Como acelerar os megaprocessos? Magistrados lançam propostas
O grupo de trabalho “Megaprocessos e processo penal: carta para a celeridade e melhor justiça” apresenta esta terça-feira as suas conclusões sobre os desafios e soluções para casos complexos.
Limitar a instrução ao debate instrutório e respetiva decisão, permitir o recurso a inteligência artificial para elaborar acórdãos, criação do assessor virtual para juízes, assessores técnicos privativos para juízes nos megaprocessos, taxas de justiça mais altas para os megaprocessos, multas contra “as demoras abusivas dos processos”, criação de equipas especiais de funcionários judiciais, tradução imediata de testemunhos ou peças processuais que não sejam em português, peças processuais distribuídas por módulos e salas de audiência com computadores, monitores e sistemas de som adequados.
Estas são as principais alterações propostas pelo grupo de trabalho “Megaprocessos e processo penal: carta para a celeridade e melhor justiça”, que apresenta esta terça-feira as suas conclusões sobre os desafios e soluções para a tramitação dos chamados “megaprocessos”, apesar de ter alargado o estudo aos processos penais, no geral. A apresentação conta com a presença do presidente do Supremo Tribunal de Justiça e do Conselho Superior da Magistratura (CSM). Este relatório resulta de um ano de trabalho dedicado à análise das razões para a morosidade dos megaprocessos e à proposta de soluções para tornar a justiça penal mais célere e eficiente. As suas conclusões foram recentemente apresentadas ao Plenário do CSM e remetidas à ministra da Justiça.
O grupo inclui seis juízes e Rui Cardoso, procurador-geral adjunto e atualmente diretor do DCIAP e é coordenado por Helena Susano, atualmente a magistrada responsável pelo julgamento do caso BES/GES, que julga Ricardo Salgado, ex-homem forte do BES.
“Todos devem ser chamados, pois, a concorrer para a eficácia e eficiência da Justiça, aportando, objetivamente, ao nível do articulado e do texto, o seu contributo facilitador para o resultado final: a clareza, a transparência e a evidência da sua perspetiva quanto à matéria a decidir”, pode ler-se nas conclusões do relatório. “O tempo excessivo é inimigo da aplicação da Justiça, quer na perspetiva da acusação, quer na da defesa de boa-fé, que se deseja. Há, pois, que conjugar esforços, desenhando comportamentos processuais que impeçam que o processo seja, não um fio processual linear e escorreito, que compõe a tarefa no seu tempo razoável e útil, mas um emaranhado de fios que se entrelaçam e enodam, impedindo que o julgador, qual tecelão diligente, cumpra o desiderato que é a decisão final”.
Alterações na fase da instrução e porquê?
O grupo de magistrados alerta para o facto da fase de instrução muitas vezes servir para produzir a contraprova reunida no inquérito, com violação do objetivo inicial para a qual foi criada, o que resulta, nos processos de excecional complexidade, “adurações excessivas e à alocação de meios humanos e materiais que não lhe deveriam estar afetos”.
A instrução é uma fase facultativa do processo penal, que tem lugar após o encerramento do inquérito. Pode preceder o julgamento, se houver despacho instrutório de pronúncia. Pode fazer terminar o processo, se houver despacho de não pronúncia. Tem como finalidade verificar se a acusação ou o arquivamento se justificavam.
Por isso, propõem a restrição dos atos de instrução ao debate instrutório, com a possibilidade excecional de produção de prova mas apenas em situações concretas. “Com efeito, são variados os procedimentos judiciais que a conformaram numa fase meramente contraditória à do inquérito, com produção de prova ex novo, cujo escopo é o de contraditar os factos apurados em inquérito, com a perversidade processual que resulta da observância do princípio da imediação, perante o decisor, apenas quanto a essa nova prova”, Os juízes defendem que muitas vezes é usada como um pré-julgamento, “distorcendo a sua finalidade de confirmação da decisão de acusar ou de arquivar com base na prova adquirida em inquérito, o que, em rigor, se não consente na estrutura conceptual do nosso processo penal. Em concreto:
- Consagra-se que a instrução será constituída apenas pelo debate instrutório, que deve ser agendado no despacho que admite o requerimento de abertura da instrução. E é nesse debate que se praticam os atos excecionais de produção de prova, se se justificarem;
- Sinalizando-se de que não se trata de uma fase de contraprova da prova já adquirida, “mas tão-só, se necessário e nessa exata medida, da complementação desta última, para habilitar o julgador a ultrapassar a sua dúvida com vista à boa decisão da causa”.
- Deixa-se, a título excecional, a possibilidade, seja pela natureza do ato, seja por outro motivo justificado, de que essa produção seja prévia ao debate instrutório.
- Passa-se a prever a possibilidade de o despacho de pronúncia ou de não pronúncia ser notificado aos sujeitos processuais, sem obrigatoriedade de agendar diligência de leitura, o que não obsta a que o juiz, se o entender conveniente, a agende.
- Deve então manter a instrução, mas limitando-a à discussão de questões de direito que tenham a virtualidade de evitar que o arguido vá a julgamento, e bem assim à análise da prova indiciária que sustenta a acusação ou que determinou o arquivamento;
- Entende-se que o processo pode seguir para julgamento, mesmo no caso de alteração substancial de factos, permitindo ao arguido um prazo razoável para se defender, mais dilatado. Dizem os magistrados que se trata “de verdadeira alteração de factos (ainda que substancial) e não de um objeto processual (verdadeiramente) novo. Neste último caso só uma investigação do Ministério Público seria legítima”.
Quais as principais soluções propostas?
- Com o objetivo de munir o sistema processual penal de mecanismos que permitam contrariar a dedução, na fase de recurso, de requerimentos e incidentes manifestamente infundados, utilizados como estratégia para evitar o cumprimento julgamento ou do trânsito em julgado, importa-se para o processo penal “a figura da defesa contra as demoras abusivas consagrada no artigo 670.º do Código de Processo Civil”. Pode assim o juiz condenar o visado no pagamento de uma soma entre 2 e 100 Unidades de Conta (UC). Ou seja, de cerca de 200 euros a 100 mil euros;
- Aumentar os limites máximos da taxa de justiça em processo penal a pagar, com o objetivo de ajustar a tributação ao custo efetivo e às particularidades de cada processo de especial complexidade. Os limites mínimos devem permanecer inalterados;
- Afetação de funcionários mais competentes e com mais experiência aos processos de especial complexidade, através da criação de equipas com preparação para o exercício de funções nesse contexto, a servirem o processo em exclusividade;
- Valorização da cultura da síntese e clareza na redação das peças processuais e nas decisões judiciais;
- Sistema automatizado de tradução de documentos que garanta a produção imediata de traduções, sem a demora e custos inerentes à contratação de profissionais para o efeito;
- Interpretação linguística em tempo real, solução já em funcionamento noutros países como a Suécia, permitindo que, em audiência ou outra diligência processual, os participantes se exprimam na sua própria língua, podendo os restantes visualizar a interpretação em tempo real;
- Criação do assistente virtual do juiz, que permita a recolha e agregação da informação relevante para a realização da decisão judicial, sobretudo no que toca a tarefas instrumentais que atualmente condicionam o seu tempo de execução. Em concreto, no quotidiano do juiz, há tarefas que podem ser realizadas de forma automatizada e que não requerem as especiais qualificações do magistrado;
- Ferramentas de pesquisa para o juiz e assessores, com sistemas de inteligência artificial transparentes, rastreáveis e suscetíveis de serem controlados, permitindo pesquisas avançadas (isto é, não se cingindo à pesquisa por termos, datas ou códigos), através da interpretação dos elementos processuais, perceção do respetivo contexto e estabelecimento de relações entre os mesmos;
- Novo modelo de elaboração e apresentação de peças processuais de elevada dimensão (acórdãos e decisões instrutórias), que permita a sua decomposição por módulos, de forma a simplificar a sua construção, bem como a comunicação ao cidadão;
- Equipamento das salas de audiência com computadores, monitores e sistemas de som adequados, bem como de telemóveis capazes de estabelecer ligação com intervenientes processuais;
- Disponibilização de computadores ágeis e ecrãs múltiplos aos magistrados, possibilitando a eficiente execução das aplicações informáticas e a consulta de processos em formato digital, com a ligação dos meios de prova;
- Assessoria jurídica: Os juízes terão de ter um assessor de ciências jurídicas privativo. Esse assessor deve, sob a supervisão do juiz, realizar tarefas de mero expediente e de gestão quotidiana, a fim de libertar o juiz para a sua função jurisdicional;
- Torna-se possível a delegação no assessor jurídico de funções específicas relativas ao agendamento das sessões de julgamento e das inquirições de testemunhas, da organização de ficheiros de prova, de recursos pendentes ou já concluídos, listagens temáticas, mas também a elaboração de projetos de despacho ou a pesquisa da legislação, jurisprudência e doutrina necessárias à preparação das decisões judiciais;
- Assessoria técnica de especialistas, a constarem de uma lista de assessores. O assessor técnico, com previsão expressa no Código de Processo Civil, pode ser convocado a acompanhar o juiz pontualmente ou durante a audiência de julgamento;
- Esclarecer expressamente que o MP pode arquivar o inquérito nos crimes particulares (ponderar a descriminalização da injúria e difamação, com reforço dos meios civis);
- Garantir que o arguido tem o direito de se sentar junto do advogado durante o julgamento;
- Reforçar o controlo do segredo de justiça, quando seja imposto.
O grupo de trabalho é composto por Ana Paula Conceição, juíza desembargadora no Tribunal da Relação de Lisboa, António Gomes, juiz desembargador no Tribunal da Relação do Porto e membro do GATEP e do ALTEC, Graça Pissarra, juíza de direito no Tribunal de Execução de Penas de Lisboa (atualmente em comissão de serviço no CSM), João Ferreira, juiz desembargador no Tribunal da Relação de Lisboa e membro do GATEP e do ALTEC, José Carlos Ramos, juiz de direito no Tribunal Central de Instrução Criminal (atualmente afeto ao ALTEC), Rui Cardoso, procurador-geral adjunto no Tribunal da Relação de Évora (atualmente diretor do DCIAP) e Helena Susano, juíza de direito no Juízo Central Criminal de Lisboa (coordenadora do grupo de trabalho).
Estas conclusões estão alinhadas com as Grandes Opções do Plano para 2024-2028, publicadas em Diário da República em janeiro, que identificam os megaprocessos como um dos maiores desafios para a justiça penal e reforçam a necessidade de alterações legislativas para acelerar a ação dos tribunais. O programa Governo também já sublinhou a importância de reformar a fase de instrução criminal e implementar medidas que garantam maior celeridade e eficiência, como a simplificação das notificações e a gestão processual mais eficaz. O relatório final será enviado à ministra da Justiça, aos grupos parlamentares e ao presidente da Assembleia da República.
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