ERSE contradiz Governo sobre despacho do mecanismo ibérico
O Governo e o regulador da energia têm interpretações contraditórias em relação ao último despacho sobre a comunicação do mecanismo ibérico, publicado na sequência da polémica com a Endesa.
Desde que o presidente da Endesa em Portugal, Nuno Ribeiro da Silva, afirmou que o valor das faturas da luz poderia aumentar 40% na sequência da introdução do mecanismo ibérico, o qual tem como objetivo controlar os preços da eletricidade, o Governo emitiu dois despachos. O primeiro, veio condicionar o pagamento de faturas, por parte dos serviços do Estado, à comercializadora Endesa. O segundo divide o Governo e o regulador da energia na interpretação: enquanto o ministério afirma que um dos pontos refere “apenas à Endesa”, a Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) indica que o despacho “não refere explicitamente qualquer comercializador”. Independentemente da interpretação, as sociedades de advogados contactadas pelo Eco/Capital Verde afirmam que as comercializadoras de energia elétrica podem contestar as regras impostas através deste último despacho.
O ponto da discórdia é o terceiro: “Todas as faturas emitidas às entidades compradoras vinculadas [entidades da administração, direta e indireta, do Estado] e que digam respeito a contratos de fornecimento de energia elétrica celebrados após o dia 26 de abril de 2022 e aos quais seja legalmente imputada a liquidação do valor do custo do ajuste de mercado de acordo com o Decreto-Lei n.º 33/2022 [o decreto que introduz o mecanismo ibérico] (…) integram informação referente ao benefício líquido decorrente da aplicação do mecanismo de ajuste dos custos de produção de energia elétrica”, lê-se no último despacho emitido pelo Governo, o 9799-B/2022. Ou seja, as faturas que são entregues a entidades da administração direta e indireta do Estado, e que estão sujeitas ao mecanismo ibérico porque o contrato foi firmado ou renovado a partir de 26 de abril, têm de passar a explicitar o benefício que é obtido com o mecanismo ibérico.
Questionado se este ponto se refere exclusivamente a faturas emitidas pela Endesa ou também a outros comercializadores, o Ministério do Ambiente e da Ação Climática (MAAC) é perentório: “sim, apenas à Endesa”. Já na ótica do regulador, “o Despacho n.º 9799-B/2022 não refere explicitamente qualquer comercializador. No contexto genérico de contratos de fornecimento a entidades públicas aplica-se o previsto no n.º 3 do referido despacho”, diz a ERSE em resposta à mesma questão colocada pelo ECO/Capital Verde.
Depois de emitido o despacho, o Governo publicou um esclarecimento sobre o mesmo onde reforça a sua interpretação. Nele, lê-se que “a Endesa inclui obrigatoriamente naquelas faturas a indicação do custo do ajuste e a informação respeitante ao benefício líquido decorrente da ação do mecanismo sobre os custos da produção de energia elétrica, nos termos do n.º 3”.
Na ótica do sócio da SRS Advogados, José Luís Moreira da Silva, “as referidas instruções [o esclarecimento feito pelo Governo] violam o Despacho do Secretário de Estado da Energia [o despacho 9799-B/2022]”, já que, no seu entender, “o Despacho é genérico e aplica-se a todos os fornecedores, e não apenas à Endesa”, à semelhança do que defende a ERSE. O mesmo conclui que “os despachos são contraditórios entre si e com as instruções”.
É noutro ponto, o 14.º, que o despacho indica que “os restantes comercializadores no mercado livre” podem optar, nas respetivas faturas, por colocar, ou não, o valor do custo do mecanismo. No entanto, caso optem por explicitar o custo, ficam mesmo obrigadas a incluir o benefício. Mas que faturas estão aqui em causa? E a Endesa está incluída neste grupo de comercializadores? Neste ponto, ERSE e Governo estão mais alinhados. A entidade reguladora indica que esta obrigação se aplica aos comercializadores em mercado, “incluindo os que sejam abrangidos pelo n.º 3 na parte que respeite a clientes fora do âmbito de entidades públicas”. O gabinete do ministro do Ambiente atesta: esta obrigação “aplica-se a todas as faturas, relativas a contratos aos quais o mecanismo ibérico seja aplicável” e diz respeito a todos os comercializadores, “incluindo a Endesa”.
Elétricas podem contestar despacho do mecanismo ibérico
As sociedades de advogados contactadas pelo Eco/Capital Verde assumem a possibilidade de as comercializadoras de energia elétrica virem a contestar as regras impostas pelo Governo através do despacho recentemente emitido, independentemente da interpretação em causa.
O sócio da SRS Advogados, José Luís Moreira da Silva, aponta que o último despacho poderá ser considerado “ilegal”, se com os novos procedimentos para validação das faturas violar o prazo de pagamento fixado em diretiva europeia e na lei. Além disso, entende que o despacho pode estar a violar os direitos subjetivos adquiridos por via do contrato, ao impor novas obrigações contratuais por esta via.
É que o referido despacho vem acrescentar uma inovação: impõe a divulgação do ajuste e do benefício nas faturas da luz. “Esta nova obrigação pode entender-se que é uma restrição à iniciativa económica privada”, defende José Luís Moreira da Silva, afirmando que, neste caso, a nova imposição só pode efetivar-se por lei da Assembleia da República ou por decreto-lei autorizado, “nunca por despacho inovatório do secretário de Estado ou do primeiro-ministro”. Posto isto, a obrigação pode entender-se como sendo “violadora da reserva de lei e como tal inconstitucional, logo nula” e “os fornecedores podem impugnar esta norma do despacho ou qualquer medida da sua aplicação, como a aplicação de uma coima, por inconstitucionalidade por violação de reserva e precedência de lei, escusando-se a cumprir”.
Já atendendo à interpretação dada pelo Governo através do esclarecimento, e que torna obrigatório unicamente para a Endesa explicitar o custo e o benefício nas faturas entregues a entidades do Estado, ao contrário dos restantes comercializadores, Frederico Vidigal, advogado da Macedo e Vitorino, defende que existe no último despacho “uma eventual questão de violação do princípio da igualdade”. “O Estado, nas suas atuações com os particulares, encontra-se obrigado a tratar de forma igual situações idênticas, a não ser que exista uma justificação objetiva para a diferença de tratamento”, indica.
O mesmo entende que, neste caso, “as simples declarações do presidente da Endesa sobre um possível aumento do preço” não constituem “justificação suficiente para uma tal diferenciação de tratamento”, uma vez que, ao que se conhece, “a Endesa não emitiu até ao momento qualquer fatura com aumento da energia que fornece” e “não está demonstrado que a Endesa tenha praticado qualquer prática especulativa ou sequer que tenha violado alguma obrigação relativa ao preço da energia”, tendo mesmo emitido um comunicado em que se compromete a manter os preços contratuais com os seus clientes residenciais em Portugal até ao final do ano.
Assim, “em tese, a Endesa terá pelo menos fundamentos para impugnar nos tribunais administrativos a validade do Despacho n.º 9799-B/2022, de 8 de agosto”. Além disso, a alteração das regras estabelecidas no contrato de fornecimento de energia, através do despacho, pode ainda “justificar um pedido de reequilíbrio económico do contrato” por parte da Endesa, “se das alterações impostas resultar um custo que torne o contrato mais caro para a empresa”, explica a mesma fonte.
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