Colocar nas mãos das pessoas a escolha do número de dias de descanso não é o remédio para o burnout. Aliás, se não for bem preparada, a medida pode mesmo contribuir para o stress e ansiedade.
Parece um sonho, mas em algumas empresas, mesmo em território nacional, é já uma realidade: férias pagas e sem limites. Na Fidel API todos os colaboradores – independentemente da sua antiguidade – podem usufruir deste benefício e na unicórnio Anchorage Digital aplica-se uma Política de Férias Flexível. A prática de total liberdade no que toca aos dias de descanso, que se vulgarizou nas tecnológicas americanas, está a ganhar adeptos em todo o mundo, sobretudo nos setores onde é mais desafiante contratar e fidelizar o talento. Uma em cada dez empresas norte-americanas já adotou este modelo, revela a Bloomberg.
O banco de investimento Goldman Sachs já o faz, tal como a Netflix. E somam-se as experiências levadas a cabo por empresas como o Twitter ou o LinkedIn. Os modelos variam. No Goldman Sachs, apenas os profissionais sénior podem tirar um número ilimitado de dias de férias, enquanto os trabalhadores mais novos continuam a ter limites para as férias, tendo, contudo, direito a, pelo menos, dois dias extra por ano. Já na Netflix – como diz o livro – “A regra é não ter regras”. A política no que toca às férias é simples: “gozem-nas”, refere Reed Hastings, presidente e CEO da Netflix, no livro. A medida faz parte de uma política mais abrangente de eliminação de controlos, quer de dias de descanso, quer de horas trabalhadas ou presença no escritório.
Em Portugal, a Fidel API é uma das companhias que decidiu implementar a prática de férias ilimitadas remuneradas para os seus colaboradores. “Todos os empregados, independentemente da função ou nível de antiguidade, têm direito a férias ilimitadas”, avança Carlos Vilhena, diretor de engenharia da fintech.
Na Anchorage Digital, o “ilimitado” tem, contudo, alguns limites, dando-se, por isso mesmo, prioridade à seguinte terminologia: Política de Férias Flexível (PFF). O objetivo é “garantir que todos os colaboradores tenham a flexibilidade de que precisam para usufruir de tempo livre fora do trabalho, para que se possam divertir, descansar e recarregar energias”, explica Stephanie Mardell, head of people da Anchorage Digital. Nos meses em que não há feriados nacionais ou momentos de pausa em toda a empresa, os colaboradores recebem um “Anchoring Day”, para que possam desligar completamente das suas responsabilidades laborais e gozar, assim, de um dia de férias extra.
Uma má gestão, por parte do trabalhador, entre o seu tempo de produtividade laboral e o descanso, poderá desencadear um síndrome de burnout, causado por exaustão extrema.
Um sonho tornado realidade para os profissionais e, simultaneamente, um chamariz de novos talentos para as empresas. Mas não é por isso que esta prática deixa de acarretar alguns riscos, alertam os especialistas. Riscos que as empresas têm de acautelar.
Perigo da auto sabotagem dos períodos de férias
“Talvez tenhamos que considerar que o ‘ilimitado’ poderá ser sempre pautado pelo limite. Ou seja, as empresas necessitam de produtividade, logo o ilimitado fica, deste modo, mais condicionado. Convém ter presente que poderão existir necessidades de crescimento económico para a continuidade da existência da própria empresa, e que este terá de ser assegurado pelo desempenho de todos os trabalhadores”, começa por alertar a psicóloga Susana Firmino.
“O trabalhador tem a responsabilidade de assegurar uma não interferência do usufruto dos seus períodos ilimitados de férias com a necessidade de crescimento da empresa. Ora, isto poderá gerar alguns níveis de ansiedade nos trabalhadores. E não só: os trabalhadores poderão como que auto sabotarem os períodos de férias com trabalho, por forma a serem cumpridos prazos”, continua.
Este é, precisamente, um dos principais desafios que Susana Firmino identifica nesta prática. “Tem de haver uma abertura em relação aos objetivos de crescimento anual da empresa, aos prazos… Tudo isto para que o trabalhador se possa organizar, para que possa gerir o seu desempenho, o seu tempo…”, diz a psicóloga. E acrescenta: “Poderá funcionar melhor em determinadas empresas. Há aquelas que têm agregados diversos projetos, com prazos definidos para entrega aos clientes. E, não haja dúvida, há determinadas iniciativas que poderão ajudar o trabalhador a, com maior facilidade, autorregular a sua produtividade e descanso. Uma má gestão, por parte do trabalhador, entre o seu tempo de produtividade laboral e o descanso, poderá desencadear a síndrome de burnout, causado por exaustão extrema. Ora, isto implica uma maior supervisão por parte dos recursos humanos das empresas sobre os seus colaboradores, podendo ser necessário apoiá-los na gestão do seu tempo de trabalho e no uso das férias ilimitadas.”
O CEO da Netflix, no livro, reforça outro desafio que é preciso acautelar, de modo a não tornar a “eliminação da política relativa a férias” numa política de “eliminação de férias”. “Os líderes têm de dar o exemplo e gozar férias extensas. (…) Se o CEO está a gozar apenas duas semanas de férias, é evidente que os seus colaboradores ficam com a sensação de que o plano ilimitado não lhes dá muita liberdade. É provável que gozem mais férias com três semanas atribuídas do que com um número ilimitado e um patrão que dá o exemplo de gozar apenas duas. Não existindo uma política, o volume de férias que as pessoas gozam reflete em grande medida aquilo que veem os superiores e os colegas gozar, motivo pelo qual, se quiser eliminar a sua política referente a férias, deve começar por convencer todos os líderes a gozar um volume significativo de férias e a falar muito sobre isso”, explica.
Nos Estados Unidos, apesar de a prática começar a ser cada vez mais comum entre as empresas, os colaboradores que podem usufruir de férias ilimitadas gozam apenas entre 11 a 12 dias de descanso por ano, revela uma investigação realizada pela Namely. A consultora atribui os baixos números de dias de férias gozados às incertezas criadas pela pandemia global, indicadores económicos e agitação política.
“O caos nas sociedades não ocorre pela existência de limites”, defende Susana Firmino. “Os limites são, na verdade, regras saudáveis para o ser humano se ir situando nos relacionamentos íntimos ou profissionais. Concordo com Joe Wiggins, um especialista nestas matérias de tendências de trabalho, quando diz que os limites permitem-nos conservar a energia emocional. Assim, quando se fala em ‘ilimitado’, isto poderá causar um conflito emocional entre a necessidade, digamos assim, de ter limites e a conceptualização de férias ilimitadas, associada à uma ideia de desorganização, incapacidade de gestão, levando a um maior desgaste emocional por parte do trabalhador.”
A Fidel API, que há muito que oferece liberdade para o descanso, não sente que coloca essa pressão acrescida sobre os ombros dos seus trabalhadores. Antes pelo contrário. “Queremos fomentar uma cultura que dê às pessoas plena confiança e autonomia e sabíamos que meias medidas, como começar trinta minutos mais tarde do que o normal ou ir para a sessão ocasional de ginástica a meio da tarde, não seriam suficientes. Precisávamos de uma abordagem flexível à forma como a equipa tira férias, para que cada empregado tenha direito a férias ilimitadas e possa escolher onde e quando trabalha. Por sua vez, confiamos neles para utilizar estas políticas de uma forma que proporcione o melhor para a empresa”, justifica Carlos Vilhena.
O objetivo é ter uma “mão de obra saudável que se sinta segura, justificada e encorajada a tirar férias quando quiser, e não apenas quando for necessário”. “Não acreditamos que o desempenho seja medido por horas acumuladas ou pelo cansaço no final da semana. Acreditamos, sim, na construção de um ambiente de trabalho flexível onde todos possam se autogerir enquanto entregam o melhor resultado final”, refere o profissional.
Sabíamos que meias medidas, como começar trinta minutos mais tarde do que o normal ou ir para a sessão ocasional de ginástica a meio da tarde, não seriam suficientes. Precisávamos de uma abordagem flexível à forma como a equipa tira férias.
Todos os 170 colaboradores da fintech já utilizam este benefício. “Estamos realmente orgulhosos de como cada empregado, não importa há quanto tempo esteja na empresa, utiliza este benefício para manter um equilíbrio entre trabalho e vida pessoal.”
Ainda assim, o diretor de engenharia da Fidel API está consciente dos argumentos que sugerem que o tempo de férias ilimitado leva a que as pessoas tirem menos férias em geral. “É, frequentemente, uma consequência de expectativas e processos pouco claros, em vez de uma falha na própria política”, considera. Para evitar que isso aconteça, a Fidel API conta com algumas medidas.
“Entre o Natal e o Ano Novo, todos na Fidel API entram em modo férias. Aqueles que estão virados para o cliente utilizam rotações estritamente temporárias, para que possam ajudar aqueles que necessitam de apoio urgente e obter o máximo de tempo de paragem possível”, exemplifica Carlos Vilhena.
Admitindo que, sem ver toda a equipa a trabalhar no escritório, os sinais de esgotamento e stress possam ser mais difíceis de reconhecer, a empresa realiza também inquéritos semanais de bem-estar e formação de gestores para verificar regularmente a sua equipa, encorajando-os a gozar férias e fazer uso dos horários de trabalho flexíveis. “Também incentivamos vários dias de férias obrigatórios para desligar e recarregar coletivamente”, acrescenta.
Questionado sobre a média de dias de férias gozadas na empresa, Carlos Vilhena assegura que na Fidel API todos os colaboradores tiram o tempo de folga a que têm direito e que precisam de tirar, em conformidade com as suas leis laborais locais. “A diferença é que, se quiserem tirar mais, nós encorajamo-los a fazê-lo e apoiamo-lo, sem qualquer tipo de julgamentos”, reforça.
Acautelar riscos e considerar desafios
Para Ana Tereza Maçarico a questão do possível aumento dos níveis de stress e ansiedade, levando mesmo ao esgotamento, não está relacionada com a prática de férias ilimitadas per si. “Imagino que sendo sempre uma opção do trabalhador usá-los ou não – além do limite mínimo legal estabelecido – não será causa de stress”, afirma a human capital & HR management consulting. O eventual stress poderá vir, defende a especialista, “de a carga de trabalho se manter, assim como a organização e os processos de trabalho e, então, o trabalhador será compelido a produzir o mesmo em menos dias”.
Os principais desafios têm a ver, defende a especialista em RH, com a organização e gestão dos processos de recursos humanos. “Para organizações de alguma dimensão torna-se difícil planear a força de trabalho ao moldar a sua entrega a cada um. Cada vez será mais o caminho, em muitos aspetos da relação de trabalho, mas a imagem imediata é a do caos”, salienta.
Nos setores e para os trabalhadores menos autónomos na organização do seu trabalho, não será possível reorganizar-se de modo a libertar mais dias de férias mantendo a produção. Ou uns podem ter mais férias e outros não – iniquidade – ou voltamos ao desafio da rentabilidade, aumentando efetivos.
Ana Tereza Maçarico destaca outras questões a ter em conta: a rendibilidade e sustentabilidade – “pensando nos setores e trabalhadores em geral, se só mudarmos para mais dias não produtivos, não mudando mais nada na organização do trabalho, ou cai a produção da empresa e aumentam os custos; ou os trabalhadores concentram mais trabalho em menos horas e colapsam, gerando custos vários, diretos e indiretos; ou aumentamos o efetivo de trabalhadores, os custos, para a mesma produção” – e a equidade – “nos setores e para os trabalhadores menos autónomos na organização do seu trabalho, não será possível reorganizar-se de modo a libertar mais dias de férias mantendo a produção. Ou uns podem ter mais férias e outros não (iniquidade) ou voltamos ao desafio da rentabilidade, aumentando efetivos”.
Na Anchorage Digital, que desenhou uma política de férias um pouco diferente, os profissionais definem, juntamente com os seus gestores e equipas, os objetivos e as métricas que permitam avaliar o resultado do seu trabalho, bem como os períodos de descanso de que possam usufruir.
“Nos meses em que não há feriados nacionais ou momentos de pausa em toda a empresa, os colaboradores recebem um ‘Anchoring Day’ para que possam desligar completamente das responsabilidades de trabalho. Dependendo dos anos, os nossos colaboradores têm quatro a cinco ‘Anchoring Days’ por ano para que, todos os meses, possam ter, pelo menos, um dia útil em que conseguem descansar. Adicionalmente, temos outros tipos de PFF que incluem dois dias extras de férias entre o Natal e o Ano Novo”, descreve a head of people do unicórnio com ADN português, liderado por Diogo Mónica.
“Também oferecemos outros tipos de licenças, incluindo uma generosa política de licença parental que inclui dias e retribuições suplementares que não estejam cobertas pela Segurança Social”, acrescenta Stephanie Mardell. Esta política baseia-se no “princípio de confiança mútua e de comunidade, construída entre todos nós na ‘vila’ Anchorage”.
Não existem requisitos de antiguidade ou função, com todos os colaboradores a tempo inteiro a poder gozar a PFF da Anchorage Digital, logo a partir do momento em que começam a trabalhar na fintech. “Todos os colaboradores utilizam este benefício”, garante a gestora de pessoas.
Entre os principais benefícios, Stephanie Mardell salienta o aumento da satisfação e desempenho das pessoas no trabalho. “Desde que o colaborador tenha coordenado a sua PFF com o seu gestor e a sua equipa é livre de tirar os dias que considerar necessário. Num recente questionário interno, 88% dos nossos colaboradores responderam afirmativamente que têm autonomia e liberdade para organizar a sua agenda de uma forma que funciona tanto para eles como para a sua equipa. Acreditamos que a flexibilidade e autonomia na gestão da agenda diária das nossas pessoas é um fator crucial para aumentar a sua satisfação e desempenho no trabalho”, defende.
Um chamariz de novos talentos
Com a atual dificuldade em contratar e reter talento qualificado, as empresas fazem de benefícios como este um dos novos trunfos no recrutamento. “Sem dúvida, um atrativo e um fator de retenção, porque se trata de um benefício óbvio para o trabalhador”, considera Ana Tereza Maçarico.
A atrair, sobretudo, as gerações mais jovens. “Somos um povo que gosta de limites definidos… Contudo, considero que a geração mais recente, menos contaminada por estas crenças ligadas à quantidade e à qualidade do trabalho, poderá sentir-se bastante mais atraída pela liberdade de gestão do seu próprio tempo”, acredita Susana Firmino.
O mesmo dizem as empresas. “É definitivamente uma mais-valia”, admite Carlos Vilhena. “Ajuda-nos a atrair candidatos que são auto suficientes, colaborativos e motivados, porque é assim que precisa de ser para que este tipo de flexibilidade funcione para a empresa e para a equipa”, sustenta.
“A longo prazo, é também um fator importante para nos ajudar a reter o talento”, salienta. “Quando os empregados souberem, desde o início, que a empresa confia neles, premiá-lo-ão com produtividade e cuidarão de si próprios. Isto é algo que diminui o esgotamento, o que por sua vez diminui a rotatividade.”
Na Fidel API, a flexibilidade no que toca às férias junta-se à flexibilidade horária – não há horários de entrada e saída – e geográfica, que se aplica a toda a equipa de 170 pessoas, distribuídas por mais de 15 países. “Adotamos uma abordagem de confiança para trabalhar a partir de qualquer lugar e os empregados têm a liberdade de escolher o local de trabalho e o horário laboral. A melhor forma de as pessoas terem equilíbrio é dar-lhes autonomia para trabalharem de acordo com um horário que melhor lhes convenha”, explica Carlos Vilhena.
A cultura organizacional da Fidel API não está, desta forma, ligada a qualquer escritório ou fuso horário, mas sim “à confiança que depositamos nas pessoas que contratamos”. “Desde o primeiro dia, temos tentado construir um ambiente de trabalho flexível onde cada um possa gerir o seu próprio horário e objetivos”, bem como os seus dias de férias.
Desde que o colaborador tenha coordenado a sua Política de Férias Flexível com o seu gestor e a sua equipa é livre de tirar os dias que considerar necessário. Acreditamos que a flexibilidade e autonomia na gestão da agenda diária das nossas pessoas é um fator crucial para aumentar a sua satisfação e desempenho no trabalho.
A visão da Anchorage Digital, onde impera um modelo de trabalho remote friendly, é semelhante. A implementação desta política pretende “proporcionar a liberdade de que necessitam para equilibrar tanto as suas responsabilidades pessoais, como profissionais”, explica a responsável pelo talento da companhia. E reconhece que é, também, um trunfo para a atração e retenção de talento.
“Estamos focados não só em contratar o melhor talento, mas também em manter as nossas equipas continuamente motivadas. No último inquérito sobre a satisfação e envolvimento dos nossos colaboradores, realizado em janeiro de 2022, obtivemos um resultado de 86%, estando sete pontos percentuais acima da média de referência para empresas de novas tecnologias, que é 79%”, adianta.
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