Portugal teve dez apagões desde os anos 70. O que mudou e quais as lições?
De um sistema mais dirigido à lógica de mercado, assim como a maior incorporação de renováveis, o sistema elétrico nacional foi mudando em particular em situações de crise.
Esta quarta-feira marca um mês desde o apagão que deixou Portugal às escuras por cerca de dez horas. O Capital Verde, em entrevista a José Amarante dos Santos, que foi diretor responsável pela Gestão do Sistema da REN até 2015, recuou no tempo para melhor perceber a evolução do sistema – e das suas fragilidades – até aos dias de hoje. “A situação de blackout total na rede de transporte foi sempre pouco frequente com exceção do ano de 1976″, recua a REN. Na década de 70, esta situação ocorreu uma vez em 1970, outra vez em 1971 e seis vezes em 1976. Na década seguinte, registou-se um novo apagão em 1985.
Na altura do incidente, com origem no sistema nacional, a produção térmica representava 10% do consumo, a hídrica 40% e os restantes 50% provinham da interligação com Espanha. Foi apenas a 9 de maio de 2000 que Portugal enfrentou um apagão parcial na região sul do país, incluindo Lisboa, perdendo-se cerca de um terço do consumo nacional nessa altura.
Tratou-se de um incidente com origem na rede nacional – o famoso incidente da cegonha que embateu numa linha de alta tensão em Lavos –, quando cerca de 60% da produção era hídrica e a restante era térmica, a carvão e gás natural, e o sistema nacional estava a exportar para Espanha.
Mas porquê esta instabilidade, sobretudo nos anos 70? A REN, que só foi fundada em 1994, não guarda registos aprofundados. Contudo, José Amarante dos Santos assinala alguns eventos disruptivos da década, como dois choques petrolíferos, que fizeram disparar o preço do petróleo em 1973 e 1979, mas também o 25 de abril de 1974, que ditou “grandes alterações no funcionamento da indústria e da sociedade em geral”.
1976 foi um ano de seca profunda, o que ditou pouca geração hídrica e uma sobrecarga das centrais térmicas, que não estavam habituadas à carga de trabalho. Nestes anos, existiam também os chamados “brownout“, que são cortes de consumo rotativos, afetando diferentes zonas por um tempo limitado, de forma a que as limitações da oferta não se sintam em escalas maiores. Por fim, o mais lógico: o sistema era menos sofisticado e, portanto, dava azo a mais falhas.
José Amarante dos Santos contrasta: quando iniciou os cerca de 40 anos do seu percurso profissional, o tempo de interrupção equivalente, isto é, a soma das falhas do sistema num ano, traduzida em tempo de interrupção do fornecimento, rondavam uma média de uma hora. Quando saiu, o objetivo era que o tempo de interrupção equivalente fosse inferior a um minuto.

Mas os apagões não são, de facto, fenómenos do século passado. O último, a 28 de abril, deixou o país às escuras por cerca de 10 horas, e as causas estão ainda por apurar.
A recuperação foi feita a partir do centro de despacho da REN – Redes Elétricas Nacionais, em Sacavém – a mesma sala na qual José Amarante dos Santos foi o diretor responsável pela Gestão do Sistema entre 2001 e 2014.
“A função principal [de um centro de despacho] continua a ser a mesma, curiosamente. O que se pretende é o fornecimento de eletricidade, de forma contínua, a todos“, ao mesmo tempo que se garante o equilíbrio entre produção e consumo, afirma Amarante dos Santos. Contudo, existem diferenças relevantes no sistema, que causam novos desafios.
Das renováveis ao mercado: os pontos de complexidade
Após o apagão de abril, a elevada penetração de energia renovável no sistema esteve no centro da discussão. Amarante dos Santos rejeita diabolizar as renováveis, reconhecendo apenas que o sistema com elevada penetração destas energias “requer uma gestão mais complexa”, em comparação com um sistema assente em tecnologias convencionais, como o carvão ou o gás.
Quando foi introduzida a energia eólica no sistema elétrico nacional, por exemplo, apesar de ser mais regular em termos da geração ao longo dos meses e anos, criou entropia na geração diária, difícil de prever.
A energia solar chegou mais tarde ao sistema elétrico nacional e, neste caso, a fragilidade é outra: quando anomalias ditam oscilações num dos parâmetros que dão estabilidade ao sistema, a frequência, os painéis solares não têm capacidade de adaptação como as centrais hídricas: desligam, por segurança.
“E, ao saírem, agravam a situação”, explica Amarante dos Santos. Há, contudo, dispositivos que possibilitam uma maior estabilidade, os chamados inversores, mas para já são caros. Contudo, “se for exigido, há efeitos de escala”, defende o ex-diretor da REN.
Mas não são as renováveis a única alteração que traz complexidade à gestão do sistema. O centro de despacho, quando no final da década de 80 se instalou em Sacavém, definia a produção que cada central faria a cada dia.
Hoje, há um regime de mercado, no qual os produtores avançam aquilo que pretendem produzir e o gestor faz o planeamento de acordo com as necessidades do sistema. E, embora exista uma certa previsão de consumo, essa previsão não é completamente certa, pelo que, depois do “plano” feito para o dia seguinte, é preciso ir-se fazendo correções em permanência ao longo do dia. É o chamado mercado de serviços de sistema
“O mercado exige uma gestão muito mais complexa do que as renováveis“, afirma Amarante dos Santos. Num inquérito breve que o diretor fazia aos despachantes, as pessoas que estavam à frente dos ecrãs a gerir o sistema, perguntava o que é que lhes dava mais trabalho, se gerir a energia renovável ou o mercado.
“Todos eles diziam que era o mercado que lhes dava mais trabalho”, remata. Nem todas as evoluções são, contudo, num sentido de maior complexidade e de novas dificuldades. Amarante dos Santos sublinha que “houve grandes progressos” na rede distribuição, sendo mais fácil detetar um problema ao dia de hoje.
Olhando ao episódio de abril em particular, “o que correu pior foi a fragilidade do arranque autónomo”, entende o engenheiro, que defende que se invista em ensaios mais realistas.
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