Em entrevista a Advocatus, Miguel Coutinho, associado sénior da Cuatrecasas, admite que há setores que ainda não acordaram para a necessidade do compliance
Miguel Coutinho, associado sénior da Cuatrecasas, desenvolve a sua atividade profissional sobretudo na área penal, contraordenacional e compliance e, especialmente, em processos relativos a direito penal de empresa, direito penal fiscal e infrações de regras de construção e segurança. É membro fundador do Fórum Penal (Associação de Advogados Penalistas).
Em entrevista à Advocatus, o advogado admite que há setores que ainda não acordaram para a necessidade do compliance e defende que as empresas dizem que aprovaram códigos de conduta, mas “depois não refletem esse espírito internamente”. “Até se pode ter os códigos de conduta mais perfeitos e completos do mundo, mas se não são conhecidos pelos trabalhadores, não cumprem a sua função”, concluiu o advogado.
Portugal ainda está muito aquém do desejado, ou do realizado, no que toca a mecanismos de compliance?
Quanto às atividades reguladas, como os setores bancário, financeiro, seguros ou saúde, já se vem encarando a área de compliance com naturalidade e como uma importante ferramenta para a tomada de decisões de gestão. Sobretudo na banca, já há hoje várias decisões que só são tomadas se o responsável da área de compliance der o seu aval. A principal diferença surge a nível de outros setores, não tão sujeitos a regulação e supervisão, em que, infelizmente, o compliance ainda é incompreendido, como uma área sem retorno para a organização. O problema está, sobretudo, no seguinte raciocínio: se todos conhecem a lei, e se o que está escrito na lei é claro, então porque preciso de um departamento para certificar que a lei é cumprida? Aparentemente, é uma redundância. Mas isso gera um problema: é que quando a empresa se vir confrontada com um processo, as vias de defesa poderão tornar-se mais limitadas.
Como se pode estimular as empresas a mudar essa postura?
Com a reforma de dezembro de 2021, o Código Penal passou timidamente a prever que, se as empresas adotarem um programa de compliance adequado, o tribunal poderá substituir a pena de multa por uma pena alternativa ou atenuar a pena a aplicar. Do meu ponto de vista, contudo, se se quer verdadeiramente criar uma consciência de que o compliance é imprescindível e incentivá-lo, poderia seguir-se o exemplo espanhol e prever, expressamente, que se a administração adotar um programa de compliance completo, adequado e eficaz, a empresa fica isenta de responsabilidades. E dessa forma, o que passamos a ter será não um crime praticado pela empresa, mas sim um crime praticado por um funcionário que, conhecendo as regras internas, decidiu infringi-las. No final do dia, era isto que eu, se fosse administrador, quereria saber: nunca consigo evitar comportamentos pessoais desviantes, por parte de subordinados meus, de forma isolada. Mas se me disserem que se apostar num programa de compliance para todas as áreas, e investir na formação, isso permitirá que a empresa cujos interesses defendo não será prejudicada, isso nunca será um custo, mas sim mais uma arma para me defender.
A principal diferença surge a nível de outros sectores, não tão sujeitos a regulação e supervisão, em que, infelizmente o compliance ainda é incompreendido, como uma área sem retorno para a organização.
As empresas, na generalidade, têm Códigos de conduta? E as que têm, são suficientes?
O problema não são os códigos de conduta em si mesmos, mas o facto de não se perceber exatamente o que se pretende com eles. Muitas vezes, as empresas dizem que aprovaram códigos de conduta, exibem-nos nos seus sites para anunciarem que cumprem, mas depois não refletem esse espírito internamente. Até se pode ter os códigos de conduta mais perfeitos e completos do mundo, mas se não são conhecidos pelos trabalhadores, não cumprem a sua função. Antes do mais, quando um trabalhador é contratado, o código de conduta deve ser-lhe entregue, assinando-se uma declaração de que o recebeu e compreendeu. Depois, tem de ser dada formação periódica e sensibilizar os trabalhadores para que, em caso de dúvida, deverão contactar os responsáveis da área de compliance. A partir daí, tem de se começar a disseminar essas normas e políticas também para os fornecedores, agentes e intermediários, e assim sucessivamente, criando uma espécie de cadeia de compliance no setor privado.
Quem cumpre mais: as grandes, médias ou pequenas empresas?
O tema não se coloca tanto a nível da dimensão da empresa, mas mais no setor em que cada uma atua. Como disse, áreas mais reguladas e acompanhadas de perto pela supervisão, como por exemplo o setor financeiro, estão mais habituadas a lidar com temas de compliance, a ter equipas de compliance numerosas, a aprovar e rever políticas, a ouvir os responsáveis da área antes de tomar decisões e a ter programas internos de formação regular, para todos os trabalhadores. Como o compliance é sobretudo uma cultura, nesses casos a mudança de cultura já se deu há mais tempo e, portanto, o nível de cumprimento é hoje em dia tendencialmente maior. Nos outros setores, a cultura do compliance ainda está a ganhar raízes, mas acredito que, com tempo, isso mudará.
Notou alguma alteração nesse contexto desde que a Estratégia Anti-Corrupção foi implementada? O que acha que faltou neste pacote?
Na minha opinião, não faz grande sentido que o legislador tenha fixado como critério para implementar mecanismos anticorrupção o facto das empresas terem ou não 50 ou mais trabalhadores. A meu ver, a lógica deveria ser a da atividade a que a entidade se dedica, como sucede por exemplo na legislação relativa à prevenção do branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo. E mais: acho que qualquer entidade que contrate com o Estado ou participe em concursos públicos deveria ter este tipo de mecanismos de forma obrigatória. Neste momento, se muitas críticas se fazem aos ajustes diretos e ao seu abuso, porque não passar a prever que, se não tiverem programas de prevenção e combate à corrupção, não podem ser contratados? Tenham 1, 10, 30 ou 100 trabalhadores, acho que é indiferente.
A nível empresarial, considera que os canais de denúncia podem ser um bom instrumento no combate à corrupção?
Gosto de fazer um paralelismo entre os canais internos de denúncia e a decisão de passar a separar gabinetes, dentro das empresas, por divisórias de vidro. Num primeiro momento, as pessoas sentem-se desconfortáveis, porque tudo o que fazem durante o dia no seu espaço de trabalho passa a ser visto pelos colegas e acham que se trata de uma invasão de privacidade. À medida que o tempo passa, contudo, começam a perceber que a transparência total é vantajosa, porque o que cada um faz pode afetar o colega do lado. Além disso, há uma outra questão: olhando para os casos mais mediáticos a nível de crimes de colarinho-branco ou polémicas com empresas, já se pensou quanto dano reputacional teria sido evitado se esses temas tivessem sido recebidos através dos canais de denúncia, e tivessem sido resolvidos, investigados e sancionados internamente e se a empresa se tivesse antecipado a tomar medidas, em vez de estar a correr atrás do problema? Na maioria das vezes, só se reage às contingências, em vez de se procurar antecipá-las.
Se se quer verdadeiramente criar uma consciência de que o compliance é imprescindível e incentivá-lo, poderia seguir-se o exemplo espanhol e prever, expressamente, que se a administração adotar um programa de compliance completo, a empresa fica isenta de responsabilidades.
Como tem sido o seu dia-a-dia nos tribunais, com as greves dos funcionários judiciais?
Honestamente, só senti mais constrangimentos nos primeiros dias, com alguns adiamentos, mas entretanto as diligências têm vindo a realizar-se. De qualquer forma, depende das comarcas. Há tribunais com maior facilidade de adaptação e meios, outros não tanto. Infelizmente, esta greve tem gerado alguma ansiedade da parte dos clientes que querem obter decisões e ver os seus processos resolvidos, sem mais atrasos. Mas são os ossos do ofício e todos temos de nos adaptar da melhor forma.
O facto de estar integrado num escritório de grande dimensão, corta-lhe as vazas para aceitar alguns clientes?
No limite, se em determinadas situações não se pôde aceitar o patrocínio de um dado cliente, foi mais porque se geraram situações de conflitos de interesse, o que é natural em escritórios de grandes dimensões. Mas isso também é um sinal de vitalidade, porque se o foco é cada vez mais intervir nos assuntos-chave e de maior complexidade e preponderância na sociedade, isso vai inevitavelmente provocar situações de conflitos de interesse.
Sente que o escritório onde está, pela estrutura que tem, dá menos valor ao contencioso e mais a uma advocacia de negócios?
Não tenho essa experiência. Aliás, os negócios e grandes transações e os litígios são duas faces da mesma moeda. Não é por acaso que os contratos têm cláusulas para resolução de conflitos. Do ponto de vista criminal e compliance, também tenho sentido que, cada vez mais, há uma preocupação em incluir nas due diligence esses temas, de modo a antever contingências associadas a transações e prevenir riscos. Já me deparei com vários casos em que, no decurso das negociações, o investidor se depara com um processo ou investigação criminal em curso e, de um momento para o outro, a preocupação central passa a ser precisamente essa, colocando-se tudo o resto em segundo plano. A intervenção dos advogados penalistas não pode ser só quando há buscas, quando é instaurado um processo ou quando há que defender alguém em tribunal, mas também para prevenir, antecipar e resolver situações de risco, mesmo que potencial. Dito por outras palavras: num escritório de grandes dimensões como a Cuatrecasas, as diversas áreas não se confundem nem se anulam, antes proporcionando aos clientes uma sinergia de grande valor acrescentado, permitindo que se analise cada assunto de diversos pontos de vista, a nível nacional e internacional.
A Justiça faz-se condenando. Esta é a tese que domina na opinião pública. Como explicar ao cidadão comum que não é esse o caminho?
Acho que as pessoas não querem condenações, sem mais. O que querem é que haja julgamentos e decisões rápidas. Acho que o que inquieta mais o cidadão comum não é tanto se A ou B é condenado, mas que se demore tanto tempo a decidir se é condenado ou não.
Não faz grande sentido que o legislador tenha fixado como critério para implementar mecanismos anticorrupção o facto das empresas terem ou não 50 ou mais trabalhadores.
Estamos (Portugal) muito obcecados com a corrupção?
Segundo o Eurobarómetro Especial sobre Corrupção, publicado no final do ano passado, 90% dos inquiridos em Portugal considera o problema da corrupção comum no seu país. 86% refere ainda que considera que existe corrupção nas instituições públicas e nas instituições locais ou regionais. Contudo, quando lhes é perguntado se consideram aceitável que se dê presentes ou fazer favores para obter algo da administração pública ou serviço público, 20% admite que sim. Entendo que se se perguntasse à generalidade da população se considera que existe corrupção no Estado ou no setor público, a quase totalidade responderia que sim. Mas depois, eu arriscaria dizer que se se perguntasse também às mesmas pessoas se se consideram corruptas ou se alguma vez praticaram ou foram alvo de práticas de corrupção, provavelmente quase todos o negariam. Ou seja, é um fenómeno curioso: a corrupção existe, mas é algo que diz respeito aos outros. Talvez seja esse parte do problema.
Pretende algum dia pôr em prática a regra de denúncia obrigatória por parte de advogados que se deparem com suspeitas de lavagem de dinheiro?
A obrigação de comunicação de operações suspeitas já existe, quanto a advogados que intervenham em operações de compra e venda de imóveis, gestão de fundos, abertura e gestão de contas bancárias ou constituição de empresas, entre outros serviços. Quanto ao mais, confesso que sou pouco apologista de que um advogado possa ser obrigado à apresentação de denúncias, já que isso implica esquecer a razão pela qual um cliente transmite informações ao seu advogado, num contexto de confiança e sigilo profissional. Para o bem e para o mal, e obviamente sem esquecer os princípios da deontologia e ética, foi esta a profissão que escolhemos. Como se dizia no filme “Taxi Driver”: um homem assume uma profissão e a profissão torna-se naquilo que ele é.
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