Dos códigos de conduta à informalidade, como gerem as empresas as relações pessoais entre trabalhadores?
Empresas com sete ou mais trabalhadores têm de ter um código de boa conduta, mas não tem de incluir necessariamente regras sobre as relações pessoais entre trabalhadores.
O tema ganhou relevo com a recente polémica em torno de um relacionamento próximo e pessoal mantido em segredo entre o CEO demissionário da Galp e uma diretora de topo da cotada. Mas não se extingue nessa empresa. Afinal, como gerem as empresas as relações pessoais entre os trabalhadores?
Os empregadores com, pelo menos, sete trabalhadores têm de ter códigos de boa conduta, mas estes não incluem necessariamente regras sobre as relações entre colegas, explicam os advogados ouvidos pelo ECO. Assim, há várias empresas no panorama nacional que não têm fixadas quaisquer regras internas sobre esta matéria.
Desde 2017 que as empresas com sete trabalhadores ou mais têm de ter, por lei, códigos de conduta. Mas estes visam prevenir e combater o assédio no trabalho, pelo que não é obrigatório que incluam regras quanto ao relacionamento pessoal entre os trabalhadores.
Aliás, o advogado João Roque Branco, da Gómez-Acebo & Pombo, ressalva em declarações ao ECO, que “não se pode confundir” a matéria do assédio com as relações pessoas entre trabalhadores, “ainda que de cariz íntimo e romântico”.
Ainda assim, estes códigos de boa conduta podem, sim, ir mais longe do que está na lei e debruçar-se, por exemplo, sobre as relações entre trabalhadores e os “potenciais conflitos de interesse que rodeiam essas relações”, indica o mesmo.
Segundo o advogado, são raros, no cenário português, os códigos de conduta que proíbam expressamente ou obrigam à revelação pelos trabalhadores de relações afetivas entre estes, “sendo bastante mais frequente e generalizada a prática de remeter a questão da existência de relações íntimas entre os trabalhadores para o quadro mais geral dos conflitos de interesse“.
Na mesma linha, José Pedro Anacoreta, sócio da PLMJ, diz ao ECO que “não é muito comum” haver regulamentos internos nas empresas portuguesas quanto às relações pessoais entre trabalhadores, deixando claro que até seria ilegal proibir expressamente as relações românticas. “Não podemos impedir as pessoas de se relacionarem, desde que isso não tenha reflexos no trabalho”, defende.
Às vezes, existem regras para evitar que familiares não estejam no mesmo departamento de uma empresa… Mas mesmo isso é raro.
Já no que diz respeito às relações familiares, o advogado indica que existem empresas que têm definidas regras para evitar que membros de uma família trabalhem no mesmo departamento, mas mesmo essas “são raras”, diz.
Regra geral, as relações pessoais entre trabalhadores são, assim, tratadas “caso a caso”, de forma mais informal, explica José Pedro Anacoreta.
Também em matérias de negociação coletiva, esta não tem sido uma matéria discutida, garantem os advogados ouvidos pelo ECO, pelo que, mesmo a nível setorial, tende a não existir um regulamento sobre as relações pessoais entre colegas. Antes, os dados conhecidos relevam que são, sobretudo, os salários o principal foco da negociação coletiva.
Encaixar as relações no combate à corrupção
Para as empresas que tenham, pelo menos, 50 trabalhadores, há mais obrigações a cumprir do que a referida quanto ao assédio no trabalho. Ao abrigo do Regime Geral de Prevenção da Corrupção, têm de estabelecer, nomeadamente, um plano de prevenção, criar um canal de denúncias, dar formação sobre a matéria e definir um código de conduta.
“As empresas tiveram de criar códigos de conduta que estabelecem as regras de atuação de todos os dirigentes e trabalhadores em matéria de ética profissional“, lembra Gonçalo Pinto Ferreira, sócio da Telles, em conversa com o ECO.
Mais uma vez, o foco do código a que as empresas estão obrigadas por lei não são as relações pessoais ou familiares entre os trabalhadores, mas os empregadores podem aproveitar para o fazer, até para garantir a “imparcialidade e transparência”. Deste modo, o advogado da Telles refere que “muitas empresas” optam por ir para lá dos temas referentes à corrupção, não sendo “invulgar ver nos códigos de conduta de grandes empresas um conjunto de regras sobre relações”, salienta.
A experiência demonstra que, na elaboração dos códigos de conduta, muitas empresas optam por ir para lá dos temas referentes à corrupção.
Por exemplo, “muitas vezes” está definida a obrigatoriedade de comunicar relações que podem gerar conflitos de interesse, de modo a que a empresa possa tomar medidas, assinala Gonçalo Pinto Ferreira. “Já tive casos em que as empresas encontraram funções alternativas noutros departamentos [para os empregados], depois de terem sido comunicadas as relações”, conta o advogado.
O sócio da Telles admite que estas são questões sensíveis, sendo preciso encontrar um equilíbrio com a liberdade pessoal do trabalhador. “Tem de haver algum bom senso e equilíbrio”, defende.
Por exemplo, no caso de dois cônjuges que trabalhem numa linha de produção numa fábrica que não reportem um ao outro pode não haver necessidade de um travão. Circunstância diferente são situações que envolvem um cônjuge que é chefe do outro ou responsável pela sua avaliação. “Neste contexto, não me repugna não pode haver relações pessoais“, afirma o mesmo.
“É essencial que nessa fixação seja realizada uma ponderação adequada entre as obrigações dos trabalhadores (por exemplo, em matéria de reporte), a proteção da sua vida privada e o modo e instrumentos ao dispor da empresa para prevenir, ou reagir, a eventuais desconformidades”, argumenta, no mesmo sentido, Tiago Cochofel, da Antas da Cunha Ecija.
Caso amoroso pode levar a despedimento?
Importa notar que quem violar as regras que fiquem previstas nesse âmbito não é alvo de um despedimento com justa causa de forma automática. Mas tal não está também totalmente fora da mesa, assume Gonçalo Pinto Ferreira. Há que apurar os factos e perceber o impacto da relação em causa.
O advogado João Roque Branco também considera que importa apurar a repercussão do comportamento na dinâmica empresarial, havendo, mais uma vez, casos e casos.
Trata-se, tão só, de reconhecer que, em certos casos, a dinâmica empresarial, até para a defesa do bem estar dos trabalhadores coletivamente considerados, implica uma postura de permanente transparência e isenção daqueles que detém poder de direção, poder disciplinar e poder de decisão.
Assim, atira: “não será relevante, para salvaguardar qualquer conflito de interesses, que esse mesmo trabalhador revele ao seu empregador que se encontra numa relação afetiva com um dos trabalhadores sujeitos à sua avaliação? E não será relevante, do ponto de vista disciplinar, que aquele primeiro trabalhador não tenha cumprido tal dever, escondendo do seu empregador aquele facto, participando no processo de decisão que levou à promoção do seu parceiro romântico, eventualmente em detrimento de outros trabalhadores? Pensamos que sim, que todas estas questões podem assumir, no caso concreto, relevância disciplinar por poderem constituir uma violação do dever de lealdade do trabalhador para com o empregador“.
Na visão do mesmo, há que reconhecer que, em certos casos, a dinâmica empresarial, até para a defesa do bem estar dos trabalhadores, “implica uma postura de permanente transparência e isenção daqueles que detém poder de direção, poder disciplinar e poder de decisão”. Daí que, como lembra a famosa frase, “à mulher de César não basta ser, deve parecer”,remata João Roque Branco.
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
Dos códigos de conduta à informalidade, como gerem as empresas as relações pessoais entre trabalhadores?
{{ noCommentsLabel }}