É para cortar a dívida ou aumentar a despesa?
A central questão das entregas do Banco de Portugal nos próximos sete anos cobriria apenas a dívida que fizemos durante sete meses em 2016. É com expedientes destes que a tornamos sustentável?
A consequência mais imediata e bondosa do Relatório do Grupo de Trabalho sobre a Sustentabilidade das Dívidas Externa e Pública é a queda da máscara da abordagem “agarrem-me, senão eu reestruturo-a” que fez parte da cartilha de muita gente na última meia dúzia de anos.
Sentados agora à volta de uma mesa para formalizarem no papel os seus contributos para o assunto perceberam que as soluções fáceis para problemas complexos só existem quando se está no púlpito de um comício.
Já vários antes de mim analisaram com detalhe as propostas do Grupo de Trabalho — por exemplo o António Costa, Joaquim Miranda Sarmento ou Ricardo Santos — e revendo-me nessas análises não as vou repetir.
Resumindo, as propostas que poderiam ser eficazes não dependem de nós. Quem não gostaria de pagar as dívidas durante um prazo mais alargado e com juros mais baixos? É preciso que os credores aceitem e que nós estejamos dispostos a aceitar as condições que poderiam impôr.
Por outro lado, as ideias que dependem da nossa gestão interna são arriscadas ou pouco ou nada eficazes — começar a pedir empréstimos de prazos mais curtos, não ter tanto dinheiro nos cofres ou fazer com que o Banco de Portugal passe a distribuir mais dividendos depois de reduzir as suas provisões para o risco da dívida.
E, sobretudo, revelam que passados estes anos todos não aprendemos nada. Estamos de tal forma viciados em expedientes de oportunidade para ir disfarçando os desequilíbrios e adiando a resolução de questões estruturais que já não conseguimos pensar de outra forma nem atacar os problemas de frente.
A proposta de fazer aumentar os dividendos pagos pelo Banco de Portugal ao Estado é disso um óptimo exemplo.
Não questiono a legitimidade formal da intenção nem sequer o racional que lhe está na base — apesar da contaminação que possa resultar do facto de haver fortes divergências institucionais entre esta maioria e o Banco de Portugal e da existência de atritos pessoais entre deputados do PS e o governador.
O Banco de Portugal terá uma política de provisionamento mais cautelosa do que a maioria dos bancos centrais do euro, o que tem como efeito contabilístico a redução do lucro de cada ano e, como consequência, dos impostos e dividendos entregues ao Estado.
Mas também é verdade que se essas provisões forem excessivas — e, por isso, não forem utilizadas para cobrir perdas em activos do banco no futuro — mais cedo ou mais tarde elas acabarão por ir parar aos resultados líquidos quando forem anuladas por venda dos activos que lhe estiveram na origem. E nessa altura serão pagos ao Estado os impostos e distribuídos os dividendos que não foram durante estes anos.
Estamos, portanto, a discutir se o banco central transfere já ou apenas no futuro recursos para o Estado, de forma a contribuir para a sustentabilidade da dívida pública. Não nos esqueçamos que é de sustentabilidade da dívida que estamos a falar e não de um processo de reforma do Banco de Portugal e da sua eficiência da utilização de recursos — que, já agora, era um tema que devia ser discutido mas não neste âmbito deslocado.
E de que montantes é que estamos a falar? Serão tão volumosos que nos permitiriam aliviar de forma relevante o peso da dívida e respirar melhor? Será esta a “bala de prata” que nos faltava?
O próprio Grupo de Trabalho fez as contas para o horizonte dos próximos sete anos — porque é esse o prazo médio da dívida portuguesa que tem sido comprada ao abrigo do programa do BCE e é sobre ela que são constituídas as agora polémicas provisões.
Se o Banco de Portugal não constituísse mais provisões até 2023, entregaria ao Estado qualquer coisa como mais 5,75 mil milhões de euros até lá. Como a dívida pública fechou o ano de 2016 em 241 mil milhões de euros, o impacto desta operação seria de 2,4% no stock de dívida ao longo de sete anos. Como comparação, recorde-se que só durante o ano passado a dívida do Estado aumentou 9,5 mil milhões de euros. Portanto, a central questão das entregas do Banco de Portugal durante sete anos cobriria apenas a dívida nova que fizemos durante sete meses em 2016.
Deste tipo de expedientes já tivemos a nossa dose durante muito tempo. A nossa história orçamental é fértil em operações que não são mais do que fracos paliativos, que apenas disfarçam alguns dos sintomas sem combater a doença. Nos últimos 20 anos foram raros os ministros das Finanças que não lançaram mão de operações contabilísticas para disfarçar a derrapagem num ano. E depois no seguinte e no outro e no outro. Quantos fundos de pensões não foram transferidos para o Estado para travar o défice e também a dívida — primeiro de empresas do Estado, depois de toda a banca e da PT? E a enormidade de receitas de privatizações que abateram ao stock da dívida? E os sucessivos perdões fiscais, cada um deles sempre o último para depois as contas entrarem na ordem?
Tudo isso entrou nas contas do Estado e serviu também para abater no montante da dívida. E isso não impediu que ela tivesse subido até aos níveis estratosféricos em que hoje se encontra.
Este recurso ao Banco de Portugal com o objectivo de ajudar a controlar a dívida, a avançar, terá outro efeito perverso. Se entrar na contabilização do défice anual, o que vai acontecer é que vai reduzir os esforços que estão a ser feitos para equilibrar o orçamento. Serão cerca de 820 milhões de euros por ano que deixarão de ser poupados na despesa, pelo menos em grande parte.
Catarina Martins já o disse, louvando-se aqui a total transparência: “São soluções que, no imediato, permitem libertar já recursos para que o próximo Orçamento do Estado possa cumprir as posições conjuntas para acabar com o empobrecimento do nosso país. Não é coisa pouca”.
O que está aqui então não é um caminho para reduzir a dívida e a tornar sustentável. É antes uma forma de encontrar ainda mais verbas onde as haja para aumentar a despesa. Para depois irmos aos credores — que numa grande parte são os contribuintes de outros países — pedir um perdão ou melhores condições para pagar.
Definitivamente, não temos emenda.
O autor escreve segundo as regras do antigo acordo ortográfico.
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