BRANDS' ADVOCATUS Abertura Solene do Ano Judicial – Justiça, uma casa sem janelas

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  • 10 Fevereiro 2023

Os discursos da Abertura Solene do Ano Judicial refletiram cansaço e desmotivação dos diferentes players da área em relação ao estado da justiça em Portugal.

O ano de 2023 apanhou-nos a todos, de um modo geral, cansados, exaustos. A pandemia cansou-nos, a guerra na Ucrânia mata-nos a fé, a inflação abala-nos a esperança. Apenas por breves momentos admitimos sentirmo-nos ébrios pelo suave contágio do otimismo que os desejos e mensagens de Ano Novo nos prometem.

Coincidindo a Abertura Solene do Ano Judicial com o início do ano civil, os discursos da praxe ouvidos na cerimónia de abertura refletiram o mesmo cansaço e desmotivação dos diferentes players da área em relação ao estado da justiça!

Ano após ano, em cada discurso, em cada promessa ministerial, embalamos num limbo de esperança de que as dificuldades estão finalmente identificadas, de que os problemas não poderiam estar mais salientados e apontados, de que as soluções propostas foram ouvidas e estão alinhavadas e, claro, de que a alavanca orçamental nos eleve ao paraíso prometido.

A Ministra da Justiça exaltou a oportunidade de ex novo, o novo ano abrir um “novo tempo de todos os possíveis”. Para quem governa com maioria parlamentar, todos os dias são “tempo de todos os possíveis”. Espera-se até que assim seja. As oportunidades criadas pela estabilidade política e pelas verbas do PRR – Plano de Reforma e Resiliência, sendo desperdiçadas serão imperdoáveis. Como setor fundamental em cuidados paliativos, a justiça carece, a par da saúde, de uma reforma estrutural e sistemática!

A falta de celeridade na entrega da justiça é crónica em Portugal, mas é nos tribunais administrativos e fiscais que a situação é mais grave. Dizer que o número de casos pendentes é grande e que o tempo de disposição de cada processo é longo é eufemismo. A situação é caótica, ridícula e urge resolvê-la.

É fundamental, numa altura em que o Estado está tão desacreditado e sendo os tribunais administrativos e fiscais aqueles que têm por função resolver conflitos entre particulares e a administração pública, designadamente na tutela de direitos fundamentais, na fiscalização e impugnação de atos e decisões, na responsabilização dos servidores públicos, etc., que estes respondam em tempo útil.

Sem populismos, é redundante dizer que a justiça administrativa-fiscal tem um problema sério de eficácia. Em sentido oposto, a máquina tributária será talvez a máquina mais eficaz da administração pública. Ao longo dos anos, foram criados mecanismos e instrumentos de atuação que efetivamente aumentaram a capacidade de cobrança de impostos. E bem!

Mas, em contrapeso, a administração pública não é eficaz na limitação da agressividade da sua atuação, mesmo estando em causa direitos fundamentais dos cidadãos, e os mesmos mecanismos e instrumentos são os mesmos que permitem que a administração tributária atue muitas vezes sobre os cidadãos abusando do seu ius imperium, abarrotando, a jusante, as instâncias administrativas e fiscais com uma quantidade sobre-humana de processos. Esta falha de quantidade acarreta, naturalmente, uma falha no tempo de resposta jurisdicional.

Exemplo disso mesmo é o nebuloso modus operandi escolhido pela máquina tributária na tramitação processual de processos de contraordenação que tiveram origem em infrações decorrentes da falta de pagamento ou do pagamento viciado de taxas de portagem. Apesar da lei considerar como contraordenação única as várias passagens não pagas realizadas no mesmo dia, pelo mesmo veículo, na mesma infraestrutura rodoviária; na prática cada passagem tem dado origem a um processo, tendo o cidadão que se defender em cada um. A verdade é que a Autoridade Tributária, numa perversa missão de captação de receitas, sobrecarrega estes tribunais com coimas e dívidas de portagens, aumentando desnecessariamente a litigiosidade pendente.

A intervenção na justiça administrativa e fiscal é apenas uma parte importante de uma reforma há muito reclamada por todos.

O Governo anuncia a aposta do Ministério da Justiça na digitalização e na utilização da inteligência artificial, consubstanciada em mais de 200 milhões de euros de investimento e, efetivamente, tendemos a concordar que um upgrade ao nível digital e tecnológico promete uma óbvia evolução na eficiência da administração da justiça.

É, no entanto, um paradoxo, assistirmos a uma mega reforma digital e manter-se, por exemplo, a degradação dos espaços físicos dos tribunais ou a falta de material, falta de profissionais, profissionais desmotivados…

Será como colocar ar condicionado numa casa sem janelas!

Os cidadãos e a economia precisam de confiar na justiça. E os agentes da justiça apontam soluções que devem ser acolhidas.

É fundamental a estabilidade legislativa, evitando as vagas sucessivas de “pacotes” legislativos, tantas vezes incoerentes e desconexos. A permanente instabilidade legislativa constitui em si mesmo um poderoso gerador de ineficiência, de incerteza e morosidade.

É fundamental uma justiça mais célere, a desburocratização, simplificação e desmaterialização dos processos administrativos e judiciais acrescida de uma melhoria da gestão ao nível dos nossos tribunais e do seu edificado, sem esquecer o reforço dos meios humanos assegurando-se as básicas e dignas condições de trabalho.

É fundamental criar condições efetivas que permitam o acesso à justiça pela generalidade dos cidadãos e repensar o sistema das custas judiciais!

Não é concebível não pensar numa reforma estrutural, consultada e profunda. E é fundamental o governo, que tem condições para o fazer, concretizar essa reforma.

Ângela Oliveira, Advogada

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