Quotas para mulheres ainda são precisas. Têm um efeito cascata e melhoram o mérito

O ECO promoveu um conjunto de conversas com mulheres em diversas áreas como Economia, Justiça, Ambiente ou Empreendedorismo para avaliar a participação das mulheres na vida coletiva do país.

“Quando o meu filho tinha dez anos, fui convidada para falar numa conferência, a 8 de março, numa faculdade, para assinalar o Dia da Mulher. Estava um pouco atrapalhada porque foi algo que surgiu à última hora e as minhas colegas de painel eram todas professoras catedráticas. Não sabia muito bem o que dizer”, conta ao ECO Ana Jacinto, secretária-geral da AHRESP.

Perante a sua hesitação, o seu filho tranquilizou-a, recorda, reproduzindo a conversa que tiveram:

— Não há problema nenhum. Vais falar do que se passa cá em casa — disse o pequeno.

— Como assim? Não estou a perceber — retorquiu a mãe.

— Então o que é que se passa cá em casa? — perguntou a criança.

— O pai é o rei, eu sou o príncipe e tu és a trabalhadora — completou.

— Como assim??!! — exclamou a mãe atónita. — Tu pagas-me? — retorquiu Ana Jacinto.

— Pois, desculpa, tens razão. Não és a trabalhadora, és a escrava. É basicamente isto que tens de explicar — rematou o rapaz.

Ana Jacinto usou esta história pessoal para ilustrar a necessidade que ainda subsiste de haver uma mudança de cultura na sociedade portuguesa. “O meu filho sempre me viu trabalhar fora. Não gozei a licença de maternidade completa, fui trabalhar logo ao fim de um mês. Ele não tem nenhum exemplo que o possa levar a ter esta atitude, mas disse-me isto. Portanto, obviamente existe uma questão cultural que tem de ser desmistificada”, alerta a secretária-geral da AHRESP, num encontro organizado pelo ECO para avaliar a participação das mulheres na vida coletiva do país, discutir o ponto de partida e para onde caminha Portugal para corrigir a assimetria dos números.

Há cada vez mais mulheres nas universidades, nas empresas, na política. O seu nível de formação é em geral superior. Mas raramente chegam aos lugares de topo. Uma prova de que a discriminação existe, apesar das quotas.

A bastonária da Ordem dos Contabilistas Certificados (OCC) frisa que as mulheres têm a mesma capacidade de liderança que os homens, mas “podem, em determinado momento, não estar tão disponíveis ou não serem procuradas para esses lugares”. “Têm imensa capacidade, porque têm uma sensibilidade diferente, o que é muito positivo nas lideranças, na gestão de pessoal, interligação entre pessoas”, sublinha Paula Franco.

Mas, continua a existir a perceção de que não têm a mesma disponibilidade que os homens. E fases da vida como ter filhos ou criar família, ainda hoje são um obstáculo à aposta na carreira.

Ana Jacinto considera “lamentável” que ao fim deste tempo ainda se esteja a falar da desigualdade entre homens e mulheres. “Já não era preciso estarmos a falar destes temas hoje em dia”, diz. “Mas afinal é”. Por isso, embora não concorde com a imposição de quotas, reconhece que “ainda são precisas”.Caso contrário, não conseguimos lá chegar”, diz.

A questão é o mérito e esse não falta, apesar de não se traduzir em mais mulheres em cargos de liderança — só um terço das mulheres chega a cargos de gestão. Se a escolha para os cargos fosse feita com base no mérito, não seriam necessárias quotas para garantir a presença de mulheres em ligares de topo, defendem.

Ao deixar as mulheres arredadas dos cargos para os quais têm competências, Portugal está a “desperdiçar todo o mérito e criatividade e vontade de contribuir porque o recrutamento não é feito com base no mérito”, diz Susana Peralta. “Se assim fosse, teríamos de aceitar que as mulheres estão completamente sub-representadas e não é só nos cargos de liderança das empresas, mas também nos lugares de poder político e de poder mediático”, diz a economista e professora na Nova School of Business and Economics.

Há investigação que mostra que as quotas melhoram o próprio mérito, porque distorcem um pouco os mecanismos de recrutamento que temos hoje, que claramente não são baseados no mérito — caso contrário não teríamos uma sub-representação das mulheres –, e vão permitir que mulheres mais competentes destronem homens menos competentes que lá chegam por outros mecanismos de redes, de conhecimentos”, recorda Susana Peralta.

No entanto, a economista considera que não é possível ter quotas em todo o lado, porque isso teria um “custo de implementação” demasiado elevado. Mas, como “as quotas ao mais alto nível tem um efeito em cascata”, admite que não é preciso colocar quotas em todo o lado, mas apenas em “alguns faróis da sociedade”.

O facto de a “economia do cuidado”, seja de descendentes ou de ascendentes, continuar a recair nos ombros das mulheres é outro fator penalizador. “Portugal aparece sistematicamente nos inquéritos europeus como um dos três piores países do ponto de vista do desequilíbrio do investimento de tempo na economia do cuidado”, lembra Susana Peralta. Mas, cuidar da família “também é uma opção legítima que as mulheres podem assumir”, recorda Paula Franco. “Mas as sociedades têm de criar opções para que as mulheres possam ter também a opção de querer equilibrar as duas coisas e por vezes isso não acontece”, lamenta a bastonária dos OCC.

A partilha de tarefas em casa é cada vez mais uma realidade, sobretudo entre os jovens, mas “mesmo assim pesa sempre mais para as mulheres”. “Não podemos dizer que não. É a realidade. Uma cultura que precisa ser mudada”, diz Paula Franco.

Apesar de em matéria legislativa Portugal ser dos países mais avançados, nomeadamente com a lei da paridade, as convidadas do Encontro Mulheres com ECO sentiram uma ausência do tema na campanha dos diversos partidos, assim como nos debates. Portugal até tem uma secretaria de Estado da Igualdade e não seria pela criação de um Ministério que as coisas iriam mudar verdadeiramente, defendem.

“O pecado não está ao nível da legislação. É uma questão cultural que temos todos de mudar, com uma maior intensificação do tema nas escolas”, diz Ana Jacinto.

Além das empresas é necessário que “também as organizações tenham uma organização do tempo e do trabalho que sejam mais compatíveis com a vida pessoal tanto para homens como para mulheres”, diz Susana Peralta. A economista admite não saber qual é a solução – se o teletrabalho, a semana de quatro dias, ou outra qualquer – mas considera que é fundamental que os cargos de responsabilidade sejam eles associativos, políticos ou corporativos deixem de “exigir uma disponibilidade recorrente fora de horas, para que não haja sempre um adulto no agregado familiar a ser obrigado a fazer concessões”.

E se o teletrabalho normalmente garante uma melhor conciliação entre o trabalho e a vida pessoal, para as mulheres “é um retrocesso”, diz de forma perentória Paula Franco. “Ficam mais presas a tarefas domésticas”, justifica. “Não acho que seja muito positiva essa evolução”.

Outro dos aspetos que é preciso melhorar, defendem, é aumentar a rede de creches gratuitas, porque isso representa uma solução para onde deixar os filhos enquanto se trabalha.

Mas também melhorar a paridade das mulheres na Assembleia da República, dizem, porque a forma como as listas são elaboradas não o garante. Até porque nunca houve uma mulher Presidente da República, só houve uma mulher primeira-ministra, Maria de Lurdes Pintassilgo, e apenas durante durante seis meses, e uma presidente da Assembleia da República, Assunção Esteves. Algo que terá de mudar.

Ana Jacinto, secretária-geral da AHRESP, Paula Franco, bastonária da Ordem dos Contabilistas Certificados e Susana Peralta, economista, discutiram a persistência da desigualdade entre mulheres e homens numa conversa moderada por Mónica Silvares.

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