A Alemanha deixou de ser “o líder relutante” e o seu poder hegemónico pode ser uma das causas do fim da União Europeia como a conhecemos. Uma ameaça mais próxima do que julga a maioria das pessoas.
Estamos na última parte da entrevista de António Barreto ao ECO. A conversa sobre a União Europeia desenrolou-se para o papel da Alemanha, país que será central para o futuro do projeto europeu. António Barreto confessa-se ansioso com o poder que a Alemanha tem.
Relembra o tempo em que esteve na Alemanha, tinham passado 15 anos do fim da II Guerra Mundial. Viam-se ainda as ruínas e soldados americanos e russos nas ruas de Berlim. Hoje os alemães deixaram de ser os líderes relutantes e podem querer desenhar o futuro da Europa. E os outros países, na perspetiva de António Barreto, não vão deixar. Onde fica Portugal? Será uma das difíceis escolhas do país.
Na crise europeia há santos e pecadores? Ou seja, nós somos os pecadores, os devedores, e há os santos que são os disciplinados financeiramente?
Não, de todo. Os mais pobres pagaram mais. Os endividados e mais pobres sofrem mais que os menos pobres ou mais ricos, infelizmente é sempre assim.
Agora, que os alemães são mais disciplinados que nós, são. São mais disciplinados, ganham melhor, têm melhores fábricas, é um país maior. Mas não penso que sejam santos, de todo em todo. Devo dizer que, hoje em dia, sofro de alguma ansiedade perante o poder hegemónico da Alemanha na Europa. Que pode ser uma das causas do fim da União Europeia, a prazo. Porque os outros países não o vão aceitar que, gradualmente, a Alemanha se transforme num poderio hegemónico e que o exerça na Europa, como já quase é hoje. Não é a Alemanha que vai destruir a Europa, são os outros países que não vão aceitar o seu poder.
A Alemanha, há quem diga, que quase que evita exercer esse poder, também tem essa noção?
Houve um historiador inglês, que eu aprecio muito, Timothy Garton Ash, que há uns anos escreveu um artigo muito interessante e que me surpreendeu e impressionou na altura. Chamava-se “Alemanha: o líder relutante”. Eu acho que ele tinha razão com essa designação. A Alemanha não queria ser líder porque não podia ser líder, sabia que era mal recebida. Estive na Alemanha em 1960 e via-se a guerra na rua. Havia restos de guerra na rua, nas casas, nos edifícios, havia buracos nas paredes, havia fábricas ainda arruinadas. [Tinham passado 15 anos do fim da II Guerra Mundial]. Mas já sentia que a Alemanha estava a crescer e a reconstruir-se.
Durante anos e anos na Europa, falar da Alemanha era falar do mal, do demónio, do diabo. Havia países, em Inglaterra por exemplo, onde bastava fazer o bigode e a franja do Hitler, não se dizia nada, e só com isto toda a gente dizia que era nazismo. Falava-se no Wagner e dizia-se que era nazi, quando não tem nada a ver uma coisa com a outra.
Devo dizer que, hoje em dia, sofro de alguma ansiedade perante o poder hegemónico da Alemanha na Europa. Que pode ser uma das causas do fim da União Europeia, a prazo.(…) A Alemanha, nos últimos 20 anos, começou a perceber que pode já não ser um líder relutante.
A Alemanha precisava de ser aceite, de ser reconhecida, de ser acolhida de novo no consenso europeu. E foi sendo. A União Europeia serviu para isso. Foi dos grandes serviços que a União Europeia, na altura Mercado Comum ou Comunidade Europeia, prestou ao mundo, à Europa e aos alemães.
Eu ainda vi a Alemanha ocupada com quatro exércitos: Soviético, Americano, Inglês e Francês. Os jovens de hoje, de 30 ou 40 anos, não sabem o que foi isto, não sentiram, não viram. Eu ainda vi soldados americanos e russos a passearem-se em Berlim.
Gradualmente, a Alemanha foi crescendo e começou a ficar mais forte economicamente. Porque trabalham muito, porque têm história. A Alemanha tem uma história industrial, do trabalho e da ciência, que tem 200 anos. Isto faz peso específico.
Acha que a Alemanha já se libertou?
A Alemanha libertou-se. O primeiro passo da libertação foi a reunificação. De repente a Alemanha está reunificada, acabou o comunismo, acabou o inimigo à porta, a fronteira, o muro… A Alemanha passou a ter 80 milhões de habitantes. Houve um país que entrou para a União Europeia, chamado República Democrática Alemã, e a União Europeia não disse nada. Não tinha nada para dizer, não conseguiu dizer nada. A Alemanha disse: é assim. E foi assim.
Terá sido um acordo entre Helmut Kohl e François Mitterrand, em que a Alemanha cedia a soberania e…
E o Mitterrand fazia o Euro?
Exato.
O Euro que era suposto ser uma arma francesa passou a ser uma arma alemã. Portanto, a Alemanha ganhou duas vezes.
Mas na altura ninguém antecipou que fosse assim, não é? Esperava-se que a Alemanha perdesse a soberania monetária, porque na altura a Alemanha já tinha a soberania monetária.
Mas a Alemanha, pelo seu crescimento económico e financeiro, teve o cuidado de transformar aquilo que poderia ser uma amarra, o Euro, numa arma. Foi o que acabou por acontecer. A Alemanha, nos últimos 20 anos, começou a perceber que pode já não ser um líder relutante.
Acha que deixou de ser um líder relutante?
Deixou de ser. Não creio que a Alemanha queira mandar na Europa como antigamente. Seria estúpido da minha parte dizer grosserias desse género. Mas que a Alemanha não se importa nada e quer liderar económica e financeiramente a Europa quer. Não tenho dúvidas sobre isso.
E será ela que vai desenhar o futuro da Europa?
Acho que ela vai desenhar o futuro da Europa se os outros deixarem.
E se não deixarem? Que é o que prevê: que os outros não vão deixar.
A Europa vai-se reorganizar, ou fragmentar, ou criar várias Uniões Europeias lá dentro, ou várias confederações, ou arranjar outro tipo de organização. Mas repare que já existem várias “europas”, embora nós só contemos uma. Schengen é uma europa, o tratado orçamental é outra, o Euro é outra, a NATO é uma espécie de, a união aduaneira é outra… Eu contei-os, há cinco ou seis países que aderiram ao Euro e que não são da União Europeia, o Kosovo aderiu ao Euro, o Montenegro…
De facto, a geometria variável já existe.
Vai ser a regra geral para todos os assuntos. E até os 28 poderão eventualmente fragmentar-se.
De que lado é que nós devemos estar?
É tão boa pergunta que eu não sei responder. Não sei. De que lado é que vamos ficar? Eu não sei quais é que são os lados que se vão desenhar…
Pode ser um lado geográfico e ficaremos ao lado da Espanha, da França, da Itália…
Se a França estiver lá também não está mal visto… É muito complicado. Também, depende dos outros. Quantos grupos haverá dentro da União? Três grupos? Quatro grupos? Cinco Grupos? Já uma vez estivemos numa fase de duas velocidades quando havia o mercado comum e a EFTA. Esquecemos estas coisas com muita facilidade. E havia o Conselho da Europa no meio. Portanto, há aqui experiências, há muitas experiências…
Sim, estamos quase a voltar um bocadinho atrás quando o Reino Unido não quis aderir à União Europeia e criou a EFTA.
Só não vale a pena é fazermos uma Europa como a UEFA, do futebol, que é europeia em princípio. Nem a Eurovisão, que já está na Ucrânia e no Uzbequistão.
Mas havia esse sonho de Europa, do Atlântico aos Urais?
Que eu saiba só o general de Gaulle é que disse isso. Acho que ele não sabia muito bem onde é que eram os Urais. Confundiu o Cáucaso com os Urais, porque os Urais já é muito para lá de Moscovo. O Cáucaso é que é antes de Moscovo.
Diria que a Europa como a conhecemos está em risco de acabar?
A Europa como a conhecemos sim, estamos próximos do que a maior parte das pessoas pensam, da dissolução ou de uma metamorfose.
Vai ser mais difícil viajar, pode terminar este tempo que conhecemos sem fronteiras?
Tenho pena. Eu vivi com passaportes e ainda por cima houve uma altura em que não tinha passaportes portugueses. Não podia ter. Era refugiado. E então andava com passaportes, uns verdadeiros outros falsos.
Andou com passaportes falsos?
Tive dez. Tinha de mudar a data de validade. O passaporte só valia por dois meses ou seis meses. E pagavam-se. Havia consulados que aceitavam por fora e eu paguei passaportes no consulado de Southampton, no de Génova no norte de Itália…
Que eram falsos?
Eram verdadeiros. Mas só davam para dois meses. Havia umas tinturinhas que se deitavam lá e apagavam [as datas]. Aquilo era escrito à mão. Apagava-se um oito e escrevia-se um dois, por exemplo. Ainda tenho oito ou dez desses passaportes.
Há um historiador inglês, Taylor que começa assim um livro sobre a Europa em 1900: “Grande ano 1900, era possível ir de Londres a Istambul sem mostrar o passaporte”. Depois a Europa fechou-se, veio a guerra, a primeira e a segunda Guerra. Agora abriu-se outra vez e de repente temos o dinheiro que circula por todo o lado, não é preciso passaporte, pode-se trabalhar aqui e acolá… Gostei deste período. Na minha vida foi o menor, foram 20 anos…
Já está a usar o verbo no passado, a falar como se isso já pertencesse ao passado…
É… Estou a reparar nisso. É possível que venhamos a ter mudanças.
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A Europa como a conhecemos está em risco de acabar, diz António Barreto
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