Montenegro diz que venda da quota à mulher foi “legal” e não praticou o crime de procuradoria ilícita

O primeiro-ministro respondeu às várias perguntas feitas pelo grupo parlamentar do BE e do Chega. Juridicamente, o líder do Executivo garante que está tudo dentro da lei.

Nas respostas de Luís Montenegro, enviadas esta segunda-feira por escrito, às 24 perguntas feitas pelo grupo parlamentar do Bloco de Esquerda (14) e Chega (dez), há dois temas de interpretação jurídica em que o líder do Executivo insiste na sua tese: a passagem das suas quotas da Spinumviva à mulher foi legal e não, não cometeu (nem a empresa) qualquer crime de procuradoria ilícita.

A criação da empresa familiar do primeiro-ministro ganhou contornos políticos este mês, levantando questões sobre o papel que o primeiro-ministro ainda terá nesta sociedade e levando o líder do Executivo a desafiar a oposição a apresentar uma moção de censura, o que acabou por acontecer, por iniciativa do PCP. E que foi chumbada. Esta terça-feira será apresentada pelo Governo uma moção de confiança que, ao que tudo indica, deverá ser chumbada e levará à marcação de eleições antecipadas.

Assim sendo, o BE pergunta e Montenegro responde. Em que se baseia o primeiro-ministro para afirmar que a venda da sua quota à sua mulher, com quem se encontra casado em comunhão de adquiridos, é um negócio juridicamente válido?

Montenegro, que é advogado de profissão, justifica tal negócio repescando a doutrina de Antunes Varela de Pires de Lima (pai) que, numa anotação ao artigo 1714 º do Código Civil – que diz que essa venda é nula –, defende que “a proibição da compra e venda entre os cônjuges sofreu, porém, uma séria derrogação, no que respeita à cessão de quotas entre os cônjuges”.

Porque, diz Montenegro, esta regra foi derrogada pelos Código das Sociedades Comerciais que prevê “expressamente que é permitida a constituição de sociedades entre cônjuges, bem como a participação destes nas sociedades, desde que só um deles assuma responsabilidade ilimitada, não dependendo sequer a produção de efeitos de cessão de quotas entre cônjuges, ao contrário do que é a regra geral, do consentimento da sociedade”.

O BE insiste: “Mas se entende como juridicamente válida a transferência da quota e que, portanto, não detém a mesma desde 30 de junho de 2022, porque decidiu transferir a empresa para os seus filhos?”.

O líder do Executivo explica: “Naturalmente, não fui eu que decidi sozinho promover essa transferência. Efetivamente, recaiu sobre mim a responsabilidade de anunciar que a empresa iria doravante ficar exclusivamente nas mãos dos meus filhos, seja pela necessidade de prestar esclarecimentos públicos, seja porque tal ocorreu mediante uma doação das quotas da minha mulher, que careceu, nos termos da lei, do meu consentimento”. Uma tese que já foi partilhada pelo advogado Magalhães e Silva, na SIC Notícias.

Mas, como é costume na área do direito, a doutrina diverge. O advogado António Jaime Martins diz assertivamente que esta transmissão de quotas pode ser declarada nula. “Nos termos do artigo 1714.º, n.º 2, do Código Civil português, é proibida a celebração de contratos de compra e venda entre cônjuges, salvo se estiverem separados judicialmente de pessoas e bens. Que não é o caso, visto que o regime em causa é o de comunhão de adquiridos”, diz.

Para isso, o advogado invoca jurisprudência do Tribunal da Relação do Porto – de 2016 – que considerou que, “se a cessão de quotas se concretizar através de um contrato de compra e venda entre cônjuges, a mesma será nula, exceto se os cônjuges estiverem separados judicialmente de pessoas e bens”.

Bem como um acórdão da Relação de Lisboa – de janeiro de 2023 – que analisou uma situação em que os cônjuges, casados em regime de comunhão de adquiridos, realizaram uma cessão gratuita de quotas. O advogado explica que o tribunal concluiu que tal doação seria nula se a quota cedida não fosse bem próprio do cônjuge doador.

Em suma, “tanto a legislação como a jurisprudência portuguesas estabelecem a nulidade de contratos de compra e venda, bem como de doações, entre cônjuges casados em regime de comunhão de adquiridos”, conclui António Jaime Martins. Uma tese defendida por António Lobo Xavier, também na Sic Notícias, também advogado, que considera esta venda ilegal.

E no caso da procuradoria ilícita?

O BE pergunta ainda diretamente se “os serviços prestados, nomeadamente até à entrada em vigor da Lei n.° 10/2024, de 19 de janeiro (Regime Jurídico dos Atos de Advogados e Solicitadores) podem configurar procuradoria ilícita?”. A resposta é objetiva: “Não foram praticados quaisquer atos próprios de advogados ou solicitadores”.

Mas a explicação já é um tanto ou quanto subjetiva: “O serviço descrito configura uma tarefa comum daqueles que atuam ou assessoram o encarregado de proteção de dados, o qual é designado com base nas suas qualidades profissionais e, em especial, nos seus conhecimentos especializados no domínio das regras e das práticas de proteção de dados, não carecendo de certificação profissional para o efeito”, diz Montenegro.

“De resto, há no mercado inúmeras empresas e prestadores de serviços com formações técnicas diversas, muitas vezes complementares ou adequadas ao tratamento de dados específicos de cada cliente. Estas assessorias podem revestir-se de uma componente de planeamento e auxílio às decisões de procedimentos dos responsáveis pelo tratamento e também ao próprio exercício da função que se exige independente (e por isso muitas vezes externalizada) do encarregado de proteção de dados”.

Quanto a este assunto, o questionário do Chega de André Ventura é omisso.

Esta segunda-feira, o ECO noticiou em primeira mão que o Conselho Regional do Porto da Ordem dos Advogados (OA) abriu uma averiguação de suspeitas de procuradoria ilícita à Spinumviva, empresa familiar de Luís Montenegro. Jorge Barros Mendes, líder da regional do Porto, explica que “no decurso das averiguações logo se verá que atos foram praticados e por quem”, disse.

Colocando de lado as dúvidas de potencial conflito de interesses entre o primeiro-ministro e a Solverde, em causa dúvidas relativamente aos atos praticados pela própria empresa. Se configuram, ou não, atos jurídicos que – até abril de 2024 – eram exclusivos de advogados e só poderiam ser exercidos em contexto de uma sociedade de advogados e não de uma sociedade comercial. E, também aqui, a doutrina diverge.

O advogado Paulo Saragoça da Matta considera que sim, que parece “claro que estamos perante procuradoria ilícita”. Por seu turno, Paulo de Sá e Cunha, atual presidente do Conselho Superior da Ordem dos Advogados, considera que não estamos perante um caso de procuradoria ilícita.

António Jaime Martins defende que os atos referidos pela empresa “exigem qualificação jurídica. E mesmo agora a consultoria jurídica por empresas está sujeita a requisitos apertados e neste caso a empresa nem sequer é uma multidisciplinar pois não tem sócios advogados”.

Relembrando que, mesmo com as alterações introduzidas pela Lei n.º 10/2024, a prestação de serviços de consulta jurídica continua sendo uma atividade reservada aos profissionais e entidades que se enquadrem expressamente nas hipóteses previstas na lei.

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