Cuidar do Presente, sem hipotecar o Futuro

  • Ricardo Nunes
  • 26 Outubro 2022

O grande desafio passa pela aplicação de medidas de curto prazo que não hipotequem o médio e longo prazo.

As últimas semanas têm sido pródigas em anúncios no setor da energia, com várias promessas de apoio a empresas e famílias, numa conjuntura particularmente desafiante e da qual não se vislumbram ainda sinais de uma eventual melhoria ou estabilização. A grande incógnita prende-se com o impacto de um inverno mais ou menos rigoroso e com a resiliência das economias europeias face à atual situação dos preços.

A boa notícia foi verificar que a nova legislação (DL 72/2022) vai permitir tornar mais céleres e menos burocráticos os processos de licenciamento de produção renovável, tanto nos projetos de menor dimensão como nos de maior escala, contribuindo para o processo em curso de descarbonização da economia.

No passado dia 19 de outubro a ACEMEL realizou a sua conferência anual a qual contou com uma participação significativa e diversificada. No evento foi possível percecionar, não apenas através das apresentações, mas também das várias conversas informais tidas ao longo do dia, o que o setor pensa da crise energética e da eficácia das medidas aplicadas em Portugal e na Europa.

Sentiu-se, e também acredito, que o grande desafio passa pela aplicação de medidas de curto prazo que não hipotequem o médio e longo prazo.

A Europa tem enfrentado esta crise sem a solidariedade e união desejável. Claro que os países europeus têm interesses distintos: desde logo, têm sistemas energéticos com tecnologias de produção completamente diferentes em quantidade e diversidade, existem interligações melhores entre uns países do que outros, a capacidade de armazenamento difere entre estados-membros e as regras de mercado nunca foram verdadeiramente harmonizadas como foi sonhado num mercado interno de energia de preço único.

Por todas estas razões, às quais acrescem motivações políticas ou ideológicas, as medidas aprovadas durante o último ano para combater os malefícios sociais e económicos desta crise energética foram bastante diferentes entre países europeus.

Se, nos países nórdicos, tem havido preocupação para preservar a dinâmica do mercado (marginalista), com os diferentes players do mercado a receberem fundos e garantias estatais, de forma a garantir que, mesmo com o aumento excecional dos preços (e das exigências), os agentes podem continuar a atuar com eficácia em mercados de curto ou longo prazo, noutros países do centro da Europa, como é o caso da Alemanha ou da França, assistiu-se à nacionalização de alguns incumbentes, que, além da função social com os consumidores mais expostos, são obrigados a disponibilizar aos seus concorrentes independentes energia a preço competitivo para que o mercado possa continuar a funcionar de forma eficiente. Existiu ainda um terceiro nível de países que simplesmente não se intrometeram no mercado, limitando-se a cofinanciar, com uma espécie de “cheque energia”, o esforço dos consumidores.

E Portugal?

Em Portugal optou-se por fazer este necessário combate com intromissões diretas e profundas nos mercados (retalhista e marginalista).

Se por um lado, ao contrário da interpretação das diretivas europeias, reabrimos a possibilidade dos consumidores migrarem em condições (injustamente) mais vantajosas e definidas administrativamente para o mercado regulado, por outro, alterou-se de forma isolada, em termos europeus, o modelo de mercado marginalista ibérico, nomeadamente com a introdução de um mecanismo de decoupling do gás na produção de eletricidade. No curto prazo esta intervenção poderá ter algum efeito positivo, mas no longo prazo, quando este momento que vivemos estabilizar, deixará marcas que à data de hoje são impossíveis de antecipar.

Segundo diferentes estudos, o risco reputacional Português e Espanhol, sempre foi dos mais elevados da Europa. As constantes alterações legislativas, regulatórias e de mercado no setor da energia, potenciam ainda mais essa perceção o que, mais cedo ou mais tarde, afastará investidores e agentes de mercado que não querem estar sujeitos a este nível de stress nos seus modelos de negócios.

Por motivos de concentração de mercado, na ótica do comprador ou do vendedor, sempre foi muito mais difícil em Portugal ou Espanha fixar um preço de energia a médio e longo prazo quando comparado com os nossos congéneres europeus. E depois destas intervenções diretas e isoladas, o difícil tornou-se realmente impossível.

Quem vai adquirir um contrato de energia que tenha início depois de maio de 2023 sem saber se o mecanismo continua ou não após essa data? Quem acredita no índice de um contrato do ano 2025 ou 2026, quando não existem negócios ou sequer ordens há vários meses nesses contratos? Qual é o expectável preço de um PPA (Power Purchase Agreement) a 15 anos, quando não existem referenciais de preço consistentes?

Todos os investimentos em tecnologias mais ou menos renováveis, todas as decisões onde o custo com energia seja decisivo para a definição de um plano de negócio, são prejudicadas por esta imprevisibilidade e inconsistência.

Assim, estas duas intervenções, (1) abertura e incentivo do mercado regulado de gás e eletricidade, e (2) alterações específicas no mercado marginalista, diminuirão a concorrência entre os comercializadores, deixando apenas no “jogo” as empresas verticalmente integradas. Estas intervenções prejudicam estimativas, gestão de risco e conhecimento dos preços de longo prazo, num mercado que como se sabe, cada vez mais, até pela incorporação progressiva de energias renováveis no nosso mix energético, terá na volatilidade uma palavra-chave.

Na verdade, estas medidas podem até cumprir o objetivo de reduzir o preço da energia no imediato, mas hipotecam, de forma muito perigosa, o futuro. Tanto no funcionamento dos mercados quanto nas opções ao dispor dos consumidores.

Na energia, como em muitos outros setores, tem de haver políticas que acrescentem previsibilidade, consistência, competitividade e transparência a todos os agentes da cadeia de valor. Só assim é possível ter um setor dinâmico, interessante e que cumpra as expectativas dos consumidores e dos investidores.

  • Ricardo Nunes
  • Economista, Chief Strategy Officer do OMIP, membro do Observatório de Energia da Sedes

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