Tribunal de Contas alerta futuro Governo para risco de perdas na privatização da TAP e falta de controlo em novos apoios
Contratos públicos sem fiscalização prévia, ferrovia em mau estado e falta de médicos de família são outras matérias que devem ser resolvidas na próxima legislatura, segundo o TdC.
O Tribunal de Contas (TdC) já fez soar os alarmes sobre o risco de perdas para o Estado no negócio de privatização da TAP, ainda que sem mencionar diretamente o nome da companhia aérea. Num relatório, em que compila várias recomendações para o futuro Governo, o TdC alerta ainda para os custos acrescidos com a inconsistência na nacionalização e depois venda de empresas estratégicas, como se verificou com a companhia aérea, e para a falta de controlo na atribuição de apoios, como se constatou com o programa IvAucher.
Sempre que arranca um novo ciclo político, a entidade, presidida pelo juiz conselheiro José Tavares, produz um documento com um caderno de encargos para melhorar a gestão e a sustentabilidade das finanças públicas, que vai ser entregue ao Parlamento e ao Executivo, que saíram destas eleições.
O “Contributo”, com 62 páginas, ganha especial relevância no ponto relativo às privatizações, tendo em conta que uma das prioridades de Luís Montenegro passa, precisamente, pela alienação da TAP, que é 100% pública, a um privado.
No programa da Aliança Democrática (AD), coligação que junta PSD, CDS e PPM, com que Luís Montenegro venceu as legislativas – ainda faltam apurar quatro mandatos dos círculos da emigração –, lê-se, entre as medidas a adotar: “Lançar o processo de privatização do capital social da TAP”. Sem se opor à decisão política, que de resto também já foi defendida pelo líder do PS, Pedro Nuno Santos, o TdC alerta para possíveis perdas para o Estado, como aliás se verificou com a venda da ANA – Aeroportos de Portugal.
A privatização da ANA à Vinci, que arrancou em 2012, “não salvaguardou o interesse público” e foi assente em várias irregularidades e “deficiências graves”, segundo um relatório do TdC, divulgado no início deste ano. A venda foi fechada com um valor que ficou 71,4 milhões de euros abaixo do que tinha sido “oferecido e aceite”, sem que tivesse sido realizada uma “avaliação prévia” para calcular um preço base, como era “legalmente exigível”, acrescentou o fiscalizador da despesa pública.
Risco de não salvaguarda do interesse público em processos de privatização complexos, com concessões associadas e considerados urgentes, designadamente por inexistência de demonstração da mais-valia económica”.
No contributo, elaborado agora, o fiscalizador das contas do Estado volta a alertar para “o risco de não salvaguarda do interesse público em processos de privatização complexos, com concessões associadas e considerados urgentes, designadamente por inexistência de demonstração da mais-valia económica, condições prévias necessárias e imperativas incompletas e incumprimento dos objetivos da privatização”.
Assim, o TdC recomenda que, em futuras privatizações de empresas estratégicas, como a TAP, “a alienação de ativos se iniciem, após uma análise de custo e benefício, em condições que conduzam à sua regularidade, equidade, transparência, estabilidade e maximização do encaixe financeiro”.
Devem também ser “adotados mecanismos adequados de partilha de riscos, de responsabilidades e de benefícios económicos e financeiros com os parceiros privados e assumidos o acompanhamento e o controlo eficazes para assegurar a necessária transparência sobre a sustentabilidade dos negócios, incluindo análises de custo-benefício e de risco”.
Dança de cadeiras entre público e privado
Neste processo, o Tribunal alerta igualmente para o “risco de complacência e de conflitos de interesses em prejuízo da salvaguarda do interesse público” que se verificou na “transição dos membros do conselho de administração a empresa pública ANA, que avaliaram as propostas dos concorrentes à privatização, para a empresa privada sob gestão do comprador escolhido com base nessa avaliação”. É um claro aviso ao novo Governo para que evite que os atuais administradores da TAP passem depois para o board da companhia aérea, já sob a alçada de um privado.
O fiscalizador das contas do Estado também chama a atenção para o “risco de insustentabilidade das finanças públicas” devido aos “custos decorrentes da inconsistência da participação do Estado em empresas estratégicas (como no caso da reprivatização e subsequente recompra da TAP)”. Ou seja, a reversão, novamente, da nacionalização da companhia aérea, deve ser muito bem ponderada e analisada.
Ainda em relação à ANA – Aeroportos de Portugal, o TdC volta a lembrar “o risco de incumprimento de princípios orçamentais, por omissão nas contas públicas da receita das taxas aeroportuárias e demais receita bruta da concessão de serviço público aeroportuário e correspondente despesa”.
Falta de controlo na atribuição de apoios como o IVAucher
Caso o futuro Executivo decida aprovar novos apoios semelhantes ao IVAucher, por exemplo, deve adotar “um modelo de controlo que garanta o efetivo acompanhamento e validação dos valores pagos”. Recorde-se que na auditoria realizada àquele programa, o Tribunal de Contas concluiu que foram devolvidos, por erro, 427 mil euros a 19 mil consumidores.
“Os programas públicos traduzidos em mecanismos de incentivos, ou de apoios, constituem uma ferramenta importante de qualquer Governo. Contudo, para uma concretização eficaz e eficiente dos mesmos devem definir-se, logo à partida e de forma clara, os critérios subjacentes, bem como os objetivos que se visam atingir, de forma que seja possível medir e apreciar os efeitos da sua implementação”, sublinha o TdC.
No que diz respeito ao alargamento da dispensa de fiscalização prévia a mais contratos públicos, introduzido pelos últimos dois governos socialistas de António Costa, o Tribunal é bastante crítico e deixa várias recomendações ao futuro Executivo.
“O Tribunal de Contas vê com preocupação o incremento de isenções à fiscalização prévia de atos/contratos que tem vindo a ocorrer, designadamente nas leis do Orçamento do Estado e em outros diplomas legais, pelo desequilíbrio que isso representa no […] sistema de controlo da legalidade e regularidade das despesas públicas associadas à contratação pública”, lê-se no relatório.
Assim, “a execução das medidas especiais de contratação pública, aprovadas pela Lei n.º 30/2021, de 21 de maio (alterada pelo Decreto-Lei n.º 78/2022, de 7 de novembro), evidencia, até ao momento, riscos quanto ao fracionamento de despesas, défices de fundamentação, potenciais favorecimentos, aplicação sem a devida comunicação ao Tribunal de Contas e eventual deficiente execução dos contratos”, salienta o fiscalizador.
Acrescenta ainda que “a dispensa frequente da obrigação de observar procedimentos concorrenciais se afasta dos princípios constitucionais e administrativos aplicáveis na ordem jurídica portuguesa e do entendimento jurisprudencial do Tribunal de Justiça da União Europeia, segundo a qual os princípios dos tratados europeus também se aplicam a contratos abaixo dos limiares para aplicação das diretivas europeias de contratação pública”.
O TdC considera que há “risco de falta de transparência e rigor no empreendimento de obras públicas”, nomeadamente, “por falta de fiabilidade da informação, incluindo a disponível no Portal Base; transposição intempestiva de diretivas da União Europeia; planeamento deficiente das obras públicas e deficiência dos projetos de execução; e deficiências da avaliação das obras públicas”.
Ferrovia em mau estado
Na área de infraestruturas e transportes, há “risco de inoperacionalidade” devido à degradação “de 12% das obras de arte em exploração sob jurisdição direta da empresa Infraestruturas de Portugal”.
Quanto às “infraestruturas de transportes sob gestão de outras entidades públicas ou objeto de concessão”, o estado de conservação “é inferior a satisfatório para 33% da rede ferroviária, incluindo 62% da via férrea, e para 18% da rede rodoviária”. Ou seja, grande parte da ferrovia está em mau estado, nota o Tribunal de Contas.
Para resolver este problema, o Tribunal já tinha recomendado ao Governo de António Costa a avançar com: “a concretização do financiamento necessário para melhorar o estado das infraestruturas; o aperfeiçoamento da gestão do risco de inoperacionalidade de infraestruturas de transportes para reforçar a confiança dos utentes; a implementação de um sistema de gestão do universo das infraestruturas de transportes (seja sob gestão de entidades públicas ou objeto de concessão) com informação periódica sobre o seu estado e inspeção; e a divulgação periódica de matrizes de risco setoriais, bem como as medidas tomadas e a tomar para mitigação desse risco”.
Falta de médicos de família e subfinanciamento
A falta de médicos de família para todos os portugueses também está no centro das preocupações do TdC. “A persistência de constrangimentos no acesso dos cidadãos a cuidados de saúde no SNS está patente no número crescente de utentes sem médico de família”, salienta a entidade, liderada por José Tavares.
Para além disso, critica “a proporção de tempos de espera para cuidados de saúde programados que ultrapassam os tempos máximos de resposta garantidos definidos na Carta dos Direitos de Acesso aos Cuidados de Saúde pelos Utentes do Serviço Nacional de Saúde”.
“As necessidades de recapitalização do SNS subsistem, decorrentes da acumulação de resultados líquidos anuais negativos. De igual modo, também persistem os problemas de subfinanciamento dos contratos-programa celebrados com as unidades hospitalares do SNS que, de forma recorrente, preveem insuficientes rendimentos para cobrir os gastos estimados com a atividade prevista”, destaca o TdC.
A persistência de constrangimentos no acesso dos cidadãos a cuidados de saúde no SNS está patente no número crescente de utentes sem médico de família.
Estes constrangimentos pressionam os serviços de urgência e os hospitais e “podem condicionar, adicionalmente, a realização de atividade programada”. No que respeita à degradação dos cuidados de saúde oncológicos, o Tribunal recomendou ao Ministério da Saúde “a aprovação, publicação e implementação de um plano quantificado e calendarizado de recuperação da atividade não realizada”.
“As limitações e constrangimentos identificados nos sistemas de informação do SNS no âmbito das auditorias desenvolvidas evidenciam a necessidade da sua modernização. O Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) configura-se como instrumento fundamental para a concretização daquele objetivo. O Tribunal destaca, ainda, a importância de garantir que, em situações de necessidade de fixação administrativa de preços, esta seja adequadamente fundamentada, assegurando a transparente utilização de dinheiros públicos e a economia e eficiência da despesa pública.
Novo Governo tem de renovar contratos com universidades
O Tribunal de Contas volta a alertar que a programação orçamental para a educação e ensino superior não tem “o detalhe devido”. Para além disso, sublinha que “as dotações, nem sempre suficientes”, comprometem “o princípio da transparência e o processo orçamental”.
Depois chama a atenção para um problema que remonta ao primeiro ano do primeiro Governo de António Costa: “Desde 2016 que o financiamento das instituições de ensino superior assenta em contratos de legislatura, celebrados com o Governo, e não na fórmula prevista na Lei de Bases de Financiamento, sendo que: os contratos, dependentes da vigência do Governo, não garantem, além da legislatura, a estabilidade e a previsibilidade do financiamento relevantes para a gestão autónoma e estratégica das instituições de ensino superior”.
Ou seja, “sempre que ocorre a dissolução da Assembleia da República e a marcação de eleições, colocando termo antecipado ao Governo, o contrato de legislatura cessa com a posse de um novo Governo Constitucional e o financiamento é colocado em crise”. Assim, sendo, “o Tribunal recomendou o cumprimento da Lei de Bases de Financiamento ou as diligências necessárias à sua alteração”.
Tendo em conta que os Governos de António Costa não mudaram o pressuposto dos contratos de legislatura, o novo Executivo que entrar em funções terá de, rapidamente, renovar os programas orçamentais com as universidades sob pena de colocar em risco o seu financiamento.
O TdC destaca ainda a desatualização do “regime de suplementos remuneratórios a titulares de cargos de gestão nas instituições de ensino superior”, que tem mais de 30 anos”, que “tem gerado desconformidades na aplicação do regime de suplementos”. Por exemplo, tem-se equiparado os cargos de gestão de unidades orgânicas aos de unidades de ensino com a atribuição de suplementos por valor superior, ou não previstos legalmente.
Atrasos no PRR para reforço de equipamentos sociais
Na área da Segurança Social, o Tribunal destaca “os atrasos na operacionalização dos investimentos inscritos no PRR relacionados com a requalificação e alargamento da rede de equipamentos e respostas sociais”.
Para além disso, considera que “é necessário rever os contratos”, uma vez que foram “identificadas irregularidades”, pelo que é preciso “melhorar o sistema de controlo interno do Instituto da Segurança Social – entidade responsável pela implementação física e financeira do investimento – para não comprometer a sua boa execução”.
O TdC identificou ainda “dificuldades de recrutamento de recursos humanos para trabalhar na área social, em particular nas respostas sociais dirigidas a pessoas idosas, num contexto em que o envelhecimento da população aumenta a pressão sobre a rede de equipamentos e respostas sociais existentes”.
Numa análise mais ampla à execução dos fundos europeus, o fiscalizador lembra que, “nos quadros financeiros plurianuais anteriores, verificou-se uma lenta absorção dos fundos, constatando-se dificuldades no cumprimento dos objetivos previstos nos programas”.
Descentralização pode agravar problemas de coesão
No âmbito da descentralização das competências da administração central para as autarquias, o TdC alerta para a “incapacidade de gerar informação financeira completa e credível relacionada com o exercício das competências transferidas”. “Da mesma forma que se constatou a necessidade de melhorar os mecanismos de monitorização e de acompanhamento do processo, assim como a simplificação de procedimentos administrativos associados ao mesmo”, acrescenta.
O Tribunal sugere “a necessária a melhoria das regras que determinam o financiamento das competências transferidas”, sob pena de a descentralização poder vir a “acentuar os problemas de coesão territorial”.
Quanto à saúde financeira dos municípios, “o Tribunal verificou insuficiências na deteção e resposta precoce aos desequilíbrios, bem como na conceção de planos eficazes e na monitorização da sua execução”.
Assim, devem ser ponderadas medidas que: “permitam a deteção de situações de risco de degradação da situação financeira, nomeadamente através da monitorização de dados financeiros dos grupos municipais; confiram maior eficácia à conceção e acompanhamento dos processos de ajustamento financeiro; mitiguem os desequilíbrios que resultam das diferenças na capacidade de obtenção de receitas próprias”.
“Lacunas importantes” na prestação de contas
No capítulo relativo à prestação de contas, a entidade fiscalizadora identifica “lacunas importantes”, nomeadamente quanto a “atrasos” e faltas injustificadas, “por motivos instrumentais, o que não permite o cumprimento pleno dos princípios de rigor e de transparência nas contas públicas”.
O TdC lembra que, “compete ao Governo apresentar, até 15 de maio de 2024, a Conta Geral do Estado (CGE) referente a 2023, a qual deve compreender, pela primeira vez, um conjunto completo de demonstrações orçamentais e financeiras consolidadas, a sujeitar a certificação do Tribunal de Contas”. Essa certificação “deverá ser emitida até 30 de setembro de 2024”, acrescenta. Porém, só em 2026 é que o Estado terá condições para apresentar a CGE com os elementos necessários para a devida certificação.
O Tribunal conclui que não estão preenchidas as “condições imprescindíveis à preparação de demonstrações orçamentais e financeiras consolidadas a integrar a CGE“. “Face à complexidade da implementação das soluções necessárias, os constrangimentos afiguram-se inultrapassáveis no prazo estabelecido para a apresentação da CGE de 2023, o que determina a ausência do objeto a certificar e, consequentemente, a impossibilidade de certificação da referida conta”.
Neste contexto, “o Tribunal foi informado que, em função da nova programação e respetiva calendarização determinada pela cadência e conclusão de investimentos indispensáveis, enquadrados no PRR, a primeira CGE suscetível de ser elaborada com os instrumentos previstos na Lei de Enquadramento Orçamental será a de 2026″.
Para melhorar o reporte financeiro, como um todo, o TdC recomenda a “implementação da LEO, como elemento essencial para um reporte que sustente uma adequada fundamentação da gestão financeira pública”.
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