Medidas anti-inflação devem ser “muito limitadas no tempo” e “concentradas nas famílias”, diz Rui Baleiras

"Cativações são um empecilho enorme à execução por parte dos serviços públicos. São um atentado à transparência do Orçamento", diz o coordenador da UTAO. Há outros instrumentos "igualmente perversos".

A taxa de inflação segue em valores excessivamente altos e o Governo deverá prolongar algumas dessas medidas no próximo ano. O coordenador da Unidade Técnica Orçamental (UTAO), à semelhança do que é defendido pela maior parte das instituições internacionais, diz que estas medidas “devem ser muito limitadas no tempo e na escala financeira macroeconómica”, “por isso, devem ser concentrados nas famílias, mais do que nas empresas, e nas famílias, com maior exposição à inflação e menor capacidade de poupança”.

Em entrevista ao ECO a propósito da divulgação do parecer da UTAO à Conta Geral do Estado de 2022, Rui Baleiras sublinha que Portugal até é dos países que “menos esforço orçamental” faz com as medidas para mitigar os impactos da inflação, “fruto dos excessos e dos desequilíbrios orçamentais passados”, mas como “a política económica é feita no contexto de um mercado político”, “qualquer Governo, de direita ou esquerda, para além de dever atender aos efeitos na economia e aos efeitos no Orçamento das medidas que toma, a verdade é que também as desenha muitas vezes para satisfazer as franjas do eleitorado onde caça votos”.

“É evidente que pode sempre ser feita uma otimização pelo Governo do cabaz de medidas”, reconhece o coordenador da UTAO, mas “a inflação é uma área para a qual a Humanidade não descobriu ainda uma boa resposta de políticas públicas” e “a subida das taxas diretoras, a comunicação institucional dos bancos centrais está longe de ser a adequada”, acrescenta.

Rui Baleiras elogia o compromisso assumido pelo ministro das Finanças de não recorrer às cativações no Orçamento do Estado para 2024. “As cativações são um empecilho enorme à execução por parte dos serviços públicos. São um atentado à transparência do Orçamento”, diz, acrescentando que “há outros instrumentos” a chama instrumentos convencionais e não convencionais de controlo da despesa pública, “que têm os mesmos efeitos perversos”. Um exemplo são as normas que travam a autonomia dos serviços nas mais diversas áreas e que têm resultado numa degradação da qualidade dos serviços prestados à sociedade”.

Disse que perante a folga orçamental existente o Governo optou por não a utilizar para responder a eventuais problemas como a elevada taxa de inflação. Foi correta a opção de tomar medidas mais abrangentes, como o IVA zero, ou o apoio aos combustíveis? Ou deveriam ter sido adotadas medidas mais direcionadas para as famílias mais carenciadas, como defende a Comissão Europeia, o FMI, a OCDE?

Está a circunscrever a sua pergunta às medidas do pacote inflação. A UTAO, em março, publicou um estudo com natureza pedagógica sobre inflação. O que é inflação? Porque é que devemos ter medo dela? E o que podem os poderes públicos fazer para a baixar ou para mitigar os efeitos nocivos sobre o poder de compra das famílias ou custo às empresas? A inflação é uma área para a qual a Humanidade não descobriu ainda uma boa resposta de políticas públicas. É consensual que a política monetária é a mais bem preparada para o fazer, mas, dadas as características do processo inflacionário, que o mundo inteiro está a viver desde meados de 2021. A subida das taxas diretoras, a comunicação institucional dos bancos centrais está longe de ser a adequada. É como sabemos que o corpo humano tem uma doença, mas não temos…

O antibiótico certo.

O antibiótico certo. Vamos lá com alguma medicina de largo espectro, mas com pouca eficácia sobre a causa do mal. Neste caso as causas da inflação.

E, neste momento, estamos a assistir aos governos, também por pressão política, a tentarem mitigar os impactos dessas medidas desenhadas para travar a inflação. E isso prejudica porque faz com que a inflação persista ainda mais tempo?

É por isso como já referi no princípio do ano, tal como outros agentes, nomeadamente o BCE que reiterou em setembro, aquando da última subida das taxas de juro, que estas medidas de política de natureza orçamental devem ser muito limitadas no tempo e na escala financeira macroeconómica e por isso devem ser concentrados nas famílias, mais do que nas empresas. E nas famílias, com maior exposição à inflação e menor capacidade de poupança.

O Governo deveria ou não prolongar algumas das medidas do pacote anti-inflação para o próximo ano?

A política monetária do BCE é conduzida com base na situação económica da área do euro.

E os países são muito diferentes entre si.

Portugal até é dos Estados membros do euro, que menos esforço orçamental fez com a Covid e que está a fazer no âmbito da inflação, fruto precisamente dos excessos e dos desequilíbrios orçamentais passados nas últimas quatro ou cinco décadas. Por isso, temos menos capacidade de fogo nestas circunstâncias. Dito isto, é evidente que pode sempre ser feita uma otimização pelo Governo do cabaz de medidas. A política económica é feita no mercado, no contexto de um mercado político. Qualquer Governo, de direita ou esquerda, para além de dever atender aos efeitos na economia e aos efeitos no Orçamento das medidas que toma, a verdade é que também as desenha muitas vezes para satisfazer as franjas do eleitorado onde…

Caça os seus votos.

Caça os seus votos e isso muitas vezes leva a tomar medidas que não são economicamente as melhores para o conjunto da sociedade.

Qualquer Governo, de direita ou esquerda, para além de dever atender aos efeitos na economia e aos efeitos no Orçamento das medidas que toma, a verdade é que também as desenha muitas vezes para satisfazer as franjas do eleitorado onde caça os seus votos.

Quer dar um exemplo?

Há dois anos houve uma redução da taxa de IVA sobre o consumo de eletricidade até 100 kilowatts hora. Foi uma medida que teve um impacto macroeconómico de umas largas dezenas de milhões de euros mês, 80 ou 90 milhões euros. Mas sabe qual foi o benefício sentido no bolso das poucas famílias que tiveram essa redução no seu tarifário? Estamos a falar de 90 cêntimos, mal dá para um café? Não haveria melhor utilização pública desses 80 milhões de euros? Muitas vezes, no desenho das medidas tendemos a esquecer o custo de oportunidade das mesmas. Isto é o que é que, enquanto sociedade, deixamos de ter por apostarmos naquele alvo.

No caso dos combustíveis, é um bom exemplo. O apoio deveria ser desenhado de outra forma? Mexendo na estrutura dos impostos, por exemplo?

Isso é uma outra questão que deve ser separada do combate à inflação. Lá está, em Portugal, infelizmente, por opção política das várias maiorias que fomos tendo, damos muito pouco espaço à reflexão sobre mudanças estruturais nos nossos impostos. E claramente devíamos dar. Como dizia a doutora Teodora Cardoso, muitas vezes em Portugal os impostos, fundamentalmente, sempre serviram para financiar a despesa e foram pensados como instrumentos de financiamento da despesa e não como instrumentos para regular a economia. É por isso que praticamente não temos economistas da tributação em Portugal. As medidas de natureza fiscal são sempre para sacar mais dinheiro ao contribuinte, porque é preciso pôr dinheiro a financiar despesas novas. Não tem havido atenção suficiente com a qualidade dos impostos que temos. Já nem falo do montante! São os efeitos perversos, há maneiras diferentes de atingir a economia para ir buscar um determinado valor de receita fiscal.

As medidas de natureza fiscal são sempre para sacar mais dinheiro ao contribuinte, porque é preciso pôr dinheiro a financiar despesas novas. Não tem havido atenção suficiente com a qualidade dos impostos que temos.

Fernando Medina anunciou que no próximo Orçamento de Estado não haverá cativações. É um risco ou é um passo importante na qualidade das políticas?

É um passo saudável e positivo que saúdo efusivamente. O Ministério das Finanças tem outras maneiras mais inteligentes de assegurar o cumprimento dos objetivos das metas orçamentais. Não precisa das cativações para o efeito. As cativações são um empecilho enorme à execução por parte dos serviços públicos. São um atentado à transparência do Orçamento, porque o Governo propõe, o Parlamento aprova tetos de despesa por ministério, aprova tetos de despesa por serviço público da Administração Central e da Segurança Social. E depois vêm as cativações impedir que se toque a partir do teto. E há outros instrumentos que temos chamado instrumentos convencionais e não convencionais de controlo da despesa pública, que têm os mesmos efeitos perversos.

Estamos perante uma onda de protestos sem precedentes na saúde e Educação. Médicos e professores pedem uma valorização salarial e contratações. Isto vai criar uma pressão excessiva na elaboração do OE2024, do ponto de vista financeiro e político? O Governo pode dar-se ao luxo de privilegiar as contas públicas certas em detrimento de satisfazer estas classes sociais?

As reivindicações das classes sociais não são apenas de mais salários. Pôr mais dinheiro nestes setores tem sido feito, particularmente na área da saúde. Nos últimos três anos, o orçamento para o SNS aumentou 30% — três mil milhões euros e, no entanto, parece que os problemas não diminuíram. No caso da saúde a questão é muito complexa. Por isso se chegou a isto. O SNS é um sistema demasiado grande e complexo para ser gerido de forma tão centralizada como o foi durante décadas no país. Ainda estamos para ver se a recente reforma no modelo de governança do SNS vai dar resultados ou não. Oxalá que sim. Mas tenho as minhas dúvidas. Aqui voltamos ao processo legislativo orçamental e aos instrumentos não convencionais de controlo da despesa. São normas na lei do Orçamento e que depois costumam ser aprofundadas no decreto-lei de execução orçamental, que limitam imenso a contratação de recursos humanos e as aquisições de serviços.

Deveria haver uma maior autonomia?

Sim, claramente. As áreas de aquisições de serviços já têm sido muito fustigadas pelas cativações. Mas para além das cativações, temos estas tais normas jurídicas que inibem imenso a realização das atividades. Até há pouco tempo — não sei se o SNS ainda está abrangido por esta norma — se houvesse necessidade de um centro hospitalar contratar uma trabalhadora para substituir outra que entrou numa licença prolongada de parto, o Conselho de Administração tinha dinheiro no orçamento aprovado pela Assembleia da República, porque estava lá o dinheiro para aquela pessoa. Essa entra em licença de parto e o hospital deixa de lhe pagar salário.

Rui Baleiras, Coordenador da UTAO, em entrevista ao ECO - 25SET23
“Ainda estamos para ver se a recente reforma no modelo de governança do SNS vai dar resultados ou não. Oxalá que sim. Mas tenho as minhas dúvidas”, diz Rui Baleiras, coordenador da UTAO, em entrevista ao ECO.Hugo Amaral/ECO

É a Segurança Social que o paga.

Estamos a falar de uma situação temporária, que nem sequer cria um vínculo novo permanente de despesa com pessoal. Ora, o conselho de administração não tem autonomia, não sei se em 2023 foi excecionado, só conseguia se tivesse autorização de três membros do Governo: o ministro da tutela, a ministra com a responsabilidade da Administração Pública, e o ministro das Finanças. Como nenhuma destas pessoas assina de cruz, todos pedem papéis, pareceres, informações, consultas a base de dados, aos serviços dos seus ministérios que os assessoram e depois pedem esclarecimentos ao próprio centro hospitalar. Muitas vezes a decisão de autorizar não chega, porque se esgota o ano e o processo cai. Nos muitos hospitais que o país tem, situações destas acontecem todos os meses. Isto não é só na Saúde. O pior é que acontece em toda a Administração Pública e aí, com muito menos exceções do que tema a Saúde que já está isenta há alguns anos de cativações, os outros não. Qual é o valor acrescentado para o controlo da despesa pública ter três membros do Governo a perderem tempo, a imiscuírem-se na microgestão de uma empresa pública para saber se faz sentido um trabalhador temporário ser contratado para substituir outro? Outro exemplo grosseiro destes instrumentos não convencionais é a existência de uma norma, que tem vindo a ser repetida desde 2011. Numa empresa pública, quando sai um trabalhador altamente qualificado, porque se reformou, porque foi para o setor privado ou porque morreu, essa relação de trabalho extingue-se. O que o conselho de administração gostaria era de o substituir por alguém igualmente qualificado.

Não pode?

Não tem autonomia para isso. Só está no seu raio de autonomia fazer um procedimento concursal e pagar o salário mais baixo da categoria profissional em que essa pessoa se insere. Vai trocar uma pessoa experiente, sem desdém para ninguém, por um maçarico. Isto é uma regra que vai a mais de dez anos. É um exemplo concreto, de que muito pouca gente fala, de degradação da qualidade dos serviços prestados à sociedade.

A questão não é orçamental mas de fazer uma reforma dos procedimentos?

É a qualidade da despesa e da receita, olhar para estes procedimentos. Na UTAO não nos cansamos de chamar a atenção para isto. Faz-me pena ver que as normas entram na Assembleia com uma determinada redação que repete a do ano anterior, que por sua vez, repete a de há dois, três, quatro, cinco anos. E saem na Assembleia para a Imprensa Nacional praticamente na mesma. Não há uma reflexão crítica sobre processos. Não é naquela maratona de euforia a propósito das medidas políticas que há tempo para pensar nisso. Mas agendem um período de discussão, chamem gestores públicos. Será que a UTAO está a mentir? Está a exagerar nesta avaliação? Até passei a receber cartas de cidadãos, de dirigentes da Administração Pública

A pedir ajuda?

A pedir ajuda, exatamente. A contarem-me exemplos das suas organizações. Um dia vou começar a contá-los.

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