IA, chips e nova legislação. Os desafios digitais da UE na próxima meia década

Os próximos eurodeputados, e a Comissão Europeia, terão pela frente muitos desafios digitais, alguns dos quais poderão ainda nem ser conhecidos. Saiba os temas que vão marcar a próxima legislatura.

Garantir a soberania na região, explorar melhor a economia dos dados e aplicar a nova regulamentação existente serão alguns dos temas que irão marcar a próxima legislatura no Parlamento Europeu e na Comissão Europeia nos planos tecnológico e digital, segundo especialistas contactados pelo ECO.

No dia 21 de maio, a pouco mais de duas semanas das eleições europeias, o Conselho da União Europeia (UE) deu aprovação final à lei europeia da inteligência artificial (AI). A lei contempla um período de dois anos para a sua implementação e é pioneira a nível mundial, pelo que só mais tarde será possível avaliar os seus resultados.

Além disso, já estão em vigor dois dos pacotes legislativos que mais marcaram a atual legislatura, a Lei dos Serviços Digitais e a Lei dos Mercados Digitais. A primeira visa criar um espaço digital mais seguro para consumidores e empresas, enquanto a segunda pretende garantir condições iguais para todas as empresas digitais num setor dominado por gigantes.

“Diria que temos, por um lado, desafios significativos ao nível da implementação dos principais atos legislativos que foram aprovados nesta legislatura no que diz respeito à transição digital e, por outro, há um conjunto de desafios novos, de novas linhas de política pública a abrir”, defende Tiago Antunes, que até ao passado mês de abril era secretário de Estado dos Assuntos Europeus no Governo de António Costa.

A vice-presidente da Comissão Europeia, Margrethe Vestager, que tem comandado a regulamentação do digital na UE nos últimos anosPiaras Ó Mídheach/Web Summit via Sportsfile

Da cibersegurança ao imbróglio da Huawei

Entre os “desafios novos” estarão, por exemplo, todas as matérias relacionadas com a soberania digital da UE. A próxima Comissão Europeia e os eurodeputados que serão eleitos neste fim de semana terão de encontrar respostas para problemas como o aumento do número de ciberataques no contexto das duas guerras em curso às portas do bloco, ou a dependência externa para obtenção de componentes críticos, como os semicondutores.

“A cibersegurança, infelizmente, está pior e a tendência é para piorar. Há cada vez mais atores interessados em explorar vulnerabilidades e as vulnerabilidades continuam a existir”, nota Luís Antunes, professor catedrático do Departamento de Ciência de Computadores da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto.

Neste capítulo, levanta-se a sensível questão do papel que empresas estrangeiras como a Huawei podem ou não desempenhar no desenvolvimento das redes 5G na Europa. Nos últimos meses, a Comissão tem tido menos pudor em sugerir que a tecnologia desenvolvida por esta empresa chinesa acarreta riscos de segurança para os cidadãos e empresas da UE, como alerta há anos a diplomacia norte-americana, mas a própria refuta.

À luz das recomendações da Comissão, apresentadas em 2020, um organismo do Estado português decidiu em maio de 2023 proibir as operadoras de telecomunicações de recorrerem a estes fornecedores (a ZTE, outra empresa chinesa, também estará incluída), que são considerados de “risco elevado”.

Mas nem todos os países estão convencidos e muitos ainda não implementaram nenhuma deliberação sobre o assunto, ou já disseram que nem o planeiam fazer (por exemplo, Espanha). Em junho do ano passado, no rescaldo da decisão portuguesa — vista no setor como uma das mais restritivas do bloco, por abranger todas as partes da rede e não permitir exceções — o Financial Times noticiou que a Comissão poderá vir a decidir tornar obrigatório o que, atualmente, são apenas recomendações.

A Huawei “tem algumas partes de equipamento que não têm qualquer problema, mas outras podem ter algum problema”, admitiu em setembro de 2023 o comissário europeu Thierry BretonLusa

Saciar o apetite europeu por chips

Ademais, “a Europa perdeu toda a cadeia de produção de hardware“, diz o professor Luís Antunes. Será, por isso, necessário assegurar que o Regulamento Circuitos Integrados, que entrou em vigor em setembro, produz os efeitos desejados. A UE irá mobilizar mais de 43 mil milhões de euros de fundos públicos e privados para, em conjunto com os Estados-membros e parceiros, “preparar, antecipar e responder rapidamente a eventuais perturbações da cadeia de abastecimento”, como indica um texto informativo da Comissão.

“A chamada soberania digital vai estar na agenda, entendida num sentido mais amplo. A Europa tem de ser o mais autossuficiente possível em termos de produção da sua tecnologia. O eclodir da pandemia expôs as fragilidades em cadeias de abastecimento e percebemos como estamos dependentes de microchips e de outros itens. Vai haver uma tentativa de a Europa ser mais autossuficiente”, vaticina José Guimarães, especialista em assuntos digitais no Direito da UE, baseado em Bruxelas.

O abastecimento desses componentes críticos, maioritariamente produzidos em Taiwan, um território particularmente exposto às tensões geopolíticas com a China, é determinante para a UE garantir que não perde a onda da IA, vista globalmente como um fator determinante de competitividade. Mas engana-se quem acredita que, com a entrada em vigor da nova Lei da IA, o trabalho da UE está feito nesta matéria.

Segundo José Guimarães, “algo que tem passado bastante despercebido” é “uma segunda proposta de diretiva”, publicada em setembro de 2022, para “lidar com a questão da responsabilidade” na IA. O objetivo da Comissão será garantir que qualquer cidadão lesado por um sistema inteligente tem o mesmo nível de proteção que um cidadão prejudicado por outras tecnologias (por exemplo, quem é responsável quando um carro autónomo é envolvido num atropelamento).

“Passamos de um plano, diria, legislativo para o plano do enforcement e da aplicação de uma série de novos poderes que a Comissão ganha”, resume Tiago Antunes, para quem “achar que se aprovaram estes atos legislativos e já está feito seria, obviamente, um erro e uma ilusão”. O ex-secretário de Estado prevê também “grandes desafios neste contexto geopolítico mais inseguro, incerto e instável, em termos de cibersegurança e de soberania digital”.

Dados aos dados

Depois, desde 2018 que a UE tem regras harmonizadas (e apertadas) ao nível da proteção de dados pessoais, com a entrada em vigor do Regulamento Geral da Proteção de Dados (RGPD). Mas os dados são um ingrediente essencial da IA. Sobre este dilema aparente, Luís Antunes explica que não é necessário ter acesso aos dados para se retirar proveito deles. Assim, a economia dos dados estará em destaque na UE ao longo dos próximos anos, sem que o RGPD inviabilize essa aposta.

“O mais premente para mim, e se calhar mais interessante, é o Espaço Europeu de Dados de Saúde. É uma primeira iteração de espaços de dados de saúde de algo muito mais abrangente”, aponta o professor catedrático do Porto. “O desafio é criarmos tecnologia que consiga tirar valor destes dados sem termos acesso a eles, cumprindo o regulamento legal e respeitando os direitos europeus. O benefício é podermos trabalhar com os dados de toda a população europeia, e podermos ter modelos de IA com base não só em dados portugueses, por exemplo, do cancro do estômago, que tem algumas componentes locais, e podermos começar a fazer estes algoritmos de IA com base em toda a população europeia”, salienta o especialista.

Com as eleições ao virar da esquina, têm ressurgido as preocupações com o flagelo da desinformação e da alegada interferência externa por parte de países hostis, como a Rússia. Para dar resposta a isso, Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, prometeu este ano lançar o chamado “Escudo Europeu da Democracia” caso consiga conquistar um segundo mandato à frente da Comissão (o que está longe de garantido). “Vai olhar para a desinformação da perspetiva da ingerência estrangeira”, explica José Guimarães, e “ver de que forma poderão ser criados mecanismos de coordenação com vista a melhorar a resiliência europeia”, acrescenta.

Há muito para fazer com base naquilo que foi aprovado. E depois há áreas ainda futuras, de desenvolvimento, que diria que têm muito a ver com as tecnologias de desenvolvimento mais acelerado, como por exemplo a IA e com as áreas em que o mercado europeu ainda está fragmentado e carece de soluções únicas.

Tiago Antunes

Ex-secretário de Estado dos Assuntos Europeus

A estes pontos juntam-se muitos outros, do papel da tecnologia nos planos da UE para a descarbonização à proteção da propriedade intelectual. Tiago Antunes aponta para o recém-apresentado Relatório Letta, elaborado pelo ex-primeiro-ministro italiano Enrico Letta, sobre o futuro do mercado único, para dizer que espera desenvolvimentos na criação de uma “quarta liberdade europeia, que seria a liberdade do conhecimento e da inovação”; avanços na união do mercado de capitais, nomeadamente para melhorar as condições de financiamento para ajudar startups tecnológicas a escalarem; e na redução da fragmentação do mercado das comunicações eletrónicas.

Por sua vez, Luís Antunes recorda os desafios que surgirão com os avanços na computação quântica, que tem “potencial para mudar drasticamente toda a componente do digital” e que poderá exigir respostas da Comissão e do Parlamento Europeu; assim como da chamada Internet das Coisas (IoT) aplicada ao setor industrial e à gestão da vida nas cidades; bem como a massificação da condução autónoma.

Já José Guimarães destaca o desafio da “segurança das infraestruturas em geral, que vai permanecer um tema central”, acredita. O especialista lembra que a Comissão publicou em fevereiro um livro branco sobre o assunto, e lançou uma consulta pública, com vista a definir “medidas legislativas” que garantam infraestruturas digitais seguras e estáveis, que são um pilar do programa Década Digital da UE.

Mas, em meia década, muita coisa pode acontecer. Logo, alguns dos desafios que poderão ocupar os responsáveis europeus nos próximos cinco anos podem nem sequer ser ainda conhecidos, conclui Luís Antunes: “Vão ter de aparecer. Eles existem e vão ter que ser definidos, e acho que terá de ser a nível de Comissão Europeia.” E essa incerteza, que resulta da transformação digital acelerada em que vivemos, será, ela própria, um desafio.

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