Investigação a Costa nasce de uma escuta que não foi destruída pelo Supremo Tribunal de Justiça

A escuta telefónica remonta a 2021, quando estava a ser investigado o negócio do hidrogénio verde. Conversas entre Costa e Matos Fernandes estarão na origem do inquérito do STJ contra o ainda PM.

A investigação a António Costa, que levou à sua demissão esta terça-feira do cargo de primeiro-ministro, está agora nas mãos do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) e nasce de uma das três escutas telefónicas analisadas em 2021 pelo presidente desse mesmo tribunal, o juiz conselheiro António Joaquim Piçarra.

Mas recuemos no tempo. Em 2021, António Costa foi referido numa escuta em conversas telefónicas com o então ministro do Ambiente, Matos Fernandes, cujo telemóvel se encontrava sob escuta e que, esse sim, era o alvo do Ministério Público. Dessas três escutas, apenas duas foram destruídas pelo vice-presidente do Supremo Tribunal de Justiça por não terem “indício criminal relevante”.

Mas uma restou. E foi essa que deu origem a que a PGR, em comunicado divulgado esta terça-feira, ter assumido que António Costa está a ser investigado num processo autónomo, investigado pelo Supremo Tribunal de Justiça por “suspeitas de que terá intervindo para ‘desbloquear’ os negócios do lítio, hidrogénio e data center que estão a ser investigados”.

Contudo, essa mesma escuta foi junta ao inquérito no DCIAP e não deu logo origem a um processo autónomo no STJ com António Costa como alvo principal. Só agora, quase três anos depois, é que a PGR assume que há esse inquérito a decorrer, por certidão extraída das restantes suspeitas que envolvem e resultaram na detenção de Vítor Escária, chefe de gabinete de Costa, Lacerda Machado, amigo do primeiro-ministro, Rui Oliveira Neves, da Start Campus e sócio da Morais Leitão, Afonso Salema, CEO da Start Campus, e Nuno Mascarenhas, autarca de Sines.

Em causa poderão estar, designadamente, factos suscetíveis de constituir crimes de prevaricação, de corrupção ativa e passiva de titular de cargo político e de tráfico de influência.

“No decurso das investigações surgiu (…) o conhecimento da invocação por suspeitos do nome e da autoridade do Primeiro-Ministro e da sua intervenção para desbloquear procedimentos no contexto suprarreferido”. Tal como manda a lei, “tais referências serão autonomamente analisadas no âmbito de inquérito instaurado no Supremo Tribunal de Justiça”, diz o comunicado da PGR.

Um comunicado que foi lançado um minuto depois da titular da investigação criminal, Lucília Gago, ter tido uma breve reunião com o Chefe de Estado, Marcelo Rebelo de Sousa. Algo inédito na história da justiça da nossa democracia. Tal como inédito foi o facto de ter sido alvo de buscas, logo na manhã de terça-feira, a residência oficial do ainda primeiro-ministro. Durante essa mesma manhã, por duas vezes Costa dirigiu-se a Belém, para ter conversas curtas com Marcelo. Poucas horas depois, apresentava a demissão ao país. Dizendo: “Obviamente, demito-me”, numa frase que ficará na história da nossa democracia.

Com as escutas ‘plantadas’ em 2020 e conhecidas em janeiro de 2021 –, o objetivo do DCIAP era o de investigar o caso do hidrogénio verde, que levou a que o secretário de Estado-adjunto e da Energia, à data, João Galamba, e o ministro da Economia, à data, Pedro Siza Vieira, fossem alvo de escutas.

JOSE SENA GOULAO/LUSAJOSE SENA GOULAO/LUSA

Em causa estavam e estão agora eventuais favorecimentos ao consórcio EDP/Galp/REN para o milionário projeto do hidrogénio verde para Sines. A investigação começou depois de suspeitas surgidas em 2019, com as autoridades a tentarem perceber se houve favorecimento àqueles grupos naquele que foi um dos maiores investimentos públicos dos últimos anos.

E porquê o Supremo Tribunal de Justiça?

Segundo o que estabelece o artigo 11º do Código de Processo Penal, compete ao presidente do STJ “autorizar a interceção, a gravação e a transcrição de conversações ou comunicações em que intervenham o Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República ou o Primeiro-Ministro e determinar a respetiva destruição”.

Tal como compete às secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça, em matéria penal “julgar o Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República e o Primeiro-Ministro pelos crimes praticados no exercício das suas funções”. E ao Ministério Público, afeto ao STJ, investigar os titulares dos mesmos cargos públicos referidos. Sendo assim, é também por isso que este inquérito decorre no Supremo no chamado foro especial. Porém, a partir do momento em que Costa deixe de ser primeiro-ministro, esse mesmo inquérito pode vir a ser anexado ao “principal”, a decorrer no DCIAP.

Supremo Tribunal de Justiça, em LisboaHugo Amaral/ECO

Em causa estão ainda os denominados crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos (que o regime jurídico do exercício de funções por titulares de cargos políticos e altos cargos públicos faz referência no seu artigo 22º), regulada pela Lei nº 34/87, de 16 de julho, que prevê expressamente, para os comportamentos imputados aos ministros e primeiro – ministro em investigação, a possibilidade de lhes ser imputada responsabilidade criminal.

Aliás, conforme é sublinhado no artigo 5º do mencionado diploma, “precisamente por estarmos na presença de possíveis crimes praticados no exercício de altas funções políticas poderá verificar-se um agravamento das molduras penais abstratamente aplicáveis em um quarto nos seus limites mínimo e máximo, salvo se a medida da agravação prevista na lei geral for mais gravosa, caso em que é esta a aplicável ou até, no caso do crime de corrupção e recebimento ou oferta indevido de vantagem, de um terço desses limites mínimos e máximos”, conforme explicou o advogado Dantas Rodrigues, em declarações ao ECO/Advocatus.

“Naturalmente, verificando-se a condenação, a própria lei impõe a demissão dos respetivos titulares dos cargos, caso essa não se tenha verificado em momento anterior (artigo 30º) para além da possibilidade de ser aplicada pena acessória de proibição de exercício de cargos políticos, por um período entre os 2 e os 10 anos”, concluiu o mesmo advogado.

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