• Especial por:
  • Gonçalo Aguiar

A reforma do mercado de eletricidade que não agrada nem a gregos nem a troianos

Gonçalo Aguiar, engenheiro eletrotécnico, analisa a proposta europeia para a reforma do mercado de eletricidade. "É na generalidade positiva mas faltam clarificar muitos aspetos de implementação".

Na semana passada, a Comissão Europeia apresentou a tão aguardada proposta de reforma dos mercados de eletricidade, em resposta a uma das maiores crises energéticas de sempre. A escalada de preços do gás natural que se observou desde o verão de 2021, e que se acentuou com a invasão da Ucrânia pela Rússia em 2022, teve enormes impactos nas famílias e empresas, que ficaram expostas a aumentos da fatura de eletricidade como nunca antes vistos. Com esta proposta, a Comissão pretende reduzir os efeitos adversos da volatilidade dos preços dos combustíveis fósseis na sociedade e economia europeias, bem como atualizar o desenho do mercado de eletricidade para um novo paradigma do sistema elétrico, com uma grande componente de energias renováveis.

As reações à proposta foram variadas: desde a satisfação até a críticas com fundamentações totalmente díspares. Por um lado, apontou-se que foi uma reforma muito tímida, que ficou aquém do que se esperava, pois não mudou os princípios fundamentais do mercado. Por outro, falou-se que foi longe demais e na direção errada, no que toca à integridade do mercado e a manutenção dos sinais de preço e incentivos ao investimento.

Modelo marginalista persiste

A omissão da reforma mais criticada consistiu na manutenção da forma como os preços da eletricidade nos mercados grossistas são formados, o que permitiu a geração de lucros extraordinários aos produtores de energia elétrica que normalmente não consomem gás natural (os chamados inframarginais, tais como nuclear, renováveis e hidroelétricas), enquanto empresas e consumidores domésticos viram as faturas energéticas disparar. Apesar de não ser intuitivo nem popular defender este modelo de formação de preços, esta é de facto a forma mais eficiente de o fazer, pois o preço tende a aproximar-se do custo de produção de eletricidade a cada hora (custo marginal). Outros modelos de formação de preço, como por exemplo, cada produtor receber consoante a sua oferta de venda, e não consoante o preço de cruzamento entre a oferta e procura, tornariam o mercado mais ineficiente, arriscado e incerto. Levaria eventualmente a preços mais elevados e com uma distribuição de receitas mais desigual, a favor de produtores fósseis, não alinhada com a estratégia de descarbonização da União Europeia.

Figura 1 Exemplo de curva de procura e oferta num modelo marginalista

Figura 2 Exemplo de curva de procura e oferta num modelo não marginalista

O modelo de formação de preços que permanecerá em vigor, também denominado “marginalista”, não é uma imposição regulatória, nem uma característica específica do mercado de eletricidade. É a forma como se organizam a maioria dos mercados de “commodities” a nível mundial, incluindo o petróleo, carvão, alumínio, cobre e até o gás natural. No caso do petróleo, por exemplo a Arábia Saudita tem custos marginais de produção na casa dos 20 dólares por barril, mas o preço de venda nos mercados internacionais é definido pelo encontro da procura e oferta do momento, que nos dias de hoje ronda os $80 por barril. No mercado de crude este mecanismo de formação de preços é geralmente aceite, mas no mercado de eletricidade é recorrentemente posto em causa, porque gera “lucros indevidos” a produtores de energia renovável… Não se pode esquecer que são estes lucros que pagam o investimento em energias verdes, e que permitem expandir a capacidade de geração renovável, diversificar as fontes de energia e reduzir a dependência nos combustíveis fósseis.

A comissão optou, e bem, em não implementar uma reforma que destruiria este modelo marginalista, mas a dependência europeia no gás natural e o impacto nos preços elevados da eletricidade são problemas reais que têm de ser endereçados. É por isso que, em alternativa, a comissão focou-se em propor medidas para proteger os mais vulneráveis sem criar distorções diretas no mercado grossista. Neste quadro destacam-se as seguintes medidas:

  • Comercializadores terão a obrigação de disponibilizar tarifas fixas com duração de pelo menos 1 ano, sem a possibilidade de alterar unilateralmente para uma tarifa indexada ao mercado grossista. Esta medida incentivará o comercializador a cobrir o risco de subida de preços e, portanto, a comprar energia a longo prazo para fornecer aos seus clientes. A desvantagem é que existindo a obrigação de disponibilizar a tarifa fixa resultará inexoravelmente em preços mais elevados. O período mínimo em que vigora a tarifa fixa poderá também criar um novo normal em que os comercializadores exigem períodos de fidelização de pelo menos 1 ano, o que atualmente é raro em Portugal.
  • Facilitar a flexibilidade do lado da procura (consumidor) permitindo-lhe poder ter mais do que um contador de energia ou até mais do que um contrato. Isto permitirá aos consumidores contratar uma tarifa fixa para os consumos que não variam com o tempo, como por exemplo, frigorífico, congelador e iluminação, e uma tarifa indexada ao mercado para consumos mais flexíveis, isto é, máquinas de lavar, aquecedores de água elétricos ou bombas de calor, e carregamento de veículos elétricos. Isto abrirá todo um novo mercado que permitirá certos eletrodomésticos estarem equipados com o seu próprio contador que é associado a um contrato de eletricidade. Poderá haver uma programação automática que alinha o consumo consoante o preço da eletricidade. Todavia de momento ainda existem desafios tecnológicos por ultrapassar, bem como a necessidade de uma adaptação à realidade de cada país para a execução desta medida (exemplo: contribuição audiovisual seria cobrada a dobrar?)
  • Partilha de energia renovável produzida por um pequeno produtor com consumidores vizinhos sem necessitar a criação de uma comunidade de energia. Esta medida permite aos consumidores sem capacidade financeira para instalar painéis solares na sua residência poderem beneficiar dos excedentes de produção de quem o faz. Isto será possível sem necessidade de aprovação de uma comunidade de energia, processo que tem sido muito moroso e burocrático. Ainda assim será necessário garantir a compatibilidade com a rede elétrica, mas a intenção da nova legislação é agilizar o processo.
  • Criação de um mecanismo de controlo de preços em caso de emergência para PME [pequenas e médias empresas] e consumidores residenciais. A medida consiste na limitação do preço a um determinado valor se forem observados preços grossistas pelo menos 2,5 vezes superiores à média dos últimos 5 anos e durante mais de 6 meses. O preço regulado aplicar-se-ia temporariamente e apenas para uma parte do consumo médio dos consumidores, mantendo assim algum incentivo à poupança. Quanto ao financiamento da medida, a comissão ainda não avançou detalhes.
  • Proteger cidadãos vulneráveis de serem desconectados em caso de falta de pagamento durante situações de crise. A medida visa proteger a coesão social durante situações críticas de crise, mas é omissa em importantes detalhes de implementação. A legislação não indica como será assegurado o pagamento ao comercializador em caso de incumprimento, nem em que condições será possível aceder aos apoios

Combate à dependência do sistema elétrico com o preço do gás

Para tornar o preço da eletricidade menos dependente dos mercados grossistas e do preço do gás natural, a reforma propõe outro pacote de medidas que confere aos produtores renováveis e de baixo carbono fontes de receita alternativas.

Algumas destas medidas não são novidade para o mercado ibérico, nomeadamente os leilões de energias renováveis com contratos às diferenças (CfDs), tal como foi realizado nos leilões de energia solar fotovoltaico de 2019 e 2020. Este mecanismo de remuneração permite garantir remuneração mínima para o produtor, mas no caso do preço de mercado da eletricidade subir, a receita é limitada a um teto, gerando um proveito para o sistema elétrico que é utilizado para mitigar a subida dos preços aos consumidores finais. Os CfDs permitiriam suceder o esquema já existente em Portugal para remunerar as energias renováveis, as tarifas “feed-in”, mas com a vantagem de expor o promotor do projeto a algum risco do mercado (ver na figura em baixo a diferença entre um CfD e uma tarifa “feed-in”).*(ver Errata no final do artigo)

Figura 3 Comparação de tarifa “feed-in” com contrato às diferenças (CfD)

A nova reforma também apresentou outras medidas que pretendem incentivar a diversificação e reduzir a dependência do gás, tais como:

  • Incentivar o mercado de contratos bilaterais de compra de energia (Power Purchase Agreement – PPA – em inglês). A medida tem o objetivo de desbloquear a maior barreira à formação deste tipo de acordos: o risco de incumprimento pelo comprador. A comissão pretende que os estados-membros criem mecanismos de cobertura desse risco, mas sem especificar detalhes.
  • Aumentar a transparência no mercado de futuros de eletricidade. Esta reforma consiste na criação de hubs regionais de preços de referência para o mercado de futuros de eletricidade (contratação a longo prazo). Os detalhes técnicos de implementação também ainda estão por afinar.

Por um sistema elétrico mais flexível

Um dos problemas que potenciou a crise energética foi a inflexibilidade da procura, que levou a que o preço da eletricidade escalasse sem haver reação no curto prazo do lado do consumidor. A comissão também reconhece que um sistema elétrico sustentado em fontes de energia renovável variáveis no tempo precisa de fontes de apoio flexíveis, nomeadamente armazenamento de energia, para garantir a segurança de abastecimento.

Para endereçar esta problemática a comissão propõe que os estados-membros implementem esquemas de incentivo para a poupança de energia em caso de défice de capacidade produção. Em vez de mobilizar fontes de energia mais caras, incentiva-se os consumidores a reduzir consumos, gerando assim poupanças para todo o sistema elétrico no cômputo geral. Medidas como esta já foram materializadas em vários países da União Europeia e também no Reino Unido. Em França, por exemplo, as bombas de calor de aquecimento de água podem ser comandadas remotamente para desligarem em momentos de elevados preços da eletricidade. No Reino Unido, alguns consumidores podem receber um crédito na fatura se consumirem menos eletricidade em certos períodos de tempo com aviso prévio.

A comissão também reconhece haver um atraso na integração de soluções de armazenamento de energia no sistema elétrico europeu. Para acelerar o processo, a comissão propõe criar apoios públicos para fomentar a existência de capacidade flexível de produção ou consumo. Este tipo de apoios não só é uma fonte de receita adicional para centrais com capacidade de produção de energia limpa de reserva, mas também para grandes consumidores que estejam dispostos a reduzir o seu consumo em momento de défice de capacidade de produção.

Estas medidas foram consideradas controversas para alguns, pois criam mais mecanismos onde à partida não são necessários, porque o mercado existente já poderia dar os sinais de preço aos consumidores para evitarem consumir às horas de preços elevados. No entanto, quem não tem exposição aos preços de mercado, não é motivado a reduzir consumos se não houver incentivos para tal. No que toca ao armazenamento de energia, as baterias convencionais ainda não atingiram um nível de preços baixo suficiente para permitir ser economicamente viável realizar a arbitragem de preços, isto é, comprar barato durante o dia quando há sol, e vender caro à noite quando o consumo aumenta. É por isso que a comissão entende que se deve incentivar este tipo de soluções técnicas através da criação de mercado de flexibilidade.

Europa primeiro

Por último, a reforma de mercado, em linha com o Net-Zero Industry Act, pretende impor um limite mínimo de tecnologia europeia utilizada nos projetos de energias renováveis como condição para ter acesso aos apoios públicos. Esta obrigatoriedade poderá pôr em causa a escalabilidade dos apoios, bem como aumentar o custo da eletricidade a produzir. Também poderá resultar no atraso do cumprimento das metas de descarbonização, caso não seja possível produzir todo o equipamento necessário na Europa. Esta medida é uma tentativa de replicar o protecionismo norte-americano com o Inflation Reduction Act, mas sem a mesma ambição.

Em suma, a reforma do mercado de eletricidade é na generalidade positiva mas faltam clarificar muitos aspetos de implementação e exequibilidade. É um passo na direção certa, mas é expectável que a Comissão introduza reformas adicionais no futuro próximo para dar resposta às preocupações levantadas durante a consulta pública.

 

* ERRATA: a comissão europeia propôs genericamente um two-way CfD (contrato às diferenças bi-direcional), mas não falou do valor dos limites mínimo e máximo. A maioria dos CfDs praticados na europa, em particular no Reino Unido, têm o limite mínimo e máximo iguais (sem exposição ao mercado). O objectivo dos CfDs não é expor o promotor ao preço da eletricidade no mercado grossista mas sim à concorrência de outros promotores de projetos de energias renováveis. Este instrumento diferencia-se da tarifa feed-in pelo facto do CfD ser atribuído através de um leilão, como é o caso dos leilões de solar de 2019 e 2020 em Portugal, ao passo que as tarifas feed-in são calculadas administrativamente com uma fórmula plasmada num decreto lei.

  • Gonçalo Aguiar
  • Engenheiro Eletrotécnico

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