Por um mercado elétrico verde, justo, resiliente… e sem distorções
Propostas do Governo na reforma do mercado são notáveis, mas não se pode partir para soluções sem avaliar todas as consequências não intencionais que podem gerar efeitos nefastos no mercado.
Desde o início desta crise energética que existe uma constante na discussão sobre política da energia: que se tem de redesenhar os mercados de eletricidade. Neste sentido a União Europeia lançou em janeiro de 2023 uma consulta pública sobre a reformado mercado, respondendo ao repto lançado já por múltiplas vezes pela presidente da Comissão Ursula Von der Leyen.
Neste âmbito, a recente empossada Secretária de Estado da Energia e do Clima, Ana Fontoura Gouveia, publicou um artigo no Público para apresentar as propostas do Governo de reforma dos mercados de eletricidade. A estratégia do Governo assenta em três linhas diretrizes, que pretendem reduzir os preços da eletricidade, promover a descarbonização e aumentar a resiliência do sistema elétrico.
A primeira linha centra-se na proposta de imposição de um limite mínimo para contratação a longo prazo. Esta medida tem a intenção de trazer para a comercialização de eletricidade a grande benesse que as energias renováveis conferiram ao Sistema Elétrico Nacional (SEN) durante esta crise energética. Uma vez que maior parte da produção renovável em Portugal é paga a preço fixo, foi possível amortecer o aumento dos preços da eletricidade através da redução das tarifas de acesso às redes (TAR).
Percebe-se a preocupação do Governo em querer manter a atual situação em que 40% da produção nacional está sujeita a um preço fixo, uma vez que a data de término destas tarifas fixas está a aproximar-se (maioria acabará em 2027). No entanto não se pode ignorar as consequências não intencionais desta proposta.
Este limite é na verdade uma barreira à entrada para novos comercializadores de eletricidade. Não é saudável introduzir barreiras à entrada a um setor que está atualmente em profunda transformação, em que têm de existir incentivos a atrair investimento, novas ideias e novos modelos de gestão. É compreensível que haja uma preocupação com a segurança do setor e que haja garantias para evitar insolvências de comercializadores que não se protegem a longo prazo, de modo a não criar um calote sistémico no SEN. No entanto, obrigar os comercializadores a estabelecerem contratos a longo prazo numa altura em que os mercados estão altamente voláteis, ficando obrigados a pagar eventualmente um valor alto pela energia durante muito tempo, não é prudente e não evita necessariamente a insolvência.
Também não existe garantias que com um maior nível de contratação a longo prazo por parte dos comercializadores isso leve os preços de venda de eletricidade às famílias e empresas a baixarem. O sistema atual permite poupanças em casos de volatilidade dos mercados, pois os comercializadores têm de cobrar as TAR aos seus clientes, que tendem a descer quando os preços nos mercados grossistas são altos. A descida dos preços na venda ao consumidor final dependerá sempre da pressão da concorrência e não do tipo de contração na compra de energia por parte dos comercializadores.
Passando para a segunda linha diretriz de ação do Governo, este propõe criar um limite máximo nos preços de mercado de eletricidade. Neste âmbito o mecanismo ibérico de limitação do preço do gás natural para produção de eletricidade é anunciado pelo Governo como um sucesso, porque alegadamente reduziu o preço grossista da eletricidade em média 20% em relação ao preço sem mecanismo. No entanto, o preço sem mecanismo que o Governo utiliza para fazer esta comparação é apenas teórico. O verdadeiro preço da eletricidade sem mecanismo seria de facto menor que esse valor teórico, pois este valor teórico foi calculado com um preço de gás inflacionado pela aplicação do próprio mecanismo.
Na Espanha, após a entrada em vigor do mecanismo, a correspondente subsidiação das centrais a gás fez disparar o consumo deste combustível para produção de eletricidade em 126% (de julho de 2021 para 2022), como mostra a Figura 1. Em simultâneo, o preço do gás subiu de 80 €/MWh para valores superiores a 100 €/MWh (Figura 2), sendo impossível descartar a relação destes dois eventos.
O mecanismo ibérico ignora outra particularidade. As centrais a gás também têm cobertura a longo prazo na compra do combustível, isto é, o preço que colocam a eletricidade no mercado num certo dia não é diretamente proporcional ao custo do gás no mercado spot que queimam nesse dia. No entanto, o mecanismo subsidia as centrais a gás assumindo que o custo do combustível é de facto o preço do gás no mercado spot no dia em que é queimado. Ou seja, as centrais que têm a maioria do gás comprado a um preço muito inferior ao mercado spot estão a receber um lucro inesperado ainda maior por decreto, pois o preço do gás é maior com mecanismo do que sem ele. A este efeito soma-se a maior receita gerada por via do aumento de quantidade de energia produzida pelas centrais a gás, pois o mecanismo tornou estas centrais mais competitivas do que com outras fontes.
Expandir esta ideia para toda a Europa iria causar um choque tremendo em toda a cadeia de abastecimento de gás natural, devido ao consequente aumento da procura. As trocas comerciais de eletricidade com países extracomunitários teriam de ser revistas, pois tal como a Espanha passou a exportar eletricidade à capacidade máxima para França após a aplicação do mecanismo, o mesmo aconteceria com a União Europeia para os países limítrofes. Para não falar noutros efeitos como o aumento das emissões com a queima de gás, o aumento do preço do gás para consumo convencional e o redireccionamento de receitas de produtores de energia verde para as grandes centrais a gás. Uma política energética deveras pouco verde.
Na terceira linha diretriz de reforma, importa salientar positivamente a intenção do Governo de diversificar as fontes de energia e apostar na criação dos, há muito aguardados, mercados de serviços de sistema e de capacidade. Estes mercados, que já existem noutros países europeus, são formas de incentivar a integração de energias renováveis e tecnologias de armazenamento de energia sem recorrer a fundos do orçamento do estado.
Em suma, é de louvar a abertura da nova Secretária de Estado para expor as suas ideias e submeter as propostas à discussão na praça pública. As boas intenções do Governo na reforma do mercado que propõe são notáveis, mas não se pode partir para soluções sem avaliar todas as consequências não intencionais que podem gerar efeitos nefastos no mercado que posteriormente são difíceis de reverter. Se o objectivo é descer os preços ao consumidor e proteger as famílias e empresas, que se foque em incentivar mais capacidade de geração renovável e barata, e que se crie incentivos à contratação a longo prazo que envolvam os produtores a participar voluntariamente. A contratação a longo prazo não necessita de ser imposta num limite mínimo arbitrário que só fortalece os grandes players. Os agentes de mercado terão cada vez mais incentivo, quer do lado da produção, quer do lado da comercialização, a formarem contratos bilaterais para evitar o cada vez maior risco da volatilidade dos mercados spot de curto prazo.
A chave é criar incentivos inteligentes, e não obrigações que também geram distorções…
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