Advogados do presente: tecnologistas e gestores?
A crise financeira de 2008, com a disrupção criada, funcionou como catalisador da mudança para a indústria jurídica, surgindo inúmeras inovações e alterações na relação do negócio com o jurídico.
O mundo do direito é conhecido como um dos últimos a adaptar-se à mudança, digitalização e inovação – tanto internamente como na relação com o cidadão comum. Na maioria dos países, os tribunais são ainda povoados de papel, e o ciclo de gestão dos processos não está, de todo, digitalizado; se o fax já parece pertencer a um século passado, a carta com aviso de receção ainda está bem estabelecida enquanto ferramenta de comunicação do quotidiano. A sociedade associa a advocacia a estantes cheias de códigos e dossiês a abarrotar de papéis. E, dentro do setor, muitos apontam o ainda recorrente modelo de faturação por horas como causa de ineficiência e de falta de incentivos para a inovação.
A falta de diversidade no pensamento é também uma das principais razões apontadas por Gillian Hadfield, no ousado livro “Rules for a flat world”, para justificar a pouca inovação no setor. A autora, como professora de Direito, prepara os estudantes para um pensamento homogéneo, capaz de prever os argumentos usados pela contraparte. Embora esse pensamento homogéneo seja, de facto, uma mais-valia numa negociação ou litígio, deixa de ser vantajoso na criação de soluções criativas para os desafios dos clientes, no mundo complexo e imprevisível de hoje. Sobretudo, conduz e habitua os praticantes do direito às mesmas soluções e caminhos, criando zonas de conforto que falham no confronto com a velocidade e dinamismo da nova economia digital.
A crise financeira de 2008, com a disrupção criada, funcionou como catalisador da mudança para a indústria jurídica, surgindo inúmeras inovações e alterações na relação do negócio com o jurídico. A crise mudou o comportamento das empresas, exigindo “mais por menos” – um serviço melhor e mais eficiente, mais próximo e consciente do risco para a empresa -, e teve impacto nos modelos de negócio das sociedades de advogados e na própria prestação de serviços.
Desde então, uma verdadeira revolução tem vindo a acontecer:
1) de um setor tradicionalmente protegido, passámos para um mundo altamente competitivo, com outras organizações (como as consultoras) a apresentar-se como alternativa e com uma crescente profissionalização dos departamentos jurídicos internos, cada vez mais sofisticados e autónomos;
2) nunca como hoje existiu tanta pressão por parte dos clientes relativamente à própria forma de entrega do serviço: exigem eficiências e garantias só possíveis pelo acesso a tecnologia de ponta, em permanente atualização;
3) o próprio cidadão é mais exigente com o Estado e em particular com o acesso à justiça, sendo hoje a digitalização nos Tribunais e processos do Estado estratégica nos planos de qualquer governo.
Este processo de digitalização forçado foi também acelerado pela crise do coronavírus, que provou ser uma oportunidade única para a indústria se adaptar à digitalização e, de uma vez por todas, apanhar a boleia da inovação. Para o cidadão, como indivíduo ou como representante de empresa, não há nenhuma razão para que o setor jurídico, privado ou Estado, não acompanhe a revolução digital que experimenta em todos os outros setores com que interage.
Assim, no mundo de hoje, urge perguntar: para o cliente, o advogado deve ser um perfeccionista ou um empreendedor? Para o cidadão, os Tribunais e agentes da Justiça devem adaptar-se às novas tecnologias? Mas como avaliar os riscos sem compreender os conceitos fundamentais de tecnologia, inovação, dados e inteligência artificial?
Pessoalmente, não defendo que os advogados devam tornar-se programadores ou designers – ou até simples gestores de processos. No entanto, é fundamental expandir os conhecimentos técnicos, para além do conhecimento jurídico puro e duro.
Num mundo a evoluir a alta velocidade, e com desenvolvimentos tecnológicos exponenciais, muitos profissionais do Direito já encontraram um novo propósito no meio desta revolução que é também cultural.
Nas empresas, é esperado que o advogado in-house gira o seu departamento como um negócio, de forma eficiente, com novas responsabilidades e competências. Para tal, surgiram associações e movimentos focados nos novos skills dos profissionais de “operações jurídicas” (o CLOC Corporate Legal Operations Consortium tem hoje mais de 3000 membros em todo o mundo).
Do lado das sociedades de advogados, vemos líderes nacionais e internacionais a reinventarem-se, por exemplo criando Labs e Hubs para co-inovarem, em colaboração, com clientes e parceiros, usando conceitos de agilidade, open innovation ou design-thinking, próprios de outras indústrias.
No ensino jurídico, foi apresentado pela primeira vez em 2014 o conceito de T-Shaped Lawyer. Em muitas universidades, é já uma forma popular de discutir novas competências para os advogados no século XXI. Se imaginarmos a letra T, assumimos que na barra vertical temos sempre presente um profundo conhecimento jurídico; contudo, o advogado do presente deve também desenvolver algum conhecimento técnico noutras áreas, de acordo com a sua área de especialização, que pode incluir a tecnologia, a gestão ou a análise de dados, e que constitui a tal barra horizontal do T. Recentemente, este skill set expandiu-se para incluir competências-chave interpessoais, como o sentido de colaboração, a flexibilidade, a criatividade e a propensão pessoal para a resolução de problemas. Estas competências comportamentais são hoje essenciais para entender os desafios dos clientes, num mundo em constante mudança.
Num sentido ligeiramente diferente, no Reino Unido criou-se a iniciativa O-Shaped Lawyer, enquanto na Europa continental, a Bucerius Law School (Alemanha) e o IE (Espanha) lideram os programas de educação que estão a transformar o futuro da profissão.
A procura pela criação de uma nova cultura e mentalidade é tão crítica que várias sociedades fizeram parcerias com faculdades e escolas de Gestão, Tecnologia e de Design com este objetivo. Em Portugal, a Morais Leitão associou-se à Universidade Nova SBE para criar a Business Academy for Lawyers, aumentando o conjunto de competências dos seus advogados em temas de gestão, numa parceria que foi reconhecida pelos FT Innovative Lawyers Awards em 2020 como exemplo prático desta mudança com impacto real, à medida que a própria universidade desenvolveu novos programas abertos de formação avançada com este currículo.
E no setor público? Vale a pena recordar o impacto que a pandemia trouxe no acesso remoto aos Tribunais (Remote Courts) e a diversos serviços do Estado, disponibilizando contactos e formulários, abrindo opções telemáticas que antes eram consideradas impossíveis.
Também no Reino Unido, a iniciativa LawtechUK, que apoia a transformação do setor, apresentou no seu relatório de impacto (2022) a criação de 140 – 400 postos de trabalho com retorno para o contribuinte de 2.35£ por cada 1£ investida, nos primeiros anos de atividade.
Em Portugal, o Ministério da Justiça lançou programas para investir na capacitação das pessoas da Justiça para a inovação, através do Lab Justiça e de Workshops de Inovação. No âmbito do GovTech, este recente programa Capacitar para Inovar é uma excelente iniciativa, mas é preciso fazer mais!
Ainda assim, a mudança tarda a chegar ao ensino do Direito em Portugal, que continua a ter uma componente teórica excessiva, assente apenas no vertical tradicional do conhecimento jurídico. É fundamental que as Universidades possam oferecer programas ou parcerias nas áreas de gestão, tecnologia e inovação, cientes de que os juristas que estão a ser hoje formados já vão prestar serviços jurídicos muito diferentes dos de há dez ou vinte anos, desafiados pela sociedade e pela economia em que vão atuar. A oportunidade existe agora, a capacidade também!
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