Como o ‘apagão’ praticamente desligou as comunicações
Falha no abastecimento de luz em Portugal e Espanha gerou fortes constrangimentos nas redes móveis das operadoras e no SIRESP, causando problemas até ao INEM.
Quando o fornecimento de eletricidade é interrompido em todo o país, como aconteceu esta segunda-feira, o risco de a disrupção aumentar cresce exponencialmente à medida que o tempo passa e a energia não volta. Baterias e geradores são as principais opções para manter os equipamentos elétricos a funcionar, mas só enquanto houver carga e combustível. Não há milagres.
No ‘apagão’ do dia 28 de abril, que começou às 11h33, passaram mais de oito horas até a energia começar a ser restabelecida, e muitos consumidores tiveram de aguardar dez ou mais horas até voltarem a ter eletricidade. O problema também provocou cortes no abastecimento de água em muitas regiões. Na manhã seguinte, ficavam evidentes outras fragilidades, com notícias sobre novas falhas no funcionamento do SIRESP (a rede de comunicações de emergência do Estado), problemas no atendimento de emergência do INEM e uma mensagem de alerta da Proteção Civil que chegou às populações tarde e a más horas.
Alguns dos problemas foram agravados por fortes constrangimentos nas comunicações móveis, com vários consumidores a reportarem, por exemplo, o desaparecimento total da rede da Vodafone minutos depois do início do ‘apagão’. Outros conseguiram fazer chamadas e usar os dados móveis nas primeiras horas, como os clientes da Meo, mas as dificuldades foram crescendo gradualmente até ao momento mais crítico, por volta das 17h. O ECO sabe que, nessa altura, a operadora da Altice já só tinha cerca de 30% das cerca de 3.500 antenas a funcionar, com recurso a baterias. Fazer uma chamada era já muito difícil e aceder à internet praticamente impossível.
A Meo admitiu publicamente que “reconfigurou a sua rede” durante a falha ibérica, limitado a utilização de dados móveis pelos clientes e, sabe o ECO, desligando o 5G. O objetivo foi esticar ao máximo a vida das baterias que alimentam aquilo que os leigos chamam de antenas e os técnicos conhecem por sites.
A empresa beneficiou ainda de investimentos na “modernização de toda a parte energética da rede móvel” que se iniciaram em 2019, incluindo a instalação de novos armários com baterias de lítio, da marca chinesa Huawei. Estes bastidores “ficam na rua” e, por esse motivo, dispensam ar condicionado, que normalmente é necessário para evitar o sobreaquecimento dos equipamentos e representa o maior consumo de eletricidade de um site.
Atualmente com uma autonomia média de seis horas, mitigar um problema futuro nas comunicações em situação de falha no abastecimento elétrico poderia passar, por exemplo, por aumentar o tempo que estas mesmas infraestruturas conseguem funcionar com recurso às baterias. Mas fonte familiarizada com o assunto lembrou ao ECO que esses investimentos só compensariam em situações ainda mais críticas do que a que ocorreu na segunda-feira — algo que, por si só, já é muito raro acontecer.
Desafios semelhantes também terão sido enfrentados pela rede SIRESP, que registou problemas em pleno ‘apagão’, assumiu o primeiro-ministro esta terça-feira: “Nós temos registo de algumas anomalias no funcionamento do SIRESP que, de resto, não são novas. É um processo que nos preocupa, um processo em que nos temos empenhado do ponto de vista de preparação para o futuro”, disse Luís Montenegro. Horas antes, em direto na SIC Notícias, o ministro das Infraestruturas reconhecia esta situação: “O SIRESP não funcionou a 100%, teve falhas”, avançou.
Não há informação oficial sobre os motivos exatos, mas, de acordo com a TVI, um dos problemas do SIRESP terá sido a falha da rede satélite, que deveria ter servido de redundância. E, por volta das 5h00 de terça-feira, o sistema esteve perto de deixar de funcionar, arriscando uma “quebra total”, de acordo com o Comandante Nacional de Emergência e Proteção Civil, Mário Silvestre, em declarações citadas pela Lusa.
A conjugação das falhas do SIRESP com os problemas nas redes de comunicações, nomeadamente a da Vodafone, terão contribuído de forma decisiva para as dificuldades operacionais que se verificaram no INEM, apurou o ECO. Na noite de segunda-feira, durante uma deslocação à Maternidade Alfredo da Costa, o primeiro-ministro assinalou que “terá havido um período com maior dificuldade nas comunicações”, apesar de ainda não ter “uma conclusão sobre tudo o que aconteceu”. O próprio instituto de emergência médica reconheceu, num comunicado, que houve “constrangimentos pontuais no acionamento de meios de emergência”.
Contactado, Rui Lázaro, presidente do Sindicato dos Técnicos de Emergência Pré-Hospitalar (STEPH), garantiu ao ECO que “o SIRESP no INEM não funcionou” durante o ‘apagão’ e que a inexistência de serviço móvel da Vodafone, que é a rede de redundância usada pelos meios, como as ambulâncias, impediu o acionamento de meios em várias situações.
“Perdeu-se o contacto com os meios, com os telemóveis”, afirmou o líder do STEPH, lamentando o facto de o instituto já não ter uma rede própria de comunicações, “com repetidores espalhados pela serra, que nunca ficava saturada”, e que foi “desmontada” há uma década, ao contrário do que acontece com a Rede Operacional dos Bombeiros, que ainda existe atualmente.
Mas “o SIRESP já habitualmente tem falhas”, queixou-se o dirigente sindical. “Dentro dos hospitais e outros edifícios [o terminal de comunicações] perde rede”, explicou. É por isso que são usados telemóveis ligados à rede pública da Vodafone num serviço que é tão crítico. Ora, já em fevereiro de 2022, quando um ciberataque deixou inoperacionais as redes dessa operadora, “houve este problema, os elementos nos hospitais não estavam contactáveis”, lembrou Rui Lázaro ao ECO.
Para aumentar a resiliência das comunicações do INEM, uma opção seria contratar os serviços de uma segunda operadora, explicou o sindicalista. “Qualquer cidadão já tem hoje dois cartões diferentes e o INEM, que é um serviço de emergência, não tem”, criticou. Mesmo assim, à luz dos constrangimentos de segunda-feira, esta opção teria um impacto que seria sempre limitado.
Estes constrangimentos nas redes das operadoras acabariam por descambar, depois, na controversa SMS da Proteção Civil que só começou a chegar aos telemóveis já depois das oito da noite, quando as comunicações e o abastecimento elétrico estavam a ser restabelecidos. Na mensagem, lia-se que “a ligação de energia” estava “a ser gradual”. “Com a serenidade de todos, garantiremos os serviços essenciais e a normalização da situação nas próximas horas”, acrescentava o aviso.
Segundo o primeiro-ministro, esta mensagem foi emitida pela Proteção Civil já depois das 17h. “Demonstra que as comunicações estavam em baixo e portanto esse meio de comunicação não era eficaz, o que deu razão à opção que o Governo tinha tomado de privilegiar em primeiro lugar as rádios, que estavam mais operacionais, e depois as televisões”, considerou na terça-feira Luís Montenegro. “Foi tentada uma comunicação numa altura em que as comunicações estavam efetivamente já muito difíceis”, reconheceu.
E, de facto, estavam. Numa altura em que tanto se fala de resiliência das infraestruturas críticas, os acontecimentos desta segunda-feira vão ser alvo de uma comissão técnica independente para apurar como pôde o sistema elétrico falhar tão severamente. Mas as comunicações eletrónicas precisam de energia e não há medidas possíveis que permitam o milagre de ter equipamentos a funcionar sem eletricidade. Como argumentou o ministro das Infraestruturas numa entrevista à TVI, “se dura mais tempo, o que é que nos acontecia aos nossos telemóveis, que ficariam sem bateria?” Dito isso, desabafou: “Estamos dependentes da tecnologia, temos de encontrar formas de garantir esta resiliência.”
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