Tratado assinado em 1994, em Lisboa, que protege projetos energéticos, juntou mais de 50 países. Desalinhamento com valores motivou saída "concertada" da UE, que pode levar à "morte desta iniciativa".
Está em curso uma retirada coordenada a nível europeu do Tratado da Carta da Energia (TCE), um documento assinado em dezembro de 1994, em Lisboa, e que servia de proteção aos investimentos na área da energia – renovável e não renovável — e de garantia ao direito destas empresas de processarem os Estados signatários quando estes adotarem políticas que possam pôr em causa a normal operação destas empresas, e os respetivos investimentos.
Atualmente, o documento encontra-se “desalinhado” com os objetivos de transição para uma Europa mais “verde” e várias organizações ambientais têm apelado à denúncia por parte dos 27, argumentando que o tratado “continua a proteger cerca de 344 mil milhões de euros de investimentos em combustíveis fósseis cujas emissões são muitíssimo mais do que as possíveis para manter o aquecimento do planeta abaixo de 1,5°C”, apontam ao ECO/Capital Verde a associação ambientalista Zero e a Troca, organização portuguesa por um comércio internacional justo.
Um a um, os países da União Europeia (UE) têm manifestado vontade política de abandonar o TCE, e nem as propostas de alteração às alíneas mais críticas, que estiveram em negociação durante cinco anos entre os 53 signatários, foram suficientes para convencer vários elementos do bloco europeu a ficar. “Isso pode significar a morte desta iniciativa”, considera ao ECO/Capital Verde Agostinho Pereira de Miranda, sócio e fundador da Miranda & Associados e membro da equipa jurídica que aconselha o Secretariado da Carta da Energia, que opera em Bruxelas.
A 7 de julho, o executivo comunitário propôs que os 27 Estados-membros denunciassem o TCE de forma “coordenada e ordenada” por considerar que o documento se manteve “praticamente inalterado desde que foi acordado” e por “já não ser compatível com a ambição reforçada da UE em matéria de clima, no âmbito do Pacto Ecológico Europeu e do Acordo de Paris”.
Além de apelar que o bloco abandonasse o tratado em conjunto, a Comissão também decidiu retirar a sua anterior proposta de modernização do documento, uma vez “que não reuniu a maioria necessária entre os Estados-Membros”. A proposta previa, entre outros aspetos, pôr termo à proteção do investimento estrangeiro em combustíveis fósseis. A retirada desta proposta é considerada por Agostinho Pereira de Miranda como o “aspeto mais negativo” do processo. E acrescenta: “o Conselho [da União Europeia] entendeu que a versão modernizada do TCE não vai suficientemente longe, e eu antecipo que essa venha a ser a posição de quase todos os Estados-Membros”, defende o jurista.
O aspeto mais negativo da resolução é que, não só anuncia a denúncia do TCE pela UE, como retira de consideração por parte desta a versão modernizada do TCE. Isso pode significar a morte desta iniciativa.
Dez dias depois da Comissão da UE ter anunciado que iria apresentar a proposta de retirada aos Estados-membros, Duarte Cordeiro, ministro do Ambiente e da Ação Climática, anunciou, na Assembleia da República, que também Portugal “já tomou a decisão” e iniciou o processo de denúncia. Em declarações ao ECO/Capital Verde, Filipe de Vasconcelos Fernandes, especialista em economia da energia, considera que a resolução de litígios “terá sido uma das principais razões subjacentes à decisão do Governo português, de iniciar a respetiva saída”, pois permite “o recurso a arbitragem sem qualquer discriminação do vetor energético em causa”.
“Algumas entidades, especialmente ONG ligadas à proteção do ambiente, reivindicavam há muito que tal levaria a um recurso predominante (e consequente proteção) às entidades do segmento não-renovável, com o consequente prejuízo para a transição energética”, explica o advogado.
Mas antes da retirada portuguesa, países como Espanha, os Países Baixos, Polónia, Alemanha e França já se tinham recusado, unilateralmente, a manter-se como signatários, decisão que terá de ser formalmente notificada a Portugal, uma vez que é o depositário do TCE, isto é, principal responsável pelo tratado.
“O que está em causa, é se a UE se retira de forma coordenada – a única opção razoável –, ou se permite que os Estados que queiram permanecer o façam”, referem Susana Militão da Zero e Ana Moreno, da Troca ao ECO/Capital Verde. Segundo a Reuters, existe a possibilidade de países como o Chipre, a Hungria e a Eslováquia rejeitarem a saída concertada e optarem por ficar na próxima versão já atualizada do acordo. Ainda assim, com a maioria do bloco europeu de saída, considerado pelas representantes da Zero e da Troca como “o grande motor da modernização”, o TCE “não terá grande futuro”. Até porque o próprio Secretariado deixa de ter financiamento.
Sem os 27, restariam 26 signatários do TCE, que segundo a Zero e a da Troca estão motivados pela perceção de que o tratado ajuda a atrair investimento no setor energético. “Trata-se, porém, de um argumento infundado, já que estudos demonstram que não há evidência de que o TCE e tratados semelhantes influenciem os fluxos de investimento”, vincam.
TCE desencadeia 158 disputas entre Estados e empresas
O TCE é um acordo internacional, multilateral e juridicamente vinculativo, de promoção e proteção de investimentos no setor da energia, abrangendo todos os aspetos das atividades comerciais, incluindo comércio, transporte, investimentos e eficiência energética.
Foi assinado na capital portuguesa, depois do fim da Guerra Fria, com o objetivo de reforçar a relação entre os setores energéticos dos Estados do Bloco de Leste — com amplos recursos energéticos e que estavam a necessitar de investimento — e os da Europa Oriental, que precisavam de diversificar as suas fontes de energia em mercados europeus e mundiais mais amplos. “Atualmente, não existem evidências quanto à sua legitimidade em termos de facilitação do investimento ou redução do custo da energia“, estimam Ana Moreno e Susana Militão.
Na atual conjuntura, eventualmente exponenciada pela Guerra na Ucrânia, vários Estados (com estruturas e um ‘mix’ energético muito diverso) parecem assumir que, de alguma forma, o tratado poderá funcionar, indireta ou sub-repticiamente, como uma forma de desalinhamento face às suas estratégias de transição.
Já segundo Agostinho Pereira de Miranda, Portugal não só beneficiou, como continua a beneficiar das disposições “muito favoráveis” para os investidores portugueses que fizeram investimentos em países que são partes do TCE. Os benefícios também se estendem aos programas de eficiência energética, proteção do ambiente e outros que são “regularmente apoiados pelo Secretariado do TCE aos governos nacionais das partes”, informa o advogado.
Mas também pode ter ficado mal servido. O mesmo jurista acrescenta que “Portugal pode ter sido prejudicado quando um investidor de um país que não é membro do TCE constitui uma sociedade veículo num país que o é, com vista a beneficiar das garantias que o TCE oferece aos investimentos provindos deste último”, alerta. É o que terá acontecido com a venda de participações do Estado da EDP e da REN a empresas chinesas.
Mas as possíveis consequências não ficam por aqui. Até 1 de maio de 2023, o Secretariado tinha em curso 158 casos de arbitragem instituídos ao abrigo do TCE referentes a investimento — 59% dos quais se reportam a investimentos no setor das energias renováveis e 34% nas energias fósseis. Segundo Agostinho Pereira de Miranda, essa é “a razão principal que tem levado à denúncia do TCE por diferentes países”.
O Estado português não tem, até ao momento, histórico de disputas, havendo apenas um caso em curso envolvendo uma empresa portuguesa, a Cavalum SGPS, que, em 2015, avançou com uma arbitragem contra Espanha, reclamando 59 milhões de euros e contestando a intervenção do país sobre as receitas das empresas de energias renováveis. O país vizinho tem em curso mais de 50 disputas ao abrigo do TCE.
Isto não quer dizer, contudo, que Portugal não estivesse perto de acumular a sua própria lista de casos. Susana Militão e Ana Moreno recordam que quando, por imposição da Troika, Portugal cortou os subsídios às renováveis em 2012, ficou “fortemente sujeito a ser processado por via do TCE”, como aconteceu em Espanha. Tal não sucedeu, contextualizam as mesmas, porque “Portugal preferiu negociar sigilosamente e chegar a acordo com as produtoras energéticas”.
Retirada só fica completamente finalizada 20 anos mais tarde
Embora já tenha sido anunciada, uma saída formal do TCE não será fácil. Nem imediata. Aliás, o documento prevê que a denúncia só fica concluída um ano mais tarde, e mesmo assim, os signatários que decidirem sair ficam expostos a uma cláusula de caducidade chamada “sunset clause“. “Tem sido objeto de críticas desde há muito”, diz Pereira de Miranda.
No artigo 47.º do tratado, os redatores do documento estipularam que, se um Estado sair, as disposições deste tratado continuarão a aplicar-se aos investimentos já em curso “durante um período de 20 anos a partir dessa data”. Agostinho Pereira de Miranda aponta que a cláusula, “algo draconiana”, “viola os princípios e regras do direito internacional dos tratados”, nomeadamente das convenções de Viena. Por sua vez, Filipe de Vasconcelos Fernandes, aponta que a solução surge numa “ótica de proteção da confiança jurídica depositada à data da realização dos investimentos”.
Segundo os dados do TCE, a sunset clause foi ativada na Rússia e em Itália, depois da denúncia do tratado a 30 de julho de 2009 e 31 de dezembro de 2014, respetivamente.
Para proteger os próprios Estados-membros do risco de disputas face a uma eventual retirada concertada, a Comissão Europeia sugeriu que, no âmbito desta cláusula, os futuros processos judiciais “sejam limitados” e que fosse redigido um acordo entre os países, “já que 70% dos investimentos energéticos na UE são feitos por empresas oriundas da própria UE”, recordam a Zero e a Troca, acrescentando que a cláusula de caducidade do TCE nunca se aplicou nas relações intra-UE. “Esta é a opção menos dispendiosa e a única que permite à UE ser livre e coerente nas suas políticas em matéria de clima e energia”, reforçam Susana Militão e Ana Moreno.
É provável que, se a UE sair, os outros países signatários (fora da UE) também acabem por abandoná-lo. Até porque o Secretariado deixa de ter financiamento suficiente. O grande motor da “modernização” era a UE, sem ela, o TCE não terá grande futuro.
Denúncia do TCE pode gerar instabilidade dos investidores
Filipe de Vasconcelos Fernandes não tem margens de dúvidas: É “altamente improvável” que a retirada do TCE possa contribuir para uma crise energética na UE, à semelhança daquela vivida em 2022, desencadeada pela Guerra na Ucrânia.
Na verdade, o abandono do tratado permitirá aos ex-signatários “conceber e ajustar as suas políticas energéticas às suas necessidades e políticas climáticas”, sem terem de negociar as suas decisões com investidores estrangeiros e temerem retaliações, consideram a Zero e a Troca.
A retirada europeia do TCE “pode contribuir para alguma instabilidade nos círculos dos investidores, especialmente financeiros, vindos de países que dele fazem parte”, analisa Pereira de Miranda. E acrescenta: “Vai certamente haver nova crise energética no curto prazo (um a dois anos) mas receio que as razões principais sejam mais geopolíticas do que financeiras ou económicas”, diz.
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Tratado da Carta de Energia. Europa de saída do acordo nascido em Lisboa
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