Bancos centrais regressam a Sintra com mais dores de cabeça do que na pandemia
Guerra, inflação, juros, recessão, tensões nos mercados: os bancos centrais estão de regresso a Sintra para o Fórum anual do BCE, depois de dois anos de eventos online, em modo sobrevivência.
A seguir a uma pandemia, aquilo que os bancos centrais menos esperavam era ter de lidar com um cenário de guerra na Europa, de inflação em máximos de muitas décadas, e de uma recessão e de crise da dívida soberana à vista. Mas o mundo mudou num abrir e fechar de olhos (ou melhor, num fechar e abrir de economias por causa da Covid-19) e, agora, de regresso a Sintra após dois encontros anuais no formato online, os banqueiros centrais têm seguramente mais dores de cabeça do que tiveram durante os últimos dois anos fechados em casa e passados à frente do computador.
“Desafios para a política monetária num mundo em rápida mudança”: o tema de mais um Fórum Anual do Banco Central Europeu (BCE) que arranca esta segunda-feira e decorre até à próxima quarta no resort da Penha Longa, em Sintra, juntando altos responsáveis dos principais bancos centrais mundiais, não podia ser o mais acertado tendo em conta a gigante tarefa que as autoridades monetárias terão de empreender para domar a subida dos preços e assegurar que a economia mantém o rumo da recuperação após a crise pandémica.
A elevada inflação não está a dar sinais de tréguas, pelo contrário, parece estar a enraizar-se e a aumentar o custo de vida das famílias de forma dramática. Por causa disso, os bancos centrais estão a ser mais agressivos nas subidas das taxas de juro — o BCE ainda é uma exceção, mas só até ao próximo mês –, encarecendo o preço do dinheiro, incluindo a prestação da casa paga ao banco que aumenta de mês para mês.
O aperto monetário para travar a escalada da inflação vai ter consequências numa economia que mal recuperou da pandemia. As perspetivas para o crescimento económico foram revistas em baixa (também por causa do impacto da guerra da Rússia na Ucrânia) na Zona Euro e noutras partes do mundo, como nos EUA. Os receios de uma recessão estão a castigar pesadamente as bolsas nas últimas semanas. O Citigroup estima que há uma probabilidade de 50% de a economia global entrar em recessão.
Para a Reserva Federal americana (Fed), este dilema entre combater a inflação ou evitar o abrandamento económico há já alguns meses que ficou resolvido: em março foi iniciado um novo ciclo e até hoje as taxas de referência dos EUA já subiram 1,5%. O presidente Jerome Powell sinalizou que podem subir mais 75 pontos base (0,75 pontos percentuais) na próxima reunião — o líder da Fed é uma das presenças do evento e alguém a quem os mercados vão prestar muita atenção no que disser na sua viagem a Portugal.
Atrasado neste ciclo, ao paciente BCE está colocado não um dilema, mas antes um trilema: à inflação de 8% na Zona Euro e ao abrandamento da economia, junta-se a questão dos juros da dívida da periferia da Zona Euro, que dispararam mal o banco central anunciou há cerca de três semanas o fim dos estímulos e o começo da subida dos juros a partir da reunião de julho.
Com Itália no centro de furacão, mas Portugal e Espanha sendo arrastados, o BCE teve de agir para controlar o fogo nos mercados de dívida e evitar o risco de uma nova crise da dívida soberana na moeda única. Decidiu avançar com a criação do que chama de “ferramenta anti-fragmentação”, um mecanismo que servirá para controlar os spreads face à dívida alemã.
Ainda não saiu do papel, deixando os analistas algo desapontados com o semi-anúncio do BCE feito há duas semanas e que consideram que é bastante revelador das divergências no seio do Conselho de Governadores quanto a este instrumento. Já se conhecem alguns pormenores sobre o seu desenho: haverá algum tipo de condicionalismo no seu uso, como o cumprimento das recomendações económicas das Comissão Europeia – a agência Reuters escrevia que “não haveria almoços grátis”. Não se sabe, contudo, quais os valores que o BCE considerada justos para os diferenciais das taxas, nem os valores dos diferenciais que vão além dos fundamentos económicos e que ativariam o mecanismo.
“Vemos o BCE numa situação delicada no curto e médio prazo: não há unidade dentro da instituição, a tomada de decisões é lenta e o controlo do mercado está a pisar gelo fino”, comentavam os analistas do Raiffensen há dias.
O Fórum BCE poderá ser o palco ideal para Christine Lagarde anunciar ao mundo a nova ferramenta e mostrar que o banco central está unido — de resto, cumprindo uma tradição do antecessor, Mario Draghi, que costumava usar os holofotes de Sintra para fazer grandes anúncios. A francesa terá várias oportunidades para o fazer: dá um discurso de boas-vindas esta segunda ao final da tarde (18h30); depois, abre os trabalhos na terça com outro discurso (9h00); e regressa à ribalta na quarta-feira para o aguardado “Painel de Política”, pelas 14h30, onde sentará ao lado de Jerome Powell, Andrew Bailey (governador do Banco de Inglaterra) e Agustín Carstens (diretor-geral do Bank for International Settlements, o banco dos bancos centrais).
Sobre o novo instrumento, os analistas consideram que a palavra-chave poderá ser a “proporcionalidade” da ferramenta, para não sejam levantadas questões no tribunal constitucional da Alemanha. O BCE vai ter de explicar muito bem o objetivo e funcionamento do novo mecanismo de controlo de spreads. Se não for agora, a ferramenta será anunciada na reunião de 21 de julho.
Em todo o caso, embora ainda esteja no papel, parece que já está a funcionar, perante a descida acentuada dos juros de Itália, Portugal e Espanha nos últimos dias. Mário Centeno explicou ao ECO que será um “seguro” contra a fragmentação e que “se for bem desenhado, provavelmente não será utilizado”.
Sobre o Fórum BCE, o governador do Banco de Portugal disse estar “convicto de que a discussão será frutífera e ajudará a enriquecer a visão de todos os participantes relativamente ao empenho dos bancos centrais em cumprir a sua missão”.
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