Trabalhadores têm direito a criticar chefes. Mas há limites
Tribunal Europeu dos Direitos Humanos deixou claro que criticar o chefe é um direito do trabalhador. Advogados confirmam que tem sido essa a leitura dos tribunais portugueses. Mas há limites, avisam.
Bastou ter enviado um email para o departamento de recursos humanos a criticar o vice-diretor do banco turco no qual trabalhava para que Dede fosse despedido. O caso chegou ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, que, numa decisão recente, reconheceu que, afinal, Dede tinha mesmo direito a criticar o chefe, declarando que o seu despedimento violou a liberdade de expressão. A lei portuguesa também admite que os trabalhadores critiquem as chefias, garantem os advogados ouvidos pelo ECO. Isto desde que respeitem certos limites, nomeadamente o normal funcionamento da empresa.
Voltemos a Dede por uns instantes. Na mensagem enviada ao departamento de recursos humanos, o trabalhador comparava o vice-diretor do banco ao empresário norte-americano Jeff Bezos, criticando o seu estilo de gestão, a falta de atenção aos empregados, o autoritarismo e o favoritismo mostrado nos processos de recrutamento.
Não tardou até que o procedimento disciplinar que levaria ao seu despedimento fosse iniciado. E o Tribunal do Trabalho regional acabou por reconhecer validade na posição do empregador.
Já o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, numa decisão recente, veio contrariar esses entendimentos. “Houve uma violação do artigo 10 (liberdade de expressão) da Convenção Europeia dos Direitos Humanos“, sublinha o TEDH.
Houve uma violação do artigo 10 (liberdade de expressão) da Convenção Europeia dos Direitos Humanos
Por um lado, destaca o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, os tribunais regionais não tentaram comprovar que o trabalhador tinha causado um impacto negativo no empregador. E, por outro, a mensagem foi enviada em prol do interesse da empresa e para um “pequeno grupo de endereços”.
Portanto, no entender do TEDH, criticar o chefe é um direito, que (pelo menos, neste caso) não merece ser punido com despedimento. Mas será que se pode dizer o mesmo para Portugal?
Criticar sim, mas com “sentido construtivo”
Luís Branco Lopes, da sociedade de advogados Antas da Cunha ECIJA, explica: “Há mais de 15 anos que os nossos tribunais têm reconhecido que o trabalhador tem direito a expressar livremente as suas ideias e pontos de vista, inclusivamente sobre a atuação dos seus superiores hierárquicos, desde que seja feita em sentido construtivo“.
O Código do Trabalho reconhece, de forma expressa, inclusivamente no âmbito da empresa, a liberdade de expressão e de divulgação do pensamento e de opinião dos trabalhadores.
De acordo com este advogado, o Código do Trabalho reconhece “de forma expressa” o direito à liberdade de expressão e divulgação do pensamento dos trabalhadores, ainda que estabeleça certos limites, como “os direitos de personalidade de cada trabalhador e do empregador” e, ainda, o dever de respeito do normal funcionamento da empresa.
Portanto, há casos e casos. “É necessário averiguar as circunstâncias“, salienta Simão de Sant’Ana, da Abreu Advogados, que detalha que um despedimento feito neste âmbito pode mesmo ser considerado nulo se não forem produzidas “provas bastantes” que mostrem que o trabalhador ultrapassou esses limites.
“Será sempre necessário analisar em concreto e detalhadamente a forma e conteúdo da crítica para se avaliar se a mesma constitui um comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho”, confirma Gonçalo Pinto Ferreira, da sociedade Telles.
Forma e conteúdo importam?
No caso de Dede, o TEDH faz questão de salientar que as críticas foram feitas com vista ao bom funcionamento da empresa e que apenas um pequeno grupo de pessoas ficou a conhecê-las. Também em Portugal, a forma, conteúdo e audiência das críticas feitas ao chefe podem determinar se o trabalhador deve ou não ser sancionado.
Gonçalo Pinto Ferreira assegura que a possibilidade de aplicar uma sanção (seja ela um despedimento ou outra) está dependente “de se poder demonstrar que a forma e conteúdo da crítica constitui um incumprimento dos deveres do trabalhador“. “Estará sujeito a uma apreciação sobre a forma e conteúdo da crítica, e até porventura os potenciais efeitos da mesma na organização“, insiste o mesmo.
Também Simão de Sant’Ana assinala que o “onde” e o “a quem” da crítica “fazem toda a diferença”. Por exemplo, “uma crítica enviada ao departamento de recursos humanos, “a reportar uma situação que incomoda um trabalhador, é, à partida, lícita e poderá ter cariz construtivo“, diz.
Uma crítica enviada ao departamento de recursos humanos, “a reportar uma situação que incomoda um trabalhador, é, à partida, lícita e poderá ter cariz construtivo
No mesmo sentido, Luís Branco Lopes sublinha que uma crítica apresentada ao departamento de recursos humanos tem uma “probabilidade manifestamente superior” de ser considerada “uma mera concretização da liberdade de expressão“. “Em consequência, será difícil verificar-se um grau de culpa associado a uma infração disciplinar”, declara o advogado.
Ainda assim, alerta: “também se diga que não será pelo facto de a crítica ser do conhecimento de outros trabalhadores que passa a ser vista como infração disciplinar”. Em linha com o advogado da Telles, Luís Branco defende que é determinante verificar se a crítica afetou o normal funcionamento da empresa, “e se existe censurabilidade ao ponto de reconhecer um grau de culpa passível de exercício de poder disciplinar.”
Despedimento só em último caso
Se o empregador demonstrar que a crítica violou mesmo os limites e os deveres do trabalhador, então poderá avançar com uma sanção disciplinar, que varia em função da gravidade da situação.
De acordo com os advogados ouvidos pelo ECO, o despedimento é o último caso. “O despedimento sem qualquer indemnização ou compensação surgirá como a ultima ratio, reservada às situações de crise irreparável da relação jurídica de trabalho“, considera Sílvia S. Cristóvão, da Pares Advogados.
Mas poderá haver lugar a uma repreensão registada, perda de dias de férias, suspensão com perda de retribuição e de antiguidade. Ou, nos casos menos graves, uma chamada de atenção ao trabalhador pelo comportamento reprovável que adotou.
“Para além do despedimento, o artigo 328.º do Código do Trabalho elenca outras sanções disciplinares tais como repreensão, repreensão registada, sanção pecuniária, perda de dias de férias e suspensão do trabalho com perda de retribuição e de antiguidade”, enumera a mencionada advogada.
O que traz o TEDH para Portugal?
A decisão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos relativamente a Dede não traz inovações face ao enquadramento jurídico português, mas poderá “reforçar a noção de que o direito à crítica é um direito humano fundamental“, destaca Gonçalo Pinto Ferreira. O advogado da Telles entende que, desta forma, poderá “ampliar-se a legitimidade dada aos trabalhadores de criticarem os seus empregadores“.
Esta decisão do TEDH poderá ter a virtualidade de, também para o contexto português, reforçar a noção de que o direito à crítica é um direito humano fundamental.
“A própria decisão do Tribunal Europeu procurou ter em conta as circunstâncias concretas de forma, conteúdo e consequências da crítica feita pelo trabalhador, o que poderá reforçar a perspetiva de que uma crítica por si só não constitui um facto disciplinar, mas também que nem todas as críticas serão necessariamente aceitáveis”, pormenoriza o jurista.
A propósito, Sílvia S. Cristóvão nota que, no caso avaliado pelo TEDH, houve um “tom de elevado sarcasmo“, mas o direito à crítica “é justificado por não terem sido utilizadas expressões ofensivas ou vulgares“.
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