho muitas ferramentas, experiência e vontade de aprender e continuar a abarcar novos projetos, bem como dependentes a meu cargo”, partilha Marta Vidigal Pinheiro, engenheira alimentar.

Apesar de não ser tão falado como o machismo, o racismo ou a homofobia, o ageism — ou idadismo, na tradução portuguesa — é um preconceito presente na sociedade que, como todas as outras formas de discriminação, precisa de ser combatido. O idadismo pode manifestar-se de diversas formas, mas uma das mais comuns é a exclusão de candidatos de processos de recrutamento por não estarem dentro do intervalo considerado (socialmente) adequado para o mercado de trabalho ativo.

A nível global, uma em cada duas pessoas tem atitudes discriminatórias em relação aos mais velhos e, na Europa, uma em cada três diz ter sido vítima de discriminação com base na idade, revela um relatório sobre o idadismo da Organização Mundial da Saúde (OMS).

Apesar das dificuldades, Marta Vidal Pinheiro não baixou os braços. Foi durante essa procura — muitas vezes desmotivante — que se cruzou com a dNovo. “A d’Novo ajudou-me a não me sentir sozinha nesta situação, a mostrar-me que muitas pessoas da minha idade e mais velhas com imensas qualidades humanas e qualificações profissionais também estavam à procura de nova oportunidade de trabalho”, conta.

A missão da dNovo é alcançar a empregabilidade de pessoas com mais de 50 anos e formação académica superior. Ao inscreverem-se na dNovo, estes profissionais acedem a uma programa gratuito que lhes dá acesso a mentoria (individual e em grupo), networking e programas de capacitação em várias áreas.

Até ao final de julho, a associação já tinha apoiado 266 profissionais. Destes, 50 conseguiram regressar ao mercado de trabalho, sendo que a maioria foi integrada em pequenas e médias empresas. Uma missão que os responsáveis admitem ser desafiante.

Ainda assim, fazem planos para o futuro. Até 2025, pretendem ajudar 3.250 profissionais e conseguir que, pelo menos, 1.629 regressem ao mercado de trabalho, o que pressupõe uma taxa de sucesso de 55%. A dNovo estima ainda que o benefício para o Estado, até 2025, ronde os 15 milhões de euros (efeito apenas do não pagamento de subsídio de desemprego).

Joaquim Paiva Chaves, Isabel Viegas, João Castello Branco, Fernanda Ferreira, Teresa Silva Cardoso e Vera Norte são os responsáveis pela dNovo

Segundo a associação, a intervenção a que se propõe, para além do efeito direto nos profissionais apoiados, tem um impacto direto na economia, quer pelo valor criado pelo aproveitamento de competências seniores nas empresas, quer pelas contribuições fiscais que o regresso a uma atividade remunerada implica e consequente redução nos pagamentos de subsídios de desemprego.

Desperdiçar talento para, depois, lamentar a falta dele

“Existem vários estigmas e preconceitos nas nossas sociedades. No mundo Ocidental, mais do que no Oriente, há um culto da juventude da vitalidade e menos um reconhecimento da experiencia ou da aprendizagem passada. De certa forma, estas características da cultura impactam a o mercado de trabalho também, não sendo eventualmente os únicos fatores, mas também contribuindo para algumas ideias preconcebidas de que pessoas a partir de uma certa idade não estão tão aptas”, explica Vera Norte, assessora da administração para as áreas de empresas e comunicação da dNovo.

“Se consideramos que estas pessoas têm um esperança de vida cada vez maior e que a idade da reforma no nosso país é aos 66 anos, estamos a falar de pessoas que têm 20 anos à sua frente com dificuldade de regressarem ao mercado de trabalho. Parece-nos uma situação muito crítica, sobretudo no segmento onde a dNovo atua, que é na empregabilidade sénior qualificada”, acrescenta.

“Imagine pessoas com carreiras com qualificações superiores que não conseguem regressar ao mercado de trabalho. É um desperdício considerável de conhecimento e competência que o país não se pode dar ao luxo de ter. Numa altura em que as empresas referem a falta de talento como um dos principais problemas ao seu desenvolvimento.”

Se consideramos que estas pessoas têm um esperança de vida cada vez maior e que a idade da reforma no nosso país é aos 66 anos, estamos a falar de pessoas que têm 20 anos à sua frente com dificuldade de regressarem ao mercado de trabalho.

Vera Norte

Assessora da administração para as áreas de empresas e comunicação da dNovo

Ainda que acredite que as mentalidades estão a mudar, Vera Norte defende que é preciso “ajudar e contribuir para que esse processo, nomeadamente na vertente da empregabilidade, seja acelerado”.

Fazer com os mais velhos o que se tem feito com as mulheres

Lynda Gratton, professora e investigadora que tem escrito vários livros sobre o futuro do trabalho, disse recentemente que é preciso fazer com os mais velhos aquilo que se tem vindo a fazer com as mulheres. Eduardo Paz Ferreira, professor jubilado da Faculdade de Direito de Lisboa, advogado e autor do livro “Devo Fechar a Porta?”, não podia estar mais de acordo.

“É com grande alegria que verifico um crescimento acentuado da preocupação com aquilo que é normalmente designado por idadismo e que se traduz, designadamente na área científica de Lynda Gratton, por um afastamento das pessoas de idade do mercado de trabalho e das responsabilidades profissionais”, começa por afirmar em declarações ao Trabalho by ECO.

“A segregação de uma parcela da população não é novidade e tem uma expressão especialmente poderosa no racismo e no feminismo, que são combatidos há muito e, no entanto, não podem ser considerados como tendo desaparecido, apesar de tantos anos de luta. É necessário, agora, combater o idadismo com todas as forças”, defende o advogado de 70 anos.

Nos Estados Unidos, há estudos que concluem que cerca 75% das pessoas com mais de 50 já foram discriminadas por causa da idade. “É, sem dúvida, um número demasiado elevado e que, na generalidade dos casos, não encontra explicações a não ser o preconceito ou o desejo de aumentar os lucros, pagando menos a pessoas mais jovens”, comenta Eduardo Paz Ferreira.

É, sem dúvida, um número demasiado elevado e que, na generalidade dos casos, não encontra explicações a não ser o preconceito ou o desejo de aumentar os lucros, pagando menos a pessoas mais jovens.

Eduardo Paz Ferreira

Professor jubilado e advogado

“Mesmo que se possa justificar nalguns casos uma redução da carga de trabalho, ela deveria ser feita progressivamente, de acordo com os trabalhadores mais idosos, mas continuando a beneficiar da sua experiência e qualificação”, defende.

Combater o idadismo e os idadistas só é possível através da consciencialização pública, defende Rita Mexia. “Não nos esqueçamos que todos já passámos pela procura do primeiro emprego e lá chegaremos à idade em que já não seremos considerados aptos para trabalhar, mas estaremos ainda na posse de todas as faculdades para exercer, e bem, uma atividade profissional”, apela a profissional, membro do comité de Equity@Work da Kelly Portugal.

É urgente eliminar estereótipos, perceber que envelhecimento é diferente de velhice, criar políticas de combate ao idadismo, formação escolar desde a tenra idade, ações de sensibilização empresarial e ações concretas intergeracionais“, elenca.

E as empresas devem ter um papel muito ativo neste tema. Até porque o estigma contra pessoas mais velhas está enraizado culturalmente nas organizações, e, na maioria das vezes, são os próprios empregadores (também eles mais velhos) a impor regras de não contratação”, conta Rita Mexia. E explica porquê. “Socialmente, continuamos a acreditar que os mais velhos não aprendem, não têm conhecimento sobre tecnologias, não são flexíveis, são um custo maior para as empresas e não se adaptam da mesma forma que os mais novos. Está totalmente errada esta visão. Os mais velhos são uma mais-valia tremenda para as organizações, pela maturidade, conhecimento, dedicação e empenho nas funções que lhes são confiadas.”

A dNovo sugere ainda que sejam equacionados, por exemplo, incentivos para as empresas que contratem mais pessoas acima dos 50 anos.

Mais a ganhar do que a perder

Ter uma maior representação etária nas equipas possibilita a partilha intergeracional, potenciando uma maior relação entre as gerações, que se pauta por uma “consciência coletiva de solidariedade, respeito, motivação e um claríssimo despertar para uma permuta de conhecimento, tão enriquecedora para todos: novos, velhos ou organizações”, defende Rita Mexia.

“O aumento da longevidade é uma realidade, a esperança média de vida continua a aumentar e, consequentemente, o tempo de atividade laboral também, logo, sendo o conhecimento inesgotável e não estando delineado cronologicamente numa fase da vida, é absolutamente crucial que este equilíbrio exista”, acrescenta ainda.

Socialmente, continuamos a acreditar que os mais velhos não aprendem, não têm conhecimento sobre tecnologias, não são flexíveis, são um custo maior para as empresas e não se adaptam da mesma forma que os mais novos. Está totalmente errada esta visão.

Rita Mexia

Membro do comité de Equity@Work da Kelly Portugal

Embora haja quem olhe para as diferenças geracionais entre colaboradores e as encare como um risco, Rita Mexia prefere entendê-las como oportunidades. “Quando se juntam no mesmo local de trabalho, na mesma equipa, pessoas de gerações diferentes, juntam-se formas antigas e novas de ver o mercado de trabalho”, sustenta.

“Evidenciam-se valores, pensamentos, visões diferentes que podem, naturalmente, gerar divergências, porém, se os conflitos forem bem mediados pelos gestores, pelos RH ou pelas chefias diretas, com uma comunicação clara e assertiva, não vejo que o risco se sobreponha à oportunidade.”

Os riscos de conflito ou discórdia são, a seu ver, relativamente à forma como as gerações encaram a vida profissional. As gerações mais velhas privilegiam a estabilidade e o reconhecimento profissional e os mais novos são mais ativos, dinâmicos, têm uma visão de ‘passagem’ mais do que de carreira, optando por relações profissionais mais superficiais, o que gera um problema transversal para o ambiente corporativo.”

Mas, “as diferenças vão sempre existir, contudo, incentivando a comunicação, estimulando a convivência entre colegas e a partilha de conhecimento, beneficiamos todos”.

Marta Vidal Pinheiro e Eduardo Paz Ferreira trazem ainda outro ponto para a discussão: a saúde mental. Ambos concordam que estar ativo no mercado de trabalho é fundamental para o seu bem-estar psicológico e emocional. A discriminação etária pode ocorrer nos variados setores da sociedade e causar os mais diferentes tipos de consequências entre os indivíduos que são vítimas dessa intolerância, desse afastamento do mercado de trabalho, levando muitas vezes ao isolamento social e à descrença nas suas capacidades e competências.

“Cruzo-me, muitas vezes, com pessoas da minha idade que deixaram de trabalhar e entraram em processos depressivos e de diminuição da autoestima”, conta Eduardo Paz Ferreira. “É preciso que compreendam que as coisas não têm de ser necessariamente assim e que o devemos demonstrar”, acrescenta.

Recentemente jubilado da Faculdade de Direito, resultante de uma imposição legal a quem tem 70 anos, Eduardo Paz Ferreira acredita estar ainda em boas condições para trabalhar. Por isso, continuará a fazê-lo noutras áreas, em particular na advocacia.

Já Marta Vidal Pinheiro — que, depois de uma carreira de quase 25 anos como diretora comercial de um laboratório de análises catalão, já escreveu um livro e tem, agora, trabalhado na sua marca de sabão e cosmética artesanal com base em azeite para transformar este hobby num negócio — acredita que o trabalho “dá sentido à vida” e “proporciona saúde mental”.

“Do ponto de vista social e financeiro, é impensável para a sustentabilidade de um pais não valorizar um trabalhador com mais de 50 anos“, conclui.

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