Guia para a recuperação de empresas. As novas regras

Agilizar o processo de reestruturação de empresas para tentar salvar aquelas que são economicamente viáveis é o objectivo das novas medidas criadas no âmbito do Programa Capitalizar. Saiba o que muda.

Empresas com filas de credores à porta? E montanhas de dívidas? Agora há novas regras para agilizar o processo de restruturação. As mudanças, aprovadas esta quinta-feira em Conselho de Ministros, surgem a dois níveis: através da criação de novos mecanismos para a recuperação das empresas por via extrajudicial e a alteração das regras para quem opte por mecanismos judiciais.

A ideia é que o processo de recuperação surja o mais cedo possível, para aumentar as hipóteses de sucesso dos processos de reestruturação, que este seja mais célere, mais transparente e mais eficiente.

Todo este pacote legislativo consiste num dos pilares do Programa Capitalizar — que tem expressão, por exemplo, nas linhas de crédito com o mesmo nome que já se encontram ao dispor das empresas — que “visa promover estruturas financeiras mais equilibradas, reduzindo os passivos das empresas economicamente viáveis, bem como melhorar as condições de acesso ao financiamento das micro, pequenas e médias empresas”, pode ler-se no comunicado do Conselho de Ministros.

E resulta de várias constatações: de que o atual Processo Especial de Revitalização (PER) tem muitos aspetos que precisam ser melhorados, desde logo a articulação dos credores públicos (Fisco e Segurança Social) para que não sejam um obstáculo à recuperação das empresas; que as empresas recorrem ao PER já em fase de insolvência, o que adia a possibilidade de cobrar os créditos; que as empresas recorrem pouco à via extrajudicial; entram em processos de insolvência numa fase muito avançada de stress financeiro; e que é necessário libertar os tribunais destes processos — 70% das pendências são justificadas pelos PER, pelo que ficou decidido que esta figura jurídica passa a ser exclusiva das empresas. Os particulares deixam de ser abrangidos e a sua recuperação passa a ser feita por um regime mais simplificado e que consiste, grosso modo, num plano de pagamentos.

Assim, para tentar simplificar o processo de recuperação de empresas e responder também às críticas que várias instituições internacionais (FMI e OCDE) fazem ao sistema nacional foi criado o Regime Extrajudicial de Recuperação de Empresas (RERE), o Regime de Mediador de Recuperação de Empresas e o Regime Jurídico de Conversão dos Créditos em Capital. Saiba quais as alterações propostas que se encontram em consulta pública até 14 de abril.

Mecanismos extrajudiciais

  • Regime Extrajudicial de Recuperação de Empresas (RERE)

De forma resumida, este regime permite a um devedor, em situação económica difícil, ou mesmo em insolvência iminente, negociar com alguns credores de forma confidencial pelo menos 30% do seu passivo não subordinado, ou seja, aquele que tem de ser pago em primeiro lugar em caso de insolvência. O diploma, que está em consulta pública, entra em vigor a 1 de julho. Por outro lado, durante um período de 18 meses, ou seja até janeiro de 2019, as empresas que estão em situação de insolvência podem recorrer ao RERE.

Aderir à negociação do RERE é livre e pode envolver todos ou apenas alguns dos credores. Mas se entre os credores da empresa estiver o Fisco ou a Segurança Social então estas têm de participar obrigatoriamente. As partes devem “partilhar entre si de forma transparente informação atual, verdadeira e completa”. E o acordo deve ter medidas que contribuam para a recuperação da empresa em termos de reestruturação da atividade económica, do passivo, dos novos financiamentos que lhe venham a ser concedidos e as garantias a prestar.

Em termos de negociação do acordo, entra uma das novidades agora criadas. A negociação pode ser feita com a ajuda de um mediador de recuperação de empresas ou com o chamado credor líder, o interlocutor preferencial dos credores no contacto com a empresa. O prazo de negociação pode ser prorrogado se as partes envolvidas chegaram a acordo. Mas atenção, a empresa não pode sujeitar ao RERE mais do que um processo negocial de cada vez.

O acordo de reestruturação pode incidir sobre a totalidade ou apenas parte dos créditos das entidades nele participam. E não altera os direitos de créditos dos outros credores que não participam no acordo. Por outro lado, são considerados nulos todos os termos ou condições que o devedor tenha reconhecido a qualquer credor que não conste no acordo de reestruturação. Qualquer credor pode aderir às negociações em qualquer momento do processo, mas tem sempre de ser de modo integral.

Este acordo por escrito, que é acompanhado da lista de todas as ações judiciais em curso contra o devedor, as contas dos últimos três exercícios e uma declaração detalhada do passivo da empresa, — é confidencial a não ser que as partes decidam em contrário. Mas esta confidencialidade não afeta o direito de qualquer entidade que faça parte deste acordo de obter certidões comprovativas do teor dos documentos.

Quem assina o acordo não se pode desvincular dos compromissos assumidos durante o prazo assumido. Por outro lado, ficam suspensos todos os pedidos de insolvência da empresa por parte dos credores com quem está a ser negociado o acordo. Outra das vantagens consiste na obrigação de serem fornecidos os serviços essenciais, como água, luz, comunicações, etc, durante um prazo máximo de três meses (poderá ser maior se as empresas de utilities fizerem parte do acordo). Contudo, se a empresa não pagar as contas dentro do prazo, então o serviço pode ser cortado.

De acordo com as regras, o incumprimento de alguma obrigação prevista no acordo não o inviabiliza, nem afeta a validade dos atos societários que foram praticados.

Outra das preocupações era garantir às empresas que optam pela via extrajudicial o mesmo tratamento fiscal que têm as empresas que negoceiam a recuperação através do PER.

Se no decurso das negociações deste acordo a empresa entra numa situação de insolvência, o prazo das negociações não pode ser estendido. Se a empresa for mesmo declarada insolvente, as negociações encerram automaticamente.

Este novo regime vai co-habitar com o Sireve, o processo de negociação extra judicial em vigor, mas que tem tido “uma utilização marginal”, segundo o Executivo. A ministra da Justiça, Francisca van Dunem, admitiu mesmo que este processo venha a ser eliminado. O Sireve tem por base a celebração de um acordo entre a empresa e todos ou alguns dos seus credores, que representem pelo menos um terço do total das dívidas da empresa, e que viabilize a recuperação da sua situação financeira. A grande diferença é que este procedimento é assegurado pelo IAPMEI, que assume a função de facilitador e dinamizador em todo o processo.

  • Regime de Mediador de Recuperação de Empresas

Esta é uma nova figura criada para ajudar as empresas devedoras a diagnosticar a situação em que se encontram, mas também a negociar com os credores o acordo extrajudicial de reestruturação que vai permitir a recuperação da empresa.

O objetivo é “antecipar o momento de adoção de medidas destinadas à recuperação das empresas em dificuldades”, colocando ao “dispor das empresas um profissional qualificado, com formação específica em mediação e com experiência em funções de administração ou direção ou gestão de empresas, auditoria económico-financeira ou reestruturação de créditos”, lê-se na exposição do diploma, que já se encontra em consulta pública.

Os candidatos a mediador devem ter licenciatura nas áreas de gestão ou economia e experiência profissional com um mínimo de sete anos em funções de administração ou direção ou gestão de empresas, auditoria económico-financeira ou reestruturação de créditos. Caso tenham licenciatura noutras áreas então o período de experiência sobe para dez anos. Também podem ser mediadores os administradores judicias que se inscrevam no IAPMEI para exercer estas funções, uma inscrição que tem de ser renovada ao fim de cinco anos.

Mas isto não basta, é necessário ser idóneo, não ter incompatibilidades — como estar envolvido em empresas onde tenha desempenhado funções nos órgãos sociais — e frequentar um curso de formação, com aproveitamento, em mediação de recuperação de empresas, que será promovido por uma entidade que virá a ser certificada para o efeito. A duração do curso será estabelecida em portaria do Ministério da Economia e da Justiça.

A lista oficial de mediadores será pública e disponibilizada pelo IAPMEI, que também é responsável por recusar novas inscrições quando considerar que o número de mediadores é adequado. Além disso, também cabe ao IAPMEI avaliar os pedidos de suspensão — que podem ter no máximo dois anos — e de escusa de um processo “em caso de grave e temporária impossibilidade de exercício de funções” por incompatibilidade. É também este instituto público que acompanha e fiscaliza a atividade dos mediadores.

As empresas que queiram recorrer à figura do mediador devem apresentar um requerimento junto do IAPMEI que, por sua vez, o escolhe sequencialmente da lista de mediadores que possui, num prazo de cinco dias. Contudo, se o IAPMEI considerar que o processo é muito complexo pode designar um mediador que “considere ter a experiência e meios adequados”. Este é também um ponto importante. Os mediadores só devem aceitar as nomeações se dispuserem de tempo e meios necessários para o efetivo acompanhamento dos processos em que são nomeados.

Os mediadores devem ainda contratar um seguro de responsabilidade civil que cubra o risco inerente ao exercício das suas funções, devem agir com independência e isenção, devem tratar as partes de forma equitativa e imparcial, além de manter sigilo relativamente a todas as informações que lhes sejam dadas. Os mediadores não podem intermediar negócios realizados entre a empresa devedora e os credores, nem assessorar nenhuma das partes.

Por estas funções, os mediadores são remunerados além de terem direito ao reembolso das despesas. O pagamento é feito em três prestações: a primeira após a nomeação e que é assegurada pelo IAPMEI, a segunda após a elaboração do plano de recuperação, e a terceira após o encerramento do processo de negociação com os credores. Estas duas últimas ficam a cargo da empresa devedora.

Caso o IAPMEI considere que um mediador não cumpre as regras definidas pode suspendê-lo preventivamente, retirá-lo da lista de mediadores ou ainda aplicar coimas que variam entre 2.500 euros e 200 mil euros. A receita gerada por estas coimas vai 60% para o Estado e 40% para o IAPMEI.

Se as empresas que optam pela figura do mediador decidirem que afinal avançam para um PER e não para o RERE (mecanismo extrajudicial) podem pedir ajuda a esse mesmo mediador nas negociações com os credores no âmbito do PER.

  • Regime Jurídico de Conversão dos Créditos em Capital

Este regime permite às empresas que tenham capitais próprios negativos reestruturar os balanços e reforçar esses mesmos capitais, de forma célere, ao possibilitar que uma maioria de credores proponha uma conversão de créditos em capital social.

Este regime “é rodeado de diversas cautelas”, reconhece o Executivo na exposição do diploma, que também já está em consulta pública. A ideia é que a conversão de créditos em capital apenas seja feita em casos que haja uma “comprovada degradação do capital próprio e a mora de parte substancial do passivo”, situação que tem de ser avaliada por um profissional independente.

Ficam aqui de fora os créditos detidos sobre instituições de crédito, as sociedades financeiras, as empresas de investimento, as sociedades abertas e as entidades integradas no setor público empresarial. Tal como também não são passíveis de ser transformados em capital os créditos detidos por entidades públicas ou por entidades integradas no setor público empresarial, “excetuando-se, quanto a estas últimas, as instituições de crédito ou sociedades financeiras”.

E o que é a “comprovada degradação do capital próprio e a mora de parte substancial do passivo”? Significa que o capital próprio da sociedade é inferior ao capital social. E que estão em atraso “superior a 90 dias os créditos não subordinados sobre a sociedade de valor superior a 10% do total de créditos não subordinados ou, caso estejam em causa prestações de reembolso parcial de capital ou juros, desde que estas respeitem a créditos não subordinados de valor superior a 25% do total de créditos não subordinados”. E estas duas condições são cumulativas.

Além disso, para haver a conversão dos créditos em capital, a proposta tem de ser subscrita por credores cujos créditos constituam, pelo menos, dois terços do total do passivo da sociedade e a maioria dos créditos não subordinados.

Na elaboração do diploma houve ainda a expectativa de “salvaguardar adequadamente a posição dos sócios”, ao permitir que estes conversem com os credores sobre as alternativas à proposta de conversão, além de que lhes é dado o direito de preferência no aumento de capital, desde que haja entradas de dinheiro fresco, e podem depois vir a adquirir as participações subscritas pelos credores. As regras determinam ainda que o dinheiro injetado será obrigatoriamente aplicado na amortização dos créditos que seriam convertidos em capital.

Depois de recebida a proposta de conversão tem de ser convocada uma assembleia-geral da empresa num prazo de 60 dias.

Outra das preocupações foi “acautelar a posição de outros credores não aderentes”. A conversão é voluntária e os credores que não querem passar a deter capital da empresa não veem a sua situação alterada de forma alguma. Além de que “não se impede que continuem a correr, na pendência do procedimento, processos de execução ou de insolvência que corram contra a sociedade”, pode ler-se no diploma.

  • Regime da apropriação do bem empenhado no penhor mercantil

Este regime determina que, em caso de incumprimento por parte da empresa devedora, os bens dados como garantia são transferidos para o credor. Contudo, o credor é obrigado a transferir para o devedor a soma correspondente à diferença entre o valor do bem e o montante em dívida.

Ainda assim, de acordo com o diploma em consulta pública, as partes podem chegar a acordo que “a coisa empenhada” seja adjudicada ao credor pelo valor que o tribunal fixar ou que se opte pela venda extrajudicial do bem dado como garantia.

Mecanismos judiciais

  • Processo Especial de Revitalização (PER)

Ao nível dos regimes judiciais, a opção do Governo foi fazer alterações para “melhorar” a lei em vigor de modo a “aumentar a transparência, eficácia e segurança jurídica” do PER e dos processos de insolvência, sobretudo neste último caso, na verificação e gradação de créditos e na liquidação do ativo. É neste contexto que o Executivo vedou o acesso dos particulares ao PER, que passam a ter um acordo de pagamentos com os credores.

Uma das mudanças passa pela certificação prévia, por parte de um Revisor Oficial de Contas, que a empresa não está insolvente, ou seja, é uma empresa em situação económica difícil. Sendo que a definição de empresa em “situação económica difícil” é “enfrentar dificuldade séria para cumprir pontualmente as suas obrigações, designadamente por falta de de liquidez ou por conseguir obter crédito”. Por outro lado, para se aderir ao PER é necessária a concordância prévia de credores que representem, pelo menos 10% do passivo não subordinado do devedor e a apresentação de uma proposta de plano.

Ainda assim, de acordo com as novas regras já aprovadas, mas em consulta pública, os credores que decidam participar nas negociações em curso podem fazê-lo a qualquer momento, bastando para isso declará-lo à empresa por carta registada, que é depois junta ao processo.

Já para tentar aumentar a transparência do processo, a apresentação das reclamações de créditos passa a ser feita via Citius, a apresentação das listas de créditos e das votações passa a ser através de modelos pré-aprovados e passa a ser possível introduzir alterações antes da votação do plano de recuperação. Há ainda uma clarificação dos créditos abrangidos pelo plano.

Quando termina o prazo para as impugnações, os intervenientes têm dois meses para concluir as negociações, sendo que este prazo pode ser prorrogado só uma vez e por um mês. O administrador judicial provisório tem de dar acordo prévio e por escrito.

Se as negociações não chegarem a bom porto, tem de ser o administrador judicial provisório a comunicá-lo por meios eletrónicos e publicá-lo no portal Citius. O encerramento do PER “acarreta a extinção de todos os seus efeitos”. Se entretanto a empresa já estiver em situação de insolvência, o juiz deve declará-la no prazo de três dias úteis após ter recebido a comunicação do administrador judicial a dizer que as negociações do PER estavam encerradas sem sucesso.

Por outro lado, as empresas só podem voltar a recorrer a um PER passados dois anos após o encerramento do processo anterior. Mas, passa a ser possível juntar PER de grupos de sociedade, com a nomeação de um administrador judicial provisório comum.

Nos casos em que o PER é aprovado, mas ao fim de algum tempo o plano de recuperação não surte os efeitos desejados, os credores que ao longo do processo financiaram a atividade da empresa dando-lhe capital passam a ter “privilégio creditório mobiliário geral, graduado antes do privilégio creditório mobiliário geral concedido aos trabalhadores”. Ou seja, no momento de receber créditos estão à frente dos trabalhadores que são considerados os credores preferenciais.

  • Insolvência

Há semelhança do que acontece no caso do PER, a apresentação das reclamações de créditos passa a ser feita via Citius e a apresentação das listas de créditos, listas de presenças nas assembleias de credores e listas das votações passam a ser feitas por modelos pré-aprovados.

Em casos de especial complexidade, ou quando são exigidos conhecimentos muito específicos, o tribunal pode nomear, oficiosamente ou a pedido de algum interessado, mais do que um administrador de insolvência. Se a iniciativa partir de um requerente, então este deve propor um nome e fica responsável por pagar o administrador proposto. Por outro lado, se em causa estiver uma sociedade comercial que faça parte de um grupo com outras empresas também em processo da insolvência o juiz pode nomear o mesmo administrador de insolvência para todas as sociedades. Contudo, é obrigado a nomear outro administrador da insolvência apenas para analisar os créditos reclamados entre os devedores do mesmo grupo.

As novas regras visam ainda dinamizar o processo de verificação e gradação de créditos através da antecipação do momento de verificação de créditos, mas também do momento da gradação dos créditos, propriamente ditos, com a possível antecipação do momento da realização dos pagamentos.

A versão “melhorada” do processo de insolvência também pretende acelerar a venda de ativos através da publicitação imediata e obrigatória, através de portal eletrónico, da entrada de uma empresa em liquidação, com referência expressa aos seus ativos e preferência pelo recurso ao leilão eletrónico na venda de ativos.

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