Reestruturar a dívida: A montanha pariu um rato?
O economista Joaquim Miranda Sarmento analisa a proposta do grupo de trabalho sobre a dívida pública portuguesa. "Ninguém teve coragem de se atravessar por uma 'reestruturação'", disse.
Hoje foram divulgadas as propostas que um grupo de trabalho do PS-BE fizeram para o problema da dívida pública. Uma primeira leitura de um relatório que merece discussão.
O documento só pode surpreender quem não conheça a atual situação da dívida pública, nomeadamente a sua composição, quem são os detentores, quais as maturidades e as taxas de juro.
É que ao contrário do que o Bloco sempre defendeu, o relatório divulgado não defende uma reestruturação da dívida. Isto é, o relatório afasta qualquer haircut do valor da dívida pública. Afinal, o “estrangulamento”, “a necessidade de resolver o problema dos juros que impedem a economia de crescer” e o “por as pernas dos banqueiros alemães a tremer” eram balelas! A montanha pariu um rato, porque a realidade é implacável (e todos renderam-se aos “conservadores orçamentais”).
E porque é que ninguém teve coragem de se atravessar por uma “reestruturação”, se durante tanto tempo a apregoaram?
Para responder a isso, é preciso perceber quem são hoje os detentores da dívida pública Portuguesa (dados de abril do IGCP). A nossa dívida pública de médio e longo prazo ronda os 240 mil M€ (240 bis). Destes, o setor financeiro (banca e seguros) tem 53 bis; os particulares nacionais (retalho) têm 31 bis; a Segurança Social tem 8 bis e o Banco de Portugal (via QE) tem 20 bis (valores aproximados para todos). Ou seja, os nacionais têm neste momento 112 bis, o que perfaz quase 50% da dívida pública.
Logo, qualquer reestruturação que atingisse esta parte da dívida implicaria perdas avultadas para os bancos e seguros (com a nacionalização dos mesmos e um levy (corte) de 20%-30% nos depósitos, como única forma de capitalizar o setor financeiro), mas também para os aforradores que compraram certificados do tesouro e de aforro, para o fundo de capitalização da segurança social e para o banco central.
A restante dívida está nas mãos do BCE (15 bis, via QE e sobretudo via SMP), no FMI (15 bis), nos instrumentos Europeus (50 bis) e nas mãos de investidores estrangeiros (60 bis).
Ou seja, uma reestruturação que apenas afetasse os investidores estrangeiros colocaria Portugal fora dos mercados financeiros por muito tempo (20, 30 anos, e não só para o Estado, mas também para os bancos, empresas e famílias), com gravíssimos conflitos judiciais (vide Argentina), e reduziria a dívida de 130% do PIB para 100%. Uma reestruturação que afetasse os investidores estrangeiros e nacionais, reduziria a dívida para uns 90%, mas implicaria além do fecho dos mercados internacionais, a falência do setor financeiro nacional. Uma reestruturação que colocasse a dívida pública em 60% do PIB teria de atingir o Banco de Portugal e BCE, colocando em sério risco a permanência de Portugal na zona Euro.
Estamos então conversados sobre reestruturações? Da próxima vez que alguém do Bloco falar nesse assunto não liguem: é conversa para enganar tolos.
Mas o que propõe o relatório agora apresentado? Tem duas medidas “internas”, de gestão da dívida pública, que me parecem erradas: reduzir as maturidades e reduzir o nível dos depósitos (a “almofada” do IGCP). Reduzir as maturidades era algo que eu já esperava que viesse a ser defendido (disse-o aqui: “o Governo fará uma estratégia de continuar a ganhar tempo: e essa estratégia passará por emitir a prazos mais reduzidos (2-3 anos). E terá o argumento político de que está a reduzir os custos da dívida (dado que terá juros mais baixos)”.
Mas reduzir as maturidades é um erro dado que coloca Portugal numa situação de ter de se financiar em montantes mais elevados em cada ano. Portugal terá novamente uma “montanha de dívida” entre 2018-2021, de reembolsos anuais de 15 mil milhões de euros, o que implica, face aos défices previstos, emitir a médio-longo prazo 20 mil milhões de euros/ano. Adicionar mais valores a isto é colocar o país numa situação muito difícil se voltar a haver turbulência nos mercados ou uma crise financeira. E se a isso se somar uma redução do nível de depósitos, ao mínimo abanão nos mercados, as nossas yields disparam e os investidores fogem. Um país com 130% de dívida pública não pode gerir a sua dívida em “navegação à vista”. Esse foi o erro de 2009-2011. Não aprendemos nada? Vamos repetir os erros?
Depois o relatório apresenta a proposta de aumentar os dividendos do Banco de Portugal, por via dos juros que o Banco recebe do QE. Não discordo da medida, embora ela seja transitória (só haverá juros durante os próximos três a quatro anos). E fico espantado quando vejo pessoas a acharem que medidas transitórias podem resolver problemas estruturais. Cheguei a ver uma notícia em tempos que os dividendos do Banco de Portugal poderiam pagar o aumento de pensões. Ora, o aumento de pensões é permanente, e os dividendos são temporários. Novamente, repetir os erros do passado.
O relatório também defende um reembolso mais rápido ao FMI. Foi uma pena que o atual Governo tenha abandonado essa política. Se tivesse reembolsado os seis bis previstos para 2016, ao invés de 1.5 bis, teria poupado 120 milhões euros/ano (4,5 bis vezes 3%, que é a diferença entre os juros do FMI a 4% para uma maturidade média de cinco anos e a taxa de juro a cinco anos em 2015 de 1% nos mercados).
Por último, a solução Europeia: achar que o Banco de Portugal pode ficar com a dívida que detém de forma perpétua é desconhecer o funcionamento da zona Euro. Os bancos centrais não financiam défices.
Quanto à proposta de redução da taxa de juro e extensão das maturidades dos empréstimos Europeus, convém lembrar duas coisas: primeiro, esses empréstimos só começam a ser pagos em 2026, pelo que qualquer extensão não terá impacto nos próximos dez anos. Segundo, os juros que Portugal paga aos instrumentos europeus é praticamente o custo de financiamento desses instrumentos (tem um spread de 0,1%, para cobrir os custos da operação). Isso significa que Portugal paga neste momento aos instrumentos Europeus, para uma maturidade média de 15 anos, uma taxa que ronda 2%. Para essa maturidade, a República financia-se nos mercados acima dos 4%. Ou seja, são 2% vezes 50 bis, o que implica que já temos hoje uma poupança anual para Portugal de mil milhões de euros.
Uma redução de juros implica uma perda financeira para os instrumentos Europeus, o que terá de ser suportado por todos os contribuintes europeus. Isso obriga a que todos os Estados membros, de forma unânimes, aprovem a medida. Acreditar que isso vai acontecer implica ter uma fé muito grande.
Qual é então o caminho para a dívida pública? Sem rejeitar soluções Europeias, o que me parece é que o caminho passa por uma “reestruturação suave no mercado”. Ou seja, criar condições para que as taxas de juro possam voltar a reduzir-se e com isso ir substituindo dívida por taxas de juro mais baixas.
Mas para isso é necessário continuar o processo de consolidação orçamental estrutural (que foi interrompido em 2015), atingindo um saldo primário de 3%-4% e um saldo estrutural equilibrado. Só assim iremos reduzir a dívida (porque menos défice implica menos dívida), teremos uma economia a crescer mais e criaremos confiança nos mercados para descer as taxas de juro. E só uma consolidação orçamental nos abrirá as portas para qualquer solução Europeia.
“Deus ajuda aqueles que se ajudam a si mesmo”.
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