Inflação inclina Congresso dos EUA para uma maioria republicana
Com a inflação a pesar nas preocupações dos norte-americanos, é quase certo que os republicanos retomem a maioria pelo menos na Câmara dos Representantes, ameaçando a agenda de Biden e o apoio a Kiev.
Dois anos depois das eleições que deram a presidência dos EUA a Joe Biden e uma maioria no Congresso ao partido Democrata, os norte-americanos são chamados às urnas esta terça-feira para decidir o controlo das duas câmaras e de vários governos estaduais. A situação económica surge como a principal preocupação dos eleitores, mas, embora o emprego e o PIB estejam em bons níveis, as sondagens apontam para que os republicanos retomem a maioria pelo menos na Câmara dos Representantes. Este cenário, que até levou Obama a entrar em jogo na campanha democrata, não só ameaça o cumprimento da agenda no restante mandato de Joe Biden, como pode colocar em causa o apoio do país à Ucrânia e trazer (ainda mais) instabilidade à democracia norte-americana.
Quando, em junho passado, o Supremo Tribunal revogou o acórdão “Roe vs Wade”, que, em 1973, legalizou o direito ao aborto nos Estados Unidos, deixando nas mãos de cada Estado a decisão de proibir ou autorizar a realização de abortos, chegou a pensar-se que esta decisão daria vantagem ao Partido Democrata nas eleições intercalares, pelo menos no voto feminino. Contudo, uma sondagem do jornal The New York Times com o Siena College mostra que as mulheres sem filiação política estão a preferir os republicanos.
Essa sondagem revela, ao mesmo tempo, que a economia e a inflação são as questões com mais peso, notando-se também uma preocupação com a criminalidade e a violência, sobretudo nas intenções de voto das mulheres das zonas suburbanas. Ou seja, o que provavelmente está a acontecer no eleitorado feminino que vive fora das grandes cidades costeiras é que a segurança física e económica é mais importante do que o aborto, resume ao ECO o investigador Miguel Monjardino, do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica.
A economia é, aliás, a principal preocupação de um número substancial de norte-americanos e, segundo a Gallup, 49% consideram que a situação económica do país é má, apesar dos baixos níveis de desemprego face às últimas décadas (taxa de 3,7% em outubro) e de a economia ter crescido 2,6% no terceiro trimestre – depois de ter contraído na primeira metade do ano. Só que a subida da inflação, que em setembro se fixou em 8,2%, está a ser sentida, nas palavras de Miguel Monjardino, como uma “coisa penosa”.
Não só isso explica as sondagens que apontam para uma maioria republicana pelo menos na câmara baixa, como também a baixa taxa de popularidade de Joe Biden a meio do mandato, que a Gallup situava nos 40% na passada quarta-feira. “O único presidente que foi a eleições intercalares com menos foi George W. Bush, com 38%”, nota o académico da Universidade Católica.
Esta taxa de popularidade “anormalmente” baixa de um Presidente dos EUA a meio do mandato levou Barack Obama a vir a jogo, percorrendo os estados onde a situação se revela mais difícil para os democratas. “Não desistam da política”, afirmou o antigo chefe de Estado num comício, procurando mobilizar o voto nos democratas contra as teorias da conspiração divulgadas por candidatos e apoiantes do Partido Republicano nas redes sociais. A intenção de Obama é, sobretudo, assegurar o voto dos independentes, que, segundo Miguel Monjardino, “são muito importantes numa eleição deste tipo”.
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Por outro lado, “é um sinal de quão difíceis as coisas estão” para os democratas, remata. Também Raquel Vaz Pinto, investigadora no Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa (IPRI-NOVA), vê a entrada em cena do ex-presidente como um ato de desespero dos democratas, mostrando dúvidas de até que ponto será benéfica. “A posteriori, talvez valerá a pena perceber se é verdade que Obama é capaz, do ponto de vista democrata, de ser um trunfo para quem vota republicano ou quem está inclinado para, mas, por exemplo, não se revê no ‘trumpismo’”, aponta a analista de política internacional.
Além do “trunfo” Obama, a administração Biden e os democratas no Congresso têm aprovado pacotes legislativos ao nível de investimento em infraestruturas, tecnologias e cuidados primários. Na semana passada, foram até anunciados 4,5 mil milhões de dólares para ajudar a reduzir os custos de energia doméstica das famílias de baixos rendimentos. Mas com tanto dinheiro público a ser canalizado para as famílias, o que explica as projeções de que os democratas serão punidos eleitoralmente, sobretudo na Câmara dos Representantes?
Ainda que a tradição política nos EUA seja que o partido que controla a presidência perca as intercalares – sendo as exceções recentes o ano de 2002, depois dos acontecimentos do 11 de setembro, com George W. Bush; e 1998, com Bill Clinton –, a única explicação, no entender de Miguel Monjardino, “é que os republicanos têm sido muito melhores que os democratas em contar uma história política”, tendo também em conta que a economia “não está assim tão má”.
“Achamos inconcebível que um Partido Republicano ainda dominado por Donald Trump consiga ganhar eleições”, mas “o Partido Democrata é, hoje em dia, o partido das pessoas mais educadas e mais ricas e o Partido Republicano é o partido da classe média e da classe trabalhadora”, defende o analista da Universidade Católica. “Embora situemos os democratas à esquerda – e de facto estão à esquerda nos EUA –, é uma esquerda que abandonou a classe trabalhadora, sobretudo a classe trabalhadora branca”, acrescenta.
Miguel Monjardino dá o exemplo das mulheres brancas sem educação universitária, que as sondagens mostram mais inclinadas a votar no Partido Republicano. Isto revela, em resumo, que “os dois grandes partidos norte-americanos inverteram a sua demografia e o seu eleitorado”.
A “história política” contada por Donald Trump e os seus seguidores, aparentemente com mais sucesso do que a dos democratas, de acordo com as sondagens, é a de uma “conspiração” das elites democratas que vivem bem, principalmente na Califórnia e no Nordeste, e que têm a melhor educação possível, contra o modo de vida, a cultura da classe trabalhadora e da classe média que vive cada vez pior, explica Miguel Monjardino.
Nós, em Portugal e na Europa, fixamo-nos na corrupção, na incompetência, na mentira reiterada do Donald Trump. Mas, para essas pessoas que apoiam esse setor dos republicanos, isso não vale nada. O que conta é que Trump está com eles no combate contra essa elite imaginária, que os ataca. Ou seja, os democratas precisam de uma história muito melhor do que aquela que têm.
Considerando que Miguel Monjardino “põe um dedo na mouche”, a investigadora Raquel Vaz Pinto acrescenta que a tónica deste Partido Republicano “em versão Trump” é uma agenda que é, em primeiro lugar, “anti quase tudo aquilo que a administração Biden quer fazer”. Ao mesmo tempo, “se há coisa que caracteriza estes partidários trumpistas é – não digo a rejeição, mas – a falta de respeito em termos das instituições”, justifica.
Deste modo, se a administração Biden perder a maioria que tem neste momento no Congresso, “vai passar a gastar uma parte do seu tempo a lidar internamente com este ruído e esta confusão interna”, que se diferencia da viragem em intercalares anteriores por, do outro lado, estarem candidatos para quem muitas das regras que sustentam a democracia liberal “não são consensuais”, assinala ainda Raquel Vaz Pinto.
Aqui, servem de exemplo os candidatos republicanos a governador na Pensilvânia, no Arizona, no Michigan e Wisconsin, que acham que Joe Biden é um Presidente fraudulento e que Donald Trump foi o verdadeiro vencedor das presidenciais de 2020. Ambos os investigadores levantam preocupações sobretudo em relação à possível eleição destes quatro candidatos, tendo em conta o papel decisivo que o cargo de governador tem na certificação dos resultados das eleições presidenciais.
Maioria republicana deixará apoio à Ucrânia sob ameaça
Não é só a democracia norte-americana que fica em causa caso se confirmem as sondagens para as eleições desta terça-feira. Perder o controlo da Câmara dos Representantes e/ou do Senado tornará mais difícil para Joe Biden renegociar pacotes económicos e orçamentos, como também poderá assistir-se a um aumento das dúvidas em relação ao apoio que tem sido concedido pelos EUA à Ucrânia.
O líder do Partido Republicano na Câmara dos Representantes, Kevin McCarthy, será o próximo speaker, isto é, o presidente daquele órgão, se os republicanos ficarem em maioria. Na última semana, McCarthy frisou que, caso se torne a terceira figura de Estado – o que lhe dará a competência de mexer no dinheiro público –, deixará de “passar cheques em branco” a Kiev.
Citado pelo Expresso, um porta-voz de McCarthy disse, na passada quinta-feira, que “mais cedo ou mais tarde os americanos estarão a viver em recessão, após meses de inflação galopante, com os preços dos alimentos e dos combustíveis a baterem recordes”. “Perante isto, não me parece que esses mesmos americanos queiram continuar a financiar da mesma maneira o Governo ucraniano”, argumentou, reforçando as declarações de McCarthy na véspera, de que “a Ucrânia é importante, mas, ao mesmo tempo, não pode ser a única coisa e não pode haver crédito ilimitado”.
Miguel Monjardino nota que, a nível nacional, o que acontece normalmente quando um partido da oposição ganha o controlo de uma das câmaras é que a agenda legislativa do presidente fica paralisada, sendo a tendência virar-se mais para questões externas. “Foi o que aconteceu com o Barack Obama, foi o que aconteceu com o George W. Bush, foi o que aconteceu com Bill Clinton”, exemplifica.
Ainda assim, mesmo para o partido com maioria no Congresso, nem sempre é fácil conseguir que toda a gente apoie o mesmo pacote legislativo. “Haverá certamente, à medida que o tempo passa, republicanos com dúvidas em relação à dimensão do apoio que tem sido concedido pelos EUA à Ucrânia”, realça o investigador, considerando “inevitável que isso aconteça”. Aliás, nas últimas semanas até congressistas do Partido Democrata apelaram a Biden que repense a estratégia do país em relação a Kiev.
No entanto, desconhece-se qual será a expressão numérica dessas dúvidas na Câmara dos Representantes, tendo em conta que mesmo no seio do Partido Republicano existe uma coligação com ideias diferentes, que Monjardino distingue entre “as ideias de Trump” e a mensagem política moderada, por exemplo, do governador da Virgínia. Por isso, “não admiraria que continuasse a existir uma maioria clara que continue a apoiar a Ucrânia”, sustenta.
Entre as várias decisões de política externa, nas quais os EUA estão fortemente empenhados, destaca-se em particular e por razões evidentes o apoio à Ucrânia face à invasão russa. E aí também me parece que podemos estar a assistir, mais uma vez, a divisões. Começamos a ver de uma forma mais coerente um discurso com uma ideia de que os Estados Unidos devem gastar mais dinheiro dentro de casa do que fora de casa.
Nas eleições intercalares desta terça-feira, que irão decidir o controlo do Congresso e de 36 governos estaduais, cinco serão decisivos, com corridas que podem cair para os democratas ou para os republicanos: Geórgia, Pensilvânia, Wisconsin, Arizona e Nevada. No Senado, os republicanos estão a defender 21 assentos e os democratas defendem 14, enquanto para a Câmara dos Representantes estão em disputa todos os 435 lugares.
A maioria democrata no Senado é mínima, com 50 senadores para cada lado e a vice-presidente Kamala Harris a desempatar a favor do partido democrata. Isso significa que os estados com desfechos imprevisíveis vão decidir o controlo da câmara alta, com repercussões para a retenção do poder junto dos democratas ou a conquista total do Congresso pelos republicanos.
Neste momento, os democratas têm uma probabilidade ligeiramente mais alta de manterem o poder no Senado – 54 em 100 segundo o site FiveThirtyEight –, mas essa vantagem diminuiu drasticamente no último mês (era de 71 em 100 para os democratas a 20 de setembro). No que toca à Câmara dos Representantes, é quase certo que os republicanos vão retomar o controlo – de acordo com o FiveThirtyEight, as probabilidades de vitória são de 81 em 100.
Independentemente de quem ganhe as eleições, numa coisa os republicanos e os democratas continuarão a concordar no Congresso: a posição dos Estados Unidos em relação à China.
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