Governo justifica dispensa de licença na escritura com “controlo prévio”

Governo explica que, apesar da dispensa de apresentação de licença e ficha técnica do imóvel na escritura, mantêm-se em vigor mecanismos de "controlo prévio". Bastonário insiste na "tese do equívoco".

Desde o princípio do ano que deixou de ser obrigatória a apresentação da licença de utilização e ficha técnica do imóvel, ou prova da sua existência, no momento em que se escritura a compra de uma casa. Esta semana, o bastonário da Ordem dos Notários veio alertar que a dispensa vai gerar uma “corrida” para alienar imóveis ilegais. O Governo não responde diretamente, mas diz que existem mecanismos de “controlo prévio”.

O novo simplex do licenciamento urbanístico, inserido no pacote Mais Habitação, trouxe uma “profunda simplificação” em matéria de licenças de utilização de imóveis, defende ao ECO fonte oficial do gabinete do secretário de Estado da Digitalização e da Modernização Administrativa. O diploma pretende aumentar a oferta de casas no mercado, para combater a crise da habitação, e o bastonário dos notários, Jorge Batista da Silva, tem a certeza de que isso vai acontecer. Seja pela possibilidade de se converter em habitação imóveis afetos ao comércio, por exemplo, seja porque o mercado “vai ser inundado por imóveis ilegais e sem licença de utilização”.

Confrontado com esta preocupação, o gabinete do secretário de Estado Mário Campolargo justifica que dispensar a apresentação de licença e ficha técnica na escritura “foi necessário” para “adequar o regime jurídico relativo ao contrato de compra e venda de imóvel [vulgo, escritura], adaptando as exigências de elementos necessários ao mesmo”. Em causa está o facto de o simplex do licenciamento também eliminar “a autorização de utilização quando tenha existido obra sujeita a um controlo prévio”.

“Como referido no preâmbulo do diploma, ‘é eliminada a autorização de utilização quando tenha existido obra sujeita a um controlo prévio, substituindo-se essa autorização pela mera entrega de documentos, sem possibilidade de indeferimento, mas, naturalmente, mantendo-se todos os poderes de fiscalização durante e após a obra. Por seu turno, quando exista alteração de uso sem obra sujeita a controlo prévio, deve ser apresentada uma comunicação prévia com um prazo de 20 dias para o município responder, considerando-se aceite o pedido de autorização de utilização, caso o município não responda'”, diz a mesma fonte oficial, citando diretamente a lei.

“Considerando o suprarreferido, foi necessário adequar o regime jurídico relativo ao contrato de compra e venda de imóvel, adaptando as exigências de elementos necessários ao mesmo, pelo que foram eliminadas, no momento da celebração do contrato de compra e venda do imóvel, a exibição ou prova de existência da ficha técnica de habitação e da autorização de utilização ou de demonstração da sua inexigibilidade”, acrescenta a secretaria de Estado que tutela a Modernização Administrativa.

No caso de obras sujeitas a “controlo prévio”, em que a nova lei substitui a autorização de utilização “pela mera entrega de documentos”, trata-se de um termo de responsabilidade subscrito pelo diretor de obra ou diretor de fiscalização, no qual deve ser declarado “que a obra está concluída e que foi executada de acordo com o projeto”, explica o Guia Simplex Urbanístico da Cuatrecasas, uma sociedade de advogados. É ainda exigida a entrega das telas finais se tiverem existido alterações ao projeto original.

E nos casos em que “exista alteração de uso sem obra sujeita a controlo prévio”? A lei diz que deve ser feita uma comunicação com um prazo de 20 dias para o município responder, “considerando-se aceite o pedido de autorização de utilização caso o município não responda”. Isto é, ocorre deferimento tácito.

Apresentação de licença é formalidade “sem valor acrescentado”

A lei publicada no dia 8 de janeiro — com retroativos a dia 1 no caso da dispensa de apresentação da licença e da ficha técnica –, considera que estas formalidades “não representam valor acrescentado”. Visão diferente da do bastonário da Ordem dos Notários, que indicou em entrevista ao ECO que esta norma “veio espantar quase toda a gente” com quem tem falado, desde mediadores imobiliários a cartórios, passando pela “área dos registos”.

Jorge Batista da Silva afirmou que, nos casos em que exista licença de utilização, basicamente, se trata de “pedir uma fotocópia”. E que, quando há dificuldade em obtê-la, normalmente, “é porque ela não existe”. A entrevista acabaria marcada por um alerta: “O mercado, neste momento, vai ser inundado por imóveis ilegais e sem licença de utilização. E o que existe neste momento é uma verdadeira corrida até para os alienar.”

O bastonário atribuiu essa consequência a “desconhecimento do legislador”, que “se esqueceu que estava noutro artigo do Código Civil” a obrigação de apresentar a licença de utilização no momento de assinatura de um Contrato de Promessa de Compra e Venda, documento que, normalmente, antecede e abre caminho até à escritura. E, à luz da resposta do Governo, insiste agora na “tese do equívoco”.

“Todo o regime era pensado para proteger os compradores”

Jorge Batista da Silva, num novo comentário enviado ao ECO sobre este tema, recorda que o regime atual tinha sido introduzido por decreto-lei em 1985 para “desincentivar a propagação desenfreada de imóveis ilegais ocorrida nos anos 70 e 80”, e aprofundado depois por outro decreto-lei publicado em 1999, que foi revogado no simplex. “Todo o regime era pensado para proteger os compradores, nomeadamente, de imóveis para habitação”, diz.

E reforça que os compradores ficam desprotegidos no novo regime introduzido por este Governo: “Com o novo regime, o legislador acabou com a verificação pelo notário da existência de licença de utilização do imóvel e também da ficha técnica. […] Neste momento, o notário apenas informa no momento da transmissão ‘que o imóvel pode não dispor dos títulos urbanísticos necessários para a utilização’. […] Foi revogado o único controlo que existia na transmissão de imóveis e que só existia para salvaguardar compradores/consumidores”, diz o bastonário dos notários.

“Acresce que a tese do equívoco é reforçada pelo facto de se manter no Código Civil a exigência de exibição de licença de utilização nos contratos promessa de frações para habitação ou nos contratos de locação financeira de bens imóveis”, frisa.

O ECO também questionou o Governo se a dispensa prevista no simplex não incrementa o risco para os compradores, que podem acabar por adquirir imóveis sem licença, que, no limite, poderiam ter de ser demolidos por ordem das Câmaras. Sobre esses aspetos, o gabinete de Mário Campolargo nada disse.

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