A Aliança Nacional para a Promoção da Saúde Mental no Local de Trabalho promove o primeiro congresso sobre o tema. Em entrevista ao ECO, a presidente frisa que o estigma é ainda o principal entrave.
Desde a pandemia que o debate em torno do cuidado da saúde mental, nomeadamente, nos locais de trabalhos se tornou “inevitável”. Mas o estigma ainda trava os avanços nessa área. Quem o diz é Filipa Palha, presidente da Aliança Nacional para a Promoção da Saúde Mental no Local de Trabalho (ASM), que promove esta sexta-feira o primeiro congresso sobre este tema.
Em entrevista ao ECO, a especialista sublinha que a saúde mental “ainda é tabu um todo o lado“, dentro e fora dos locais de trabalho. Até porque nunca houve em Portugal um investimento sério na literacia em saúde mental, avisa.
E mesmo que por diversas vezes a Ordem dos Psicólogos tenha já alertado para o peso dos problemas desse foro nas contas das empresas portuguesas, estas ainda não fazem o suficiente face ao “preconceito” e “vergonha” enraizados na cultura nacional.
Comecemos pelo retrato. Arranca esta sexta-feira o 1.º Congresso Nacional de Saúde Mental no Local de Trabalho. A saúde mental ainda é um tabu dentro das empresas?
A saúde mental ainda é um tabu em todo o lado. Estamos numa sociedade que ainda tem muito estigma relacionado ao tema da saúde mental. Todos nós, de certa maneira, temos internamente carregada a falta de literacia em saúde mental, que nos acompanha há séculos.
Como nunca tivemos nenhum investimento para aumentar a literacia em saúde mental, continuamos a ter uma visão distorcida e estigmatizada. O estigma ainda é um dos maiores obstáculos à promoção da saúde mental. Isto é uma realidade que não podemos ignorar, até quando começamos a pensar em trabalhar o tema no local de trabalho.
Como é que se desfaz esse estigma?
Trabalhando muito no combate ao estigma. Não temos histórico de campanhas sistemáticas de combate ao estigma na saúde mental. E, por outro lado, também não temos iniciativas de promoção da literacia em saúde mental. Só combatemos o estigma com conhecimento e com uma relação próxima com o que é viver um problema desta natureza.
Temos de aprender a lidar com a problemática da saúde mental, como aprendemos a lidar com qualquer outro aspeto da saúde. No domínio da promoção da saúde mental no contexto trabalho, tem de se ter claramente em consideração esta realidade [de estigma], porque é o maior obstáculo, quer seja do ponto de vista individual, quer seja do ponto de vista organizacional, quer seja do ponto de vista estrutural.
As pessoas têm medo de tocar no tema. Têm muito pouco conhecimento sobre como fazer. Este é um obstáculo estrutural. Herdamos de geração para geração o medo, a desconfiança, a vergonha de ter um problema de saúde mental e a falta de à-vontade para falar.
Não tenhamos a ilusão de que ouvir e falar é igual a acontecer alguma coisa, embora não possamos deixar de reconhecer que já estamos a fazer muito mais do que alguma vez se fez.
Sente que a pandemia contribuiu para este debate, trazendo-o mais para a ribalta?
Sem dúvida que a pandemia fez aquilo que há décadas não via acontecer. Expôs o tema como nunca tinha acontecido. Mas do falar ao fazer vai uma distância imensa. Aliás, quando falamos em literacia em saúde mental, não é só na aquisição de conhecimento. Uma das grandes áreas desta literacia em saúde mental é avaliar aquilo que são as intenções comportamentais. Falamos mais, ouvimos falar mais…
Mas ainda estamos num estágio embrionário.
Mas ainda estamos nesta fase de contemplar esta temática. Do ponto de vista das estruturas, não tenhamos a ilusão de que ouvir e falar é igual a acontecer alguma coisa, embora não possamos deixar de reconhecer que já estamos a fazer muito mais do que alguma vez se fez. É muito interessante que, nas primeiras empresas com quem começámos a trabalhar, o feedback que recebiam dos colaboradores era extraordinário.
No fundo, era a possibilidade de poder deixar de ter este meu segredo guardado só para mim. Isto que eu carrego todos os dias, quando venho trabalhar, ao tentar que ninguém perceba que tenho ansiedade ou outro problema. Se puder falar, venho muito mais descontraída.
Na pandemia, muitos trabalhadores entraram em burnout. O tema tornou-se inevitável no seio das empresas?
Tornou-se inevitável, acima de tudo, porque os nossos heróis, que são os profissionais de saúde, foram os primeiros a assumir que estavam com um problema. Nesta questão da doença mental, há um lado que as pessoas pensam que é um sinal de fraqueza. Quando percebemos que os profissionais de saúde têm um problema de saúde mental, então eu também, o comum dos mortais, posso ter.
A pandemia também teve esta função muito importante, que foi mostrar realmente que estamos todos vulneráveis. Somos todos seres humanos e todos adoecemos. Tanto adoecemos com um problema de saúde física, como um problema de saúde mental.
Da parte das empresas, sente que tem sido feito um esforço efetivo? Quais os principais instrumentos adotados nos locais de trabalho?
A primeira iniciativa, aquela que tem sido mais frequente, é disponibilizar apoio psicológico gratuito aos colaboradores. Em alguns contextos, começou-se por disponibilizar apoio dentro da empresa. As empresas ficaram espantadas porque as pessoas não recorriam. Percebeu-se que o estigma fazia com que as pessoas não gostassem de bater àquela porta, porque quem entrava naquela porta já se sabia o que ia lá fazer.
Começou-se a perceber que a disponibilidade deste tipo de apoio teria de ser feita através de entidades externas, onde fosse garantida a confidencialidade e o anonimato. Quando as pessoas percebem que têm este apoio anónimo, a adesão dispara. Por outro lado, muito do que é o trabalho de promoção da literacia em saúde mental. Aprender os primeiros socorros nesta área. Como aprender a identificar sinais e sintomas, e que estratégias de comunicação e de escuta ativa podemos ter para poder ir ter com as pessoas e abordá-las nesse sentido.
Dizia-se muito que, se ainda não conseguimos ir pelo argumento da saúde, se não conseguimos ir pelo argumento ético e do direito humano, então vamos pelo argumento económico, porque poupar dinheiro é um argumento que pesa. Mas as pessoas não conseguem ultrapassar o estigma.
Ainda assim, a Ordem dos Psicólogos já publicou vários relatórios que indicam que a saúde mental custa muitos milhões de euros todos os anos às empresas. Há consciência da parte das empresas para o peso que esse tema tem nos seus resultados?
Considero que começa a haver cada vez mais conhecimento. Temos imensos relatórios. Há uns anos dizia-se muito que, se ainda não conseguimos ir pelo argumento da saúde, se não conseguimos ir pelo argumento ético e do direito humano, então vamos pelo argumento económico, porque poupar dinheiro ou não desperdiçar acaba por ser um argumento que pesa.
Mas o estigma continua a estar lá e as pessoas não conseguem ultrapassar. Até mesmo sabendo do peso que isso tem, o estigma é tão grande. O Global burden of disorders, um estudo sobre o peso das doenças e de outros fatores, colocou a depressão no topo em todo o mundo. Há relatórios e relatórios. Há imenso trabalho feito.
Portanto, as empresas não fazem mais não porque faltam dados, mas por causa do estigma.
É o estigma e, quando falamos em estigma estrutural, quer dizer que, na própria alocação de recursos, há menos certo [para esta temática]. Felizmente, o cenário está a mudar. Todo este conhecimento está a chegar às empresas.
A propósito dos recursos, para o ano de 2024 já se prevê um abrandamento da economia e uma série de desafios nacionais e internacionais. Teme que, perante esse cenário, haja um retrocesso já feito na valorização da saúde mental?
Esse é o grande desafio. Quando decidimos fundar a ASM, foi porque é preciso o encontro dos diferentes stakeholders. Não só das empresas, não só dos locais de trabalho, mas de todos os organismos que têm um papel a desempenhar nesta área. O ter-se aberto o tema tanto é uma oportunidade como pode ter o efeito contrário. Ou seja, fala-se muito e as pessoas pensam que se faz muito.
Mas fica-se pelas palavras?
Foi uma moda e as modas passam. Só podemos fazer com que a moda não passe, se realmente nos juntarmos e continuarmos a trabalhar no sentido de não deixar cair este tema. Para que isso aconteça, precisávamos de ter um espaço onde a sociedade civil também se manifestasse e tivesse uma voz. É isso que a ASM pretende ser.
Num cenário de crise, sabemos que cortamos naquilo que não está na agenda, ou seja, nem trazemos para a agenda aquilo que nunca lá esteve. E cortamos naquilo que foi o último a chegar à agenda. Temos de criar a força de não sair da agenda. E temos de criar as sinergias para estarmos alinhados num trabalho contínuo e sistemático de diálogo.
Vamos ao congresso. No programa, não se cingem ao papel do médico do trabalho ou do psicólogo. Terão também um painel dedicado ao papel da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT). Que contributo pode dar o inspetor do trabalho para o cuidado da saúde mental dos trabalhadores nos locais de trabalho?
Tradicionalmente, o papel do inspetor do Trabalho está muito focado nos perigos de outra natureza. Mas há muitas outras dimensões do trabalho que afetam a nossa saúde mental. A sensibilidade para esta temática também faz parte daquilo que é ir avaliar até que ponto o local de trabalho é promotor ou tem riscos psicossociais nas suas diferentes dimensões. O inspetor do trabalho tem um papel fundamental ao ter sensibilidade para estas dimensões daquilo que são os riscos psicossociais.
Mas isso requer formação desses inspetores.
É preciso que sejam formados nesse sentido. Depois da pandemia, com as novas formas de trabalho, há também checklists de avaliação que vão ter de se adaptar. Se calhar vai ser diferente de antigamente, quando era só picar o ponto e víamos os registos. Se calhar aquilo que era a forma de inspecionar agora vai ser diferente. Já temos um protocolo com a ACT para trabalhar nestas questões.
Por exemplo, na Inglaterra, houve uma campanha durante dez anos de combate ao estigma. É evidente que isso tem um impacto. Em comparação, em Portugal, pouco se falava ou nada de saúde mental. O silêncio era ensurdecedor.
E como compara Portugal, e os locais de trabalho portugueses, com os outros países, nesta questão da valorização da saúde mental?
Por exemplo, na Inglaterra, houve uma campanha durante dez anos de combate ao estigma. Durante dez anos, a população como um todo foi exposta a campanhas e ações de sensibilização por todo o lado. Havia um programa específico nas empresas. Estamos a falar de dez anos de sensibilização. É evidente que isso tem um impacto. Em comparação, em Portugal, pouco se falava ou nada de saúde mental. O silêncio era ensurdecedor. Não quer dizer que em Inglaterra o problema esteja resolvido.
Só estão um bocadinho à frente.
Estão um bocadinho à frente. É importante termos isso em consideração. Há muito conhecimento que vai ser muito útil, mas também temos de ter em atenção a especificidade do nosso contexto. Não vale a pena ir lá buscar o conhecimento e achar que este modelo vai encaixar aqui. Temos de ir dando passos, aproveitando tudo aquilo que é o conhecimento já existente, mas sempre com muito cuidado para perceber que não vai ser um copy-paste [copia e cola].
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“Mesmo sabendo do peso da saúde mental nas contas das empresas, estigma ainda é tão grande”
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