A Fiscalidade “Premial” (ou os impostos que desejam não ser pagos)

  • Filipe de Vasconcelos Fernandes
  • 14 Junho 2022

Estão em causa regimes fiscais que têm por base uma estrutura indutora de comportamentos, que, em última instância, levariam ao não-pagamento dos tributos por aqueles criados.

I. O direito premial Fiscal

Com a alusão, assaz provocatória, à existência de impostos que desejam não ser pagos, temos por intuito aludir a uma realidade que, salvo honrosas exceções, nem sempre é salientada por entre os cultores do Direito dos Impostos.
Estão em causa regimes fiscais que têm por base uma estrutura indutora de comportamentos, que, em última instância, levariam ao não-pagamento dos tributos por aqueles criados – um não-pagamento que é, não só, consentido pela lei fiscal, como, de igual forma, incentivado por esta.
Poderá o leitor perguntar: mas tal realidade não é contraditória com a natureza dos impostos (?)
A resposta é negativa e pode explicar-se pela consciência, partilhada e experimentada por teóricos e práticos das matérias fiscais, de que os impostos são um poderoso instrumento indutor ou dissuasor de comportamentos que o decisor público pretenda incentivar ou, de alguma forma, desincentivar. Infelizmente, a disciplina jurídica desta tipologia de tributos tem sido marginalizada, bastando-se o legislador (e os Tribunais) com uma alusão genérica à condição extrafiscal – ou seja, distinta da arrecadação de receita – sem cuidar de estipular, em termos claros e transparentes, quais os pressupostos e também os limites do poder legislativo no recurso a este tipo de instrumentos de natureza fiscal.
Conforme se verá de seguida, as considerações tecidas até ao momento são facilmente transponíveis para vários tributos que existem no sistema fiscal português.

II. O caso da contribuição sobre os sacos de plástico leves
O primeiro exemplo reporta-se à designada contribuição sobre os sacos de plástico leves, criada no contexto da Reforma da Fiscalidade Verde de 2014 e atualmente aplicada à taxa de 8 cêntimos, acrescido do IVA à taxa legal em vigor (23%), por cada saco de plástico.
As motivações, mormente de ordem ambiental, subjacentes à criação deste tributo, são da mais
variada ordem, tais como:
(i) A produção, transporte e tratamento destas grandes quantidades de sacos em circulação está
associada ao consumo elevado de recursos escassos, nomeadamente água e petróleo;
(ii) São facilmente misturáveis com os restantes resíduos, atendendo à sua baixa densidade; e
(iii) Uma grande quantidade, sendo o segundo resíduo mais abundante à superfície do mar.
Refira-se que, com a introdução desta contribuição sobre sacos de plástico leves, não está em causa a intenção de abandonar a utilização do polímero plástico, mas sim a de oferecer uma solução mais célere ao problema da gestão ótima do respetivo ciclo de vida.
Sabendo de antemão que, num horizonte temporal de curto ou médio-prazo, a sua resolução não é compatível com as exigentes metas ambientais a que Portugal está adstrito, o legislador português decidiu socorrer-se da via fiscal para induzir um comportamento social e ambientalmente desejável.

Ao fazê-lo – e é aqui que sobressai a dimensão “premial” desta contribuição – o legislador nacional criou um incentivo adicional, um “prémio” para vários dos destinatários da medida: desde os utilizadores de sacos de outros materiais aos que reutilizam sacos previamente adquiridos (tendo pago a dita contribuição uma só vez), ao mesmo tempo que acaba por criar uma autêntica “proibição” à sua disponibilização gratuita.
O objetivo do legislador, longe de ser perfeito, está intimamente associado à dimensão “premial”
desta contribuição: todos os que reutilizam sacos de plástico, ou adquirem sacos de papel ou pano (e, por seu turno, os reutilizam), são “premiados” com a ausência de qualquer impacto fiscal, dado que não praticam comportamentos que, à luz do regime em vigor, faça a referida contribuição aplicar-se- lhes.
E é na exata perceção desse “prémio”, bem como do seu valor em unidades monetárias poupadas pelo consumidor, que está (o essencial) da lógica “premial” subjacente a este tipo de tributos.

III. As tributações autónomas sobre veículos movidos exclusivamente a energia elétrica
Um outro caso relevante, embora porventura não tão intuitivo, é o das tributações autónomas que, em sede de IRC, são suportados pelas empresas com a aquisição de viaturas ligeiras de passageiros, viaturas ligeiras de mercadorias, motos ou motociclos, a taxas que variam consoante o valor de aquisição.
Em termos muito sucintos, as tributações autónomas correspondem a uma forma de tributação de atos de despesa – inserida no IRC, ou seja, o imposto geral sobre o lucro das sociedades – com o intuito de combater distribuições camufladas de rendimentos ou a prática de atos de despesa que possam ter, em última instância, beneficiários não tão facilmente identificáveis por parte da Administração Fiscal.
Ora, nos termos do artigo 88.º, n.º3, o Código do IRC, são excluídos de tributação autónoma as
aquisições de “veículos movidos exclusivamente a energia elétrica”.
Como se poderá compreender, ao consagrar esta exclusão, o legislador não assume que a aquisição de veículos elétricos – face à aquisição de veículos não-elétricos, por exemplo – escapa totalmente ao risco de distribuições camufladas de rendimentos ou fenómenos equivalentes.
Pelo contrário, mesmo continuando a assumir essa premissa, o legislador acaba por oferecer
preferência a uma outra finalidade, a da promoção da aquisição de veículos movidos exclusivamente a energia elétrica, diretamente ligada ao atual contexto de descarbonização e transição energética. Neste caso, o sujeito passivo de IRC que altera o seu comportamento, optando pela aquisição de um veículo movido exclusivamente a energia elétrica, é “premiado” com a ausência de sujeição a tributação autónoma, contrariamente ao que sucederia com a aquisição de veículos de outro perfil – caso em que se poderia entender esta forma de tributação como uma “sanção”, nos termos a que temos feito alusão.

IV. Algumas Conclusões

A alusão que dirigimos a esta “Fiscalidade Premial” pretende, desde logo, rejeitar a ideia segundo a qual todo e qualquer imposto é ou equivale a uma sanção. Pelo contrário, segundo entendemos, apenas terão feição sancionatória os impostos que sejam criados como sucedâneo de uma proibição ou, pelo menos, de uma dissuasão de comportamentos, conforme sucede com a aquisição de sacos de plástico leve ou a aquisição de veículos que não sejam movidos exclusivamente a energia elétrica. Sendo certo que estes “impostos premiais” continuam a ser tributos, afigura-se-nos de difícil aceitação que o seu tratamento, nos planos legal e constitucional, seja exatamente o mesmo dos demais impostos – entendendo-se como tal, os que (quase só) estão projetados para uma ótica de angariação de receita.
Justamente por isso, parece-nos que será uma matéria a integrar desejavelmente o objeto de uma futura Revisão Constitucional, tornando claro, como até hoje não sucede, quais as intervenções de âmbito puramente fiscal (que fazem parte da “Constituição Fiscal) e as que, não obstante terem por base tributos, pertencem exclusivamente ao domínio da política económica (ou da dita “Constituição Económica”). Tal possibilitaria a consagração de um eventual cenário de competência legislativa concorrencial a este nível – como já sucede, por exemplo, na Constituição Alemã – atendendo ao facto de muitos destes “impostos premiais” terem projeção em domínios que pertencem, por definição, ao perímetro da atividade governamental.
Seria também a forma de exigir um escrutínio adicional às atividades parlamentar e governamental que, ao nível deste tipo de tributos, tem rareado, a reboque de uma certa inevitabilidade no seu pagamento.

  • Filipe de Vasconcelos Fernandes
  • Assistente na Faculdade de Direito de Lisboa e counsel na Vieira de Almeida

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