Decisões que rejeitam contratos a estafetas já são quase quatro vezes mais do que as que reconhecem
Das decisões dos tribunais de primeira estância que já são conhecidas, 53 não reconhecem contratos entre estafetas e plataformas, enquanto 14 admitem vínculos. Rejeições são quase quatro vezes mais.
Em pouco mais de um ano, os tribunais portugueses recusaram reconhecer contratos de trabalho entre 66 estafetas e as plataformas digitais. Ainda assim, 29 estafetas viram reconhecido um vínculo de trabalho, com base na lei que entrou em vigor em maio do ano passado. O balanço foi feito esta terça-feira pela inspetora-geral da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), entidade que ainda não conseguiu entregar ao Parlamento o relatório da fiscalização ao trabalho nas plataformas digitais.
“Fazendo uma nota daquilo que a ACT tem conhecimento, tivemos já 14 decisões de primeira instância com reconhecimento de contrato de trabalho e 53 não reconhecendo a existência de contrato de trabalho. As que não reconhecem abrangem 66 estafetas, que foram identificados pela ACT e foram participados ao Ministério Público. Das que reconhecem, são relativas a 29 estafetas“, indicou Maria Fernanda Campos, numa audição requerida pelo Bloco de Esquerda.
“É objetivo que a maioria das decisões não reconhece [os contratos]. Já a decisão dos tribunais superiores reconhece, com argumentos diferentes”, observou.
A propósito, a responsável acrescentou que, recentemente, foram conhecidos dois acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães, que reconhecem a existência de contrato de trabalho entre dois estafetas as plataformas, e dois acórdãos do Tribunal da Relação de Évora, dos quais um reconhece um vínculo de trabalho, enquanto outro descarta-o.
Importa explicar que na base destas decisões está a lei que veio alterar o Código do Trabalho em maio do ano passado, abrindo a porta a que os estafetas sejam considerados trabalhadores (dependentes) das plataformas, desde que haja indícios de subordinação, como a organização do tempo de trabalho e a estipulação das remunerações.
Com base nessa lei, a ACT lançou uma ação inspetiva (sobretudo entre junho e dezembro do ano passado, precisou a inspetora-geral esta terça-feira), que envolveu 403 inspetores do trabalho, e mais de três mil horas de formação.
“A ACT foi para o terreno. Inicialmente em Lisboa e Porto, por serem os sítios com maior concentração de estafetas e, depois, à medida que fomos progredindo no conhecimento, fomos estendendo aos 32 serviços da ACT”, explicou Maria Fernanda Campos.
Nessas ações inspetivas, a ACT identificou um total de 2.798 estafetas, sendo que a maioria eram estrangeiros oriundos de países terceiros à União Europeia, observou a responsável. “Com 63% de nacionalidade brasileira. E Índia, Bangladesh e Paquistão com 31% dos trabalhadores”, detalhou a responsável, que notou, “por curiosidade”, que também foram identificados nacionais de Itália e Luxemburgo a trabalhar para plataformas em Portugal.
Na sequência dessa ação, foram abertos 1.765 processos inspetivos, que abrangeram 2.798 indivíduos e 139 entidades.
“Na sequência dessa ação, foram abertos 1.765 processos inspetivos, que abrangeram 2.798 indivíduos e 139 entidades“, avançou ainda a inspetora-geral. E realçou que, dessas entidades, 16 eram plataformas, 50 eram intermediários formais e cerca de outros 70 eram angariadores e alugueres de contas.
“Formulámos 1.217 autos de notícia o e autos por inadequação do vínculo e fizemos as mesmas participações ao Ministério Público menos três, porque houve uma plataforma portuguesa que, perante o auto, voluntariamente assumiu os trabalhadores como tal, aplicando contrato de trabalho”, sublinhou ainda Maria Fernanda Campos.
Sobre a fiscalização do terreno, a inspetora-geral reconheceu ainda dificuldades. Por um lado, os inspetores encontraram “barreiras linguísticas” e tiveram de ter apoio na tradução. Por outro, depararam-se com a surpresa das plataformas, às quais tiveram de explicar como funcionaria o processo de inspeção.
A lei dita que a ACT tinha não só de fazer uma “uma campanha extraordinária e específica de fiscalização” do trabalho nas plataformas entre maio de 2023 e maio de 2024, como elaborar um relatório a ser entregue à Assembleia da República. Os deputados da Comissão do Trabalho pediram esse relatório, mas não o receberam, até ao momento.
A ACT, apesar do esforço, não conseguiu elaborar o relatório atempadamente. Está em tratamento e há de ser concluído, como determina a lei.
“A ACT, apesar do esforço, não conseguiu elaborar o relatório atempadamente. Está em tratamento e há de ser concluído, como determina a lei”, salientou a inspetora-geral, que atirou também que há ainda um “longo trabalho pela frente” no que diz respeito à fiscalização das plataformas digitais.
A ministra do Trabalho, Maria do Rosário do Trabalho, já assinalou que o trabalho nas plataformas digitais será uma das matérias a revisitar, no âmbito da reavaliação das mudanças à lei do trabalho que foram feitas na primavera do ano passado.
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