Aos 15 anos era federalista, agora já não acredita

Foi assim que Jean-Claude Juncker, qual vencido da vida, se assumiu há dias sobre o futuro federalista da União Europeia.

O que outrora era oficialmente tabu – questionar a utopia do sonho europeu –, está agora preto no branco no pensamento oficial da Comissão Europeia (CE). Diz Juncker que a Europa não pode ser construída contra as nações. De facto, o Brexit de 2016 e as eleições que este ano poderão trazer novos “exits” ao tabuleiro geopolítico na Europa assim o determinam. A realidade vai-se sobrepondo à utopia, e ainda bem que assim é. Andarmo-nos a enganar uns aos outros nunca foi bom princípio. Pelo que a reflexão proposta pela CE, consubstanciada no livro branco que foi apresentado na semana passada, e no qual se antecipam cinco cenários futuros de evolução da UE, é muito bem-vinda.

É certo que o livro branco revela os enviesamentos e os interesses da própria CE, o que dificilmente deixaria de ser o caso, porém, trata-se, no balanço, de uma iniciativa que vale a pena prosseguir. Para Portugal, constituindo uma chamada de atenção quanto à impossibilidade de uma união de transferências permanentes, e de eternos subsídios do centro para a periferia europeia, é simultaneamente um alerta e uma oportunidade. Seria, pois, importante que os nossos governantes, a começar no primeiro-ministro, ele próprio fazendo parte da geração de políticos que se deixaram levar pela utopia, se deixassem de estados de alma e começassem a pensar na Europa (e no euro) que se avizinha.

Entre os cinco cenários avançados pela CE, aquele que na Europa vai ganhando adesão política – e que (paradoxalmente) acaba de ser mais ou menos subscrito por Alemanha, Espanha, França e Itália – é o de uma Europa a várias velocidades. Trata-se do cenário número três do livro branco: quem quiser fazer mais (em matérias de integração) que faça mais. Este é o cenário que eu próprio também preconizaria, embora não para aquele mesmo conjunto de países.

Na minha opinião, o cenário três apresenta várias vantagens. Primeiro, permitiria a criação de áreas económicas mais homogéneas e menos assimétricas, por comparação com aquela que hoje existe na União Europeia (UE) como um todo, e sobretudo quando comparadas com a zona euro, uma área económica altamente assimétrica e imperfeita. Segundo, ao conferir aos estados membros a liberdade de eles próprios estabelecerem as suas próprias alianças com outros estados membros, fora do jugo centralizador da CE e das influências decisivas que sobre ela alguns poderes exercem, a legitimidade política dessas novas alianças sairia reforçada. Terceiro, com o tempo, as relações estabelecidas no seio destas novas alianças permitiriam a criação de novos arranjos institucionais que desbloqueassem o impasse decisório que hoje se vive na UE. E assim, com uma evolução gradual, talvez se pudessem reduzir os danos que, alternativamente, a implosão súbita do edifício institucional da UE e do euro tal como o conhecemos hoje provocaria.

O calcanhar de Aquiles do livro branco da CE é a ausência de discussão, e de cenarização, acerca do euro. É aliás lamentável que sendo o mercado comum a moeda boa e o euro a moeda má, toda a discussão da CE resulte em redor do mercado comum e não da moeda única. Temos aqui a aplicação política da lei de Gresham (segundo a qual, a má moeda tende a expulsar a boa). Mas também aqui o cenário três da CE oferece esperança numa alternativa mais ou menos virtuosa. A esperança de que, a prazo, numa Europa a duas velocidades o pelotão da frente possa conduzir à secessão cambial, sem com isso aniquilar o euro. Esta secessão teria por base a criação de um euro forte, por comparação à moeda única de hoje que, de resto, passaria a ser o euro fraco.

A bondade desta cisão do euro, em forte e em fraco (admitindo outros nomes politicamente mais apelativos), teria como pano de fundo os fortíssimos desequilíbrios que hoje observamos no sistema Target, o sistema de compensações de fluxos financeiros entre os países da união monetária. De acordo com os últimos dados do Banco Central Europeu, a Alemanha apresenta no Target um saldo credor junto do BCE de 800 mil milhões de euros. Trata-se de um valor monstruoso, de aproximadamente 25% do PIB alemão, que no limite poderia ser dado como incobrável caso o euro implodisse e subitamente deixasse de existir. A Alemanha está, portanto, ela própria prisioneira do seu sucesso, não tendo por isso qualquer interesse numa desintegração súbita da moeda única.

A secessão cambial de um grupo de países liderado pela Alemanha, para além de não deixar a Europa sem liderança, nem a Alemanha isolada na Europa, permitiria endereçar estes desequilíbrios monetários sem que, com isso, se aniquilasse todo o sistema euro. Introduziria também a concorrência monetária que funcionaria como válvula de escape das assimetrias económicas que existem, e provavelmente continuarão a existir, na UE. Assimetrias que, sem a válvula de escape monetária, apenas poderão ser mantidas com o federalismo ou com uma união de transferências permanentes – em ambos os casos inverosímeis. Veja-se o caso português.

Desde o início do milénio, a taxa de desemprego em Portugal passou de 6% para dois dígitos, sendo que o PIB “per capita” se manteve inalterado em cerca de 70% da média dos países europeus mais ricos. Isto sucedeu não obstante termos recebido, no mesmo período de tempo, mais de cinquenta mil milhões de euros em fundos estruturais, e um valor ainda maior proveniente do resgate financeiro que foi necessário para socorrer a República Portuguesa da bancarrota. É certo que o défice corrente, fonte do endividamento externo, foi estancado, porém, o custo tem sido enormíssimo. E, pior ainda, criou uma inédita dependência nacional do exterior – porquanto, na prática, o saldo negativo da posição internacional de investimento, superior a 100% do PIB, demonstra que o País foi penhorado ao exterior – que apenas é mantida pela existência de medidas artificiais e insustentáveis do BCE.

Como já tive oportunidade de escrever noutra ocasião, vive-se em Portugal uma falsa sensação de serenidade que, aqui e acolá, vai resvalando ostensivamente para a irresponsabilidade. Uma irresponsabilidade que, sendo reiterada, leva-me por vezes a questionar se o país realmente tem emenda, ou se é realmente necessária uma bancarrota que nos leve a aprender a lição. Oxalá não. O custo de uma bancarrota sem rede de segurança seria incomensuravelmente maior do que aquele que se viveu nos últimos anos com a troika. Teria provavelmente implicações políticas, daquelas que mudam a natureza dos regimes. Por isso, a discussão que vamos observando na Europa pode e deve contar com o contributo alargado e proactivo dos portugueses – e não apenas da presente geração de governantes que, repito, estão genericamente comprometidos com o caminho percorrido desde Maastricht.

A criação de uma Europa a duas velocidades poderia, pois, constituir uma oportunidade para Portugal, se a mesma nos permitisse a associação em condições vantajosas a um grupo mais avançado. Como modelo análogo, ocorre-me a nossa adesão, como membros fundadores, à EFTA em 1959. Então, como agora, Portugal estava atrasado face aos demais membros daquele grupo, o que, tendo também em conta a nossa reduzida dimensão, permitiu a adesão à EFTA em condições ímpares. O que se seguiu depois é conhecido e irrefutável: a década de 60 foi de longe a década de maior crescimento económico em Portugal nos últimos 100 anos. Um período de grande convergência face à Europa mais desenvolvida e a semente que, mais tarde, faria florescer a democracia em Portugal.

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