Um Estado Parafiscal Florestal – a respeito da “nova” Contribuição Especial para a Conservação dos Recursos Florestais

  • Filipe de Vasconcelos Fernandes
  • 5 Janeiro 2023

A criação de impostos especiais incidentes sobre volume de negócios encerra um aspeto particularmente pernicioso deste Estado Parafiscal, a que urge colocar termo.

1. A Contribuição Especial para a Conservação dos Recursos Florestais (CECRF)

Muito recentemente, foi publicado o Decreto-Lei n.º 88/2022, de 30 de dezembro, que procede à regulamentação da designada contribuição especial para a conservação dos recursos florestais (CECRF), determinando as condições da sua aplicação.

Ao nível dos pressupostos subjacentes, é inicialmente referido que a imposição da CECRF tem por base a recuperação dos recursos naturais explorados de forma intensiva no exercício das atividades económicas, tendo por base os princípios da responsabilidade e da prevenção e operacionalizando ainda o princípio do utilizador-pagador.

Ao mesmo tempo, é também referido que, no que respeita à utilização dos recursos florestais e do solo, a CECRF incide de forma equilibrada sobre o volume de negócios de sujeitos passivos de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares que obtenham rendimentos empresariais e profissionais ou de IRC que exerçam, a título principal, uma atividade comercial, industrial ou agrícola em que utilizem, incorporem ou transformem, de forma intensiva, recursos florestais.

Sem prejuízo de não ser claro o que poderá entender-se por uma incidência equilibrada – já que a CECRF incide sobre atividades económicas que utilizem, incorporem ou transformem, de forma intensiva, recursos florestais, a uma taxa de 0,2% – parece-nos (ainda) mais impressivo o facto de o referido tributo repousar sobre volume de negócios.

Ora, estando em causa um tributo que se parametriza pela tributação do rendimento, o regime que procede à regulamentação da CECRF deve necessária vinculação ao princípio da tributação pelo rendimento (ou lucro) real consagrado no artigo 104.º, n.º2, da Constituição da República Portuguesa, bem como a todos os respetivos corolários.

A construção de uma base de tributação alicerçada no volume de negócios – que confirma que a CECRF é, na realidade, um verdadeiro imposto especial sobre atividades económicas que utilizam, incorporam ou transformam, de forma intensiva, recursos florestais – apresenta, a este nível, um potencial de muito significativa margem de desconformidade ao referido imperativo constitucional, com todas as consequências que daí poderão decorrer, inclusive ao nível de futura litigância associada.

2. Este tributo estará ainda em vigor (?)

No Decreto-Lei n.º 88/2022, de 30 de dezembro, é previamente referido que “[o] artigo 208.º da Lei do Orçamento do Estado para 2020, aprovado pela Lei n.º 2/2020, de 31 de março, na sua redação atual, criou uma contribuição especial para a conservação dos recursos florestais com o objetivo de promover a coesão territorial e a sustentabilidade dos recursos florestais, cuja regulamentação cabe, nos termos do artigo 314.º da Lei do Orçamento do Estado para 2022, aprovado pela Lei n.º 12/2022, de 27 de junho, ao Governo, por Decreto-Lei”.

Deste modo, verifica-se que o Governo assumiu o pressuposto de que, desde 2020, esteve em vigor a dita contribuição especial para a conservação dos recursos florestais, estando a respetiva aplicação dependente da regulamentação, publicada passados quase três anos da criação do respetivo regime”.

Trata-se de um pressuposto que não deixa de nos suscitar algumas dúvidas. Sendo certo que, em 2020, nada fora dito quanto à natureza extraordinária da CECRF – razão que explicaria, em termos lógicos, o silêncio das Lei do Orçamento do Estado de 2021 e 2022 sobre o mesmo tema, reaparecendo apenas em 2023 – não deixa de ser igualmente um facto que outras contribuições, como é o caso da Contribuição sobre o Setor Bancário (CSB), criada em 2011 e cujo regime vem sendo objeto de prorrogação todos os anos, não precisaram de incluir o desiderato formal “extraordinária” para como tal serem tratadas.

Seja como for, a regulamentação da CECRF quase três anos depois da respetiva criação atribui a este tributo uma fragilidade muito particular, por contraposição a outros tributos em circunstâncias semelhantes, já que denuncia (seguramente) os vários obstáculos que, em especial nos planos legal e constitucional, impediram a efetivação do tributo no sistema português.

3. As contribuições especiais seguem o regime dos impostos!

A CECRF é formalmente tratada como contribuição especial, facto que, por si só, já seriam suficiente para que se deva reconduzir o respetivo enquadramento ao regime legal e constitucional dos impostos – por oposição ao que sucede com uma outra figura, muitas vezes confundida com aquela primeira espécie de contribuições, as designadas contribuições financeiras.

Ainda assim, conforme referimos, está em causa um verdadeiro imposto especial sobre atividades económicas que utilizam, incorporam ou transformam, de forma intensiva, recursos florestais.

Esta qualificação permitirá um escrutínio efetivo de problemas de natureza legal e constitucional cuja regulamentação agora conhecida vem suscitar.

Para oferece um mero e simples exemplo, será interessante perceber – mormente, por parte do Tribunal Constitucional – até que ponto pode o Governo, por mero Decreto-Lei, proceder a uma regulamentação que, em termos práticos, acaba por definir de raiz os elementos essenciais deste tributo, sendo exemplos claros a incidência subjetiva ou a taxa aplicável, que tão pouco estavam definidas na Lei do Orçamento do Estado para 2020.

4. Perspetivas de futuro

O regime que procede à regulamentação da CECRF – que, na prática, acaba por estabelecer os termos da sua efetiva criação – vem introduzir no sistema fiscal português mais um imposto especial, de base setorial, que onera o volume de negócios, em termos semelhantes ao que sucede com a Contribuição extraordinária sobre os fornecedores da indústria de dispositivos médicos do Serviço Nacional de Saúde (CEDM).

Sem prejuízo das múltiplas discussões em curso, em especial junto do Tribunal Constitucional, a respeito dos tributos formalmente catalogados como extraordinários (caso da Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético (CESE)), a criação de impostos especiais incidentes sobre volume de negócios encerra um aspeto particularmente pernicioso deste Estado Parafiscal, a que urge colocar termo.

A ser de outro modo, e consentindo-se no proliferar descontrolado de tributos com semelhante natureza, a consideração dos dispositivos constitucionais em matéria fiscal, tal como constantes no texto da CRP, oferecerão pouco mais do que, a este mesmo nível, já era garantido aos contribuintes pela Constituição de 1933.

  • Filipe de Vasconcelos Fernandes
  • Assistente na Faculdade de Direito de Lisboa e counsel na Vieira de Almeida

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