Mesmo que chova, agora já é tarde

  • João Silva Lopes
  • 1 Fevereiro 2024

Urge, agora, para o futuro, prosseguir com o espírito reformista, romper com a inércia e planear uma gestão eficiente dos recursos hídricos.

A Península Ibérica é a região da Europa mais afectada pelos efeitos das alterações climáticas: desertificação, seca e incêndios florestais são a face mais visível de um flagelo que impele há muito uma acção imediata. A variação da precipitação anual na nesta região tem sido entre 20 e 50 mm nas últimas décadas, com tendência a agravar-se. Portugal, em particular, apresenta índices de escassez (avaliação das disponibilidades versus necessidades) distintos e mais acentuados no Sul (Oeste, Sado, Mira, Guadiana e Algarve, região que regista um índice de escassez de 27%).

Perante este cenário assistiu-se a uma total inércia do Governo, não obstante os sinais evidentes e os alertas constantes: as conclusões do relatório final do Grupo de Apoio à Gestão do PENSAAR 2020 foi ignorado, o Programa Nacional para o Uso Eficiente da Água (PNUEA – 2005) encontra-se parado desde 2015, o Plano Estratégico para o Abastecimento de Água e Gestão de Águas Residuais e Pluviais (PENSAARP 2030), objecto de consulta pública há quase 2 anos, só foi aprovado in extremis no mês passado, os Planos de Eficiência Hídrica não têm qualquer execução, nada foi feito relativamente às perdas de água nas redes de abastecimento que rondam os 30%, utiliza-se apenas 1,2% de água residual tratada, a dessalinização tarda em sair do PowerPoint…

À inércia, o Governo somou falta de planeamento, desviando o PRR de um plano estratégico robusto e eficaz para a promoção do uso eficiente da água.

À inércia e falta de planeamento, o Governo adicionou, ainda, “superioridade intelectual” no Outono e “optimismo irritante” no Verão:

No Outono (Outubro de 2022), na conferência de imprensa após a 12.ª reunião da Comissão Permanente de Prevenção, Monitorização e Acompanhamento dos Efeitos da Seca, o Ministro do Ambiente respondeu aos alertas lançados pelo Presidente do PSD para a urgência da tomada de medidas, recusando a ideia de que o Governo chegou tarde ao tema da seca. E foi mais longe, acrescentando que seria o Presidente do PSD a ter chegado tarde ao tema e que devia “aprofundar um bocadinho o seu conhecimento”.

No Verão (Agosto de 2023), após a 16.ª reunião desta Comissão, numa altura em que 97% do território se encontrava em seca meteorológica, o Ministro do Ambiente não deu mostras de estar preocupado com a situação, considerando que há um ano o País estava em pior situação, uma vez que “100% do território estava em seca severa ou extrema”(!). Nessa altura, o Ministro do Ambiente manifestou o seu optimismo referindo que “as previsões apontam para 40 a 50% de probabilidade de que venha a chover acima do normal e já se espera alguma precipitação na próxima semana”.

A “estratégia” foi, portanto, devolver para os utilizadores os problemas do sector, esperando pela chuva – e na falta dela – que os consumos reduzissem…

Enquanto isso, o País continuava a assistir ao cenário confrangedor do abastecimento de populações com autotanques. O relatório do grupo de trabalho de assessoria técnica à Comissão Permanente de Prevenção, Monitorização e Acompanhamento dos Efeitos da Seca concluiu que “no mês de agosto de 2023, foram reportadas 1205 operações de abastecimento com recurso a autotanques (…), valor que corresponde a um aumento de cerca de 68% face ao mês precedente e de cerca de 4% comparativamente com a média de igual período de anos anteriores”.

Perante a inércia, falta de planeamento e “estados de alma” do Governo, o PSD através do seu Presidente, no terreno, e do Grupo Parlamentar, na Assembleia da República, continuaram a alertar reiteradamente para o problema e necessidade de tomada de medidas urgentes.

Esta perseverança culminou com aprovação, em sede de discussão da Lei do OE para 2024, de várias propostas do PSD sobre recursos hídricos: criação de um programa para a redução das perdas de água nas redes de abastecimento público, criação de um programa para a utilização de águas residuais tratadas no combate a incêndios rurais, modernização do Sistema Nacional de Monitorização dos Recursos Hídricos, elaboração de um relatório do estado das águas subterrâneas, de um projecto-piloto de recarga artificial de aquíferos e de um programa de acção para a digitalização integral do ciclo da água.

O PSD sempre pautou a sua acção, no passado como no presente, por apresentar medidas e implementar as reformas com impacto a longo prazo de que o País necessitava: foi assim com a transformação nos sectores do abastecimento de água, saneamento e tratamento de resíduos na esfera do Grupo Águas de Portugal com base num amplo plano de investimentos, com a criação da Lei da Bases do Ambiente, a Reforma da Fiscalidade Verde ou a reforma do sector das águas, apenas para citar alguns exemplos.

Urge, agora, para o futuro, prosseguir com o espírito reformista, romper com a inércia e planear uma gestão eficiente dos recursos hídricos baseada em 4 pilares fundamentais:

  • Digitalização das redes públicas e eliminação de perdas com recurso, sempre que se mostre mais eficiente, ao sector privado através de contratos performance, fim da discriminação do interior no preço da água e aplicação de tarifas sazonais em zonas do País em que se verificam variações acentuadas de utilizadores no Verão (como no Algarve em que a população mais que duplica), permitindo reduzir as tarifas dos residentes fora da época estival – a reforma do sector com vista à harmonização tarifária e reforço da coesão social e territorial do País, revertida em 2016 sem qualquer sustentação técnica, foi uma oportunidade perdida!
  • Aumento da reutilização de águas residuais tratadas para 25% na agricultura, indústria, combate a incêndios, limpeza urbana e espaços verdes numa lógica de economia circular – actualmente pouco ultrapassam 1%!
  • Investimento em centrais de dessalinização integradas numa estratégia sustentável de energias renováveis – a que está planeada (e nunca mais avança) para o Algarve é insuficiente!
  • Desenvolvimento de sistemas de armazenamento de água com a criação de reservatórios (charcas, açudes e pequenas barragens), definição de caudais ecológicos à luz do cenário de stress hídrico e interligações, no caso do Algarve, ao Guadiana.

Em particular, a resolução das perdas dos sistemas de abastecimento e a reutilização de águas residuais tratadas devem ser assumidas, uma vez por todas, como inadiáveis e objecto de uma acção forte, reformista e disruptiva como a que foi encetada nos anos 80 e 90 do século passado pelos Governos do PSD com as citadas reformas dos sectores da água, resíduos e saneamento que perpetuaram um legado insofismável no sector.

E a aposta no desenvolvimento e adopção de novas tecnologias em projectos de maior escala como a dessalinização deve ser assumida como prioritária, com a necessária mitigação ou internalização das externalidades negativas (consumo de energia do processo de osmose inversa e a produção de salmoura) e sem prejuízo do objectivo de garantir a sustentabilidade do sector.

Basta olhar para o lado: Espanha já aplica tarifários sazonais, tem em marcha um ambicioso projecto de digitalização dos sistemas de abastecimento de água para aumentar a eficiência e reduzir perdas bem como a construção de várias centrais de dessalinização.

Por cá, com tudo por fazer, o Governo seguiu a estratégia habitual, semelhante à que utilizou com o problema da habitação: recorrer à Comissão Europeia a pedir ajuda para um “programa europeu de promoção dos recursos hídricos” (ReWater EU)…

E agora, na 18.ª reunião da Comissão Permanente de Prevenção, Monitorização e Acompanhamento dos Efeitos da Seca, o Governo veio apresentar um Plano de Contingência para o Algarve em que a principal solução apresentada é o reforço da capacidade de captação de água nos aquíferos que mais não é que uma solução provisória que se esgotará a curso prazo.

Da letargia emergiu a revelação de que “se nada fosse feito relativamente à moderação do consumo, se chegaria ao final do ano sem água para abastecimento público no Algarve”!

E com isso, cortes de água de 25% na agricultura e 15% no sector urbano, penalizando um sector tão relevante no Algarve como a Agricultura e um sector tão relevante para o País como o Turismo.

Mas não será o Governo que merece ser penalizado?

  • João Silva Lopes
  • Coordenador do Conselho Estratégico Nacional do PSD para a área do Ambiente e Sustentabilidade

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