Exclusivo EUA enviam carta a empresas em Portugal para abandonarem políticas de diversidade

Embaixada está a rever contratos entre o Governo norte-americano e empresas em Portugal, o que inclui a certificação de que estas cumprem novas regras de Trump contra programas de diversidade.

O Governo dos Estados Unidos enviou cartas a empresas em Portugal que lhe fornecem bens e serviços a informar que estas devem abandonarem os seus programas de diversidade, equidade e inclusão (DEI), em cumprimento da ordem executiva assinada em janeiro por Donald Trump. O envio das missivas foi confirmado ao ECO pela embaixada norte-americana em Lisboa, sendo que, segundo a imprensa internacional, cartas semelhantes seguiram para empresas noutros países da União Europeia, como França e Bélgica.

Donald Trump, presidente dos Estados Unidos, tem sido vocal contra os programas DEI.EPA/AL DRAGO / POOL

“A embaixada dos Estados Unidos em Portugal está a realizar uma revisão global padrão dos contratos, que se aplica a todos os fornecedores e beneficiários de subvenções do Governo dos EUA. Este processo inclui um pedido de certificação para garantir o cumprimento das leis norte-americanas antidiscriminação“, indicou ao ECO fonte oficial da embaixada.

No coração deste processo de revisão dos contratos, está a ordem executiva assinada a 21 de janeiro pelo Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, com vista a “acabar com a discriminação ilegal e restaurar as oportunidades baseadas no mérito“.

De acordo com essa ordem, instituições “críticas e influentes” da sociedade norte-americana, incluindo o próprio Governo federal, grandes empresas, instituições financeiras e instituições de ensino superior têm adotado “preferências perigosas, degradantes e imorais com base em raça e sexo“, no âmbito de programas DEI, que “podem violar os direitos civis“.

O documento assinado por Donald Trump argumenta ainda que esses programas de DEI enfraquecem a “unidade nacional” dos Estados Unidos, uma vez que “negam, retiram crédito e minam os valores tradicionais americanos do trabalho árduo, excelência e conquistas individuais“, ao mesmo tempo que privilegiam um sistema “corrosivo” baseado em identidade. Ou seja, para Trump, qualquer programa que promova a diversidade, equidade e inclusão choca contra a meritocracia e é, portanto, uma forma de discriminação.

Com base nesses argumentos, o Presidente dos Estados Unidos ordenou, desde logo, o fim de todas as “preferências, mandatos, políticas, programas, atividades e regulações” discriminatórios e com “preferências ilegais” nos departamentos e agências do Governo norte-americano.

Mas não se ficou por aí. Donald Trump mandou, além disso, que todas as agências sob a sua alçada fizessem cumprir os direitos civis norte-americanos e combatessem as políticas e programas de DEI “ilegais” no setor privado.

Cláusulas anti-DEI nos contratos com os EUA

1. Cláusula em que o contratado reconhece que cumprimento das regras antidiversidade é essencial para os pagamentos feitos pelo Governo norte-americano;
2. Cláusula que exige que o contratado se certifique que não tem programas de DEI que violem “leis antidiscriminação” dos EUA.

Assim, na ordem executiva em causa, ficou estabelecido, por um lado, que em cada contrato seria incluída uma cláusula, na qual os contratados reconhecem que cumprir estas regras relativas à diversidade é “essencial para as decisões de pagamento” do Governo norte-americano.

E, por outro lado lado, que seria obrigatório incluir uma cláusula que exige que os contratados não operem programas que promovam a diversidade, equidade e inclusão, “que violem as leis antidiscriminação federais”.

Segundo a imprensa internacional, com base nesta ordem executiva, a administração de Donald Trump tem estado a enviar cartas a várias empresas da União Europeia (nomeadamente, em França e na Bélgica), a avisar que têm, então, de cumprir as novas regras relativas à diversidade.

Podemos confirmar que foram enviadas cartas às empresas com contratos com o Governo dos Estados Unidos, em cumprimento da ordem executiva 14173.

Embaixada dos EUA em Lisboa

E a embaixada dos Estados Unidos em Lisboa confirmou ao ECO que enviou missivas semelhantes a empresas a operar em Portugal com contratos com o Governo norte-americano. A embaixada não precisa, porém, quantas cartas foram enviadas, nem revela que empresas são visadas.

Por outro lado, questionada sobre a penalização que será aplicada, caso as empresas não cumpram a ordem executiva, a embaixada dos Estados Unidos em Lisboa avança ao ECO que não será feita qualquer verificação, além de pedir aos contratados que autocertifiquem o cumprimento das normas em questão.

Fornecedores portugueses entre o silêncio, o desconhecimento e a preocupação

O ECO questionou várias empresas portuguesas com contratos com o Governo norte-americano, mas parece haver um manto de silêncio em torno desta matéria.

Os registos do Federal Procurement Data System, onde constam os contratos assinados entre entidades públicas norte-americanas e qualquer fornecedor de serviços, consultados pelo ECO revelam que entre as empresas com contratos aí registados, apenas no último ano, estão organizações como a Vodafone Portugal, a Fidelidade, uma empresa da Mota-Engil, uma da Galp, a Caetano Automotive, os CTT, a Allianz Portugal, a Meo ou o escritório de advogados Rui Pena, Arnaut & Associados (atualmente CMS Portugal).

O ECO perguntou a estas e a outras entidades se tinham recebido a missiva enviada pela embaixada norte-americana e o que iriam fazer acerca disso. A esmagadora das empresas, pura e simplesmente, não respondeu, mas algumas afirmaram mesmo não ter recebido nenhuma comunicação.

Uma das entidades que trabalha regularmente com entidades públicas norte-americanas — e que não recebeu essa missiva — admitiu que o tema estava fora do radar da empresa e está a gerar preocupação. Isto porque esta e outras empresas têm vindo a desenvolver programas robustos de DEI, até porque muitos dos seus parceiros o exigem, e ficam agora numa situação complexa: manter o negócio com entidades públicas norte-americanas ou arriscar perder negócio com outros parceiros e abandonar um caminho de sustentabilidade no qual acredita?

Mas, afinal, que contratos são estes?

Há, sobretudo, três blocos. O primeiro é relativo a serviços prestados à própria embaixada dos Estados Unidos em Lisboa, e que naturalmente compra localmente. Aí há de tudo, desde os serviços de telecomunicações da Vodafone a trabalhos de jardinagem ou aos seguros de saúde da Allianz, passando pelos serviços de apoio jurídico da CMS.

Um segundo grande bloco são contratos nos Açores, relacionados com a presença da Base das Lajes, com vários fornecedores locais, como vigilantes, pessoal de limpeza, serviços de transporte e até uma funerária. Mas também a Galp Açores, que vende combustível à base.

E há um terceiro bloco mais genérico, onde está, por exemplo, a relação contratual entre a Fidelidade e a Força Aérea norte-americana, tendo por base a cobertura por seguros. Ou a prestação de serviços da Meo à Defense Information Systems Agency (DISA) ou, antes disso, à Força Aérea.

Quem não cumprir as regras, não é aceite como fornecedor?

Em teoria, os Estados Unidos não têm direito de impor que as empresas da União Europeia terminem os seus programas de diversidade, equidade e inclusão.

Mas, na prática, e como se trata de “determinar as condições em que é possível as empresas fornecerem bens ou serviços à administração norte-americana”, podem, sim, impor regras. O esclarecimento é dado ao ECO pelo José Luís Cruz Vilaça, sócio responsável pela área de prática de Direito da União Europeia, Concorrência e Investimento Estrangeiro da Antas da Cunha Ecija. “Quem não cumprir as regras, não é aceite como fornecedor“, sublinha o advogado.

Deste lado do oceano, muitos têm sido os apelos a políticas de DEI, em prol de um futuro mais sustentável e igualitário, o que coloca as empresas europeias agora “perante um dilema”. De um lado, têm as orientações da União Europeia. Do outro, o risco “perder o mercado da compra de produtos ou serviços pela Administração norte-americana“, realça o sócio da Antas da Cunha Ecija.

Os governos dos Estados-membros e instituições da União Europeia acabarão por ser chamados a intervir e, se necessário, a retaliar.

José Luís Cruz Vilaça

Sócio da Antas da Cunha Ecija

“Basicamente, é uma questão política, onde a lógica do poder e do direito se opõem. Os governos dos Estados-membros e instituições da União Europeia acabarão por ser chamados a intervir e, se necessário, a retaliar. As empresas europeias devem, essencialmente, mobilizar-se para obter o apoio dessas instituições“, salienta José Luís Cruz Vilaça.

Mas nem todos os advogados têm este entendimento. Márcia Martinho da Rosa, da MMR Legal Services e ex-membro da comissão de direitos humanos da Ordem dos Advogados, defende que “estas cartas não são vinculativas, uma vez que na União Europeia estas empresas regem-se pelos tratados internacionais de cada Estado, o direito comunitário, nomeadamente os regulamentos e as diretivas europeias”. “É inconcebível a ingerência dos EUA nesta matéria no que aos Estados Membros diz respeito”, sublinha.

Já Luís Couto, sócio da SPCB Legal, está entre estas duas posições, e esclarece que, primeiro, há que determinar qual o ordenamento jurídico que regulará a relação contratual estabelecida entre as empresas europeias e o Governo norte-americano.

“Sendo o negócio jurídico celebrado com a Administração norte-americana regulado pela lei portuguesa ou comunitária, não é possível a imposição da ‘ordem executiva’ em causa. Coisa diversa se passa relativamente aos negócios jurídicos que, pela aplicação das normas de conflito são regulados pela lei norte-americana. Neste caso, poderá impor-se essa condição de contratação com os fornecedores de bens e serviços”, explica.

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