“Empresas do turismo já levam tão a sério atração de trabalhadores como de clientes”

Crise na habitação também está a afetar o emprego no turismo. António Marto adianta que alojamento faz cada vez mais parte do pacote de benefícios oferecido aos trabalhadores.

Dos salários mais baixos ao trabalho por turnos, as condições de trabalho no turismo português ainda têm margem para melhorar, mas hoje já são mais competitivas do que há uns anos. O retrato é traçado por António Marto, presidente da Associação Fórum Turismo e fundador da Bolsa de Empregabilidade, um projeto especializado no recrutamento de recursos humanos para empresas do setor turístico, através de feiras e de uma plataforma online.

Em entrevista ao ECO, o responsável conta como tudo começou, não poupa críticas às condições laborais oferecidas aos trabalhadores do turismo, mas deixa claro também que hoje, uma pandemia depois, as empresas já olham para os trabalhadores de maneira diferente: captá-los já é tão relevante, quanto atrair clientes, sobretudo face à escassez de mão de obra.

António Marto debruça-se ainda sobre o impacto da crise na habitação no emprego turístico. E deixa um desejo: que Portugal seja não só o melhor destino turístico do mundo, mas também o melhor destino para trabalhar em turismo no mundo.

Na BTL, as empresas estavam presentes numa ótica de promoção e venda dos seus serviços, e não de identificação e contratação de talento. Pensei que, se estava a sair de uma feira de turismo com aquela frustração, todos aqueles que estivessem na mesma condição que eu, de sem recém-formado, sairiam também com a mesma frustração.

António Marto

Fundador da Bolsa de Empregabilidade

A Bolsa de Empregabilidade nasceu em 2016. Comecemos por aí. O que o levou a criar este projeto? E de que modo difere das outras empresas e serviços de recrutamento que já existiam?

A Bolsa de Empregabilidade surgiu em 2016, quando ainda era recém-licenciado na área de turismo. Em 2015, tinha percorrido os corredores da BTL [Bolsa de Turismo de Lisboa] e constatei que, numa tentativa de abordagem às empresas para entrega de currículo ou numa tentativa de saber como poderia ser um futuro colaborador dessas empresas, quem me respondia não sabia dar essa informação. Na BTL, as empresas estavam presentes numa ótica de promoção e venda dos seus serviços, e não de identificação e contratação de talento. Pensei que, se eu estava a sair de uma feira de turismo com aquela frustração, todos aqueles que estivessem na mesma condição que eu, na qualidade de estudantes ou sem recém-formados, sairiam também com a mesma frustração. No ano seguinte, dentro da Associação Fórum Turismo, essa perceção levou-me a abordar a BTL e a desafiá-los a criar um espaço de identificação e contratação de talentos.

E como correu essa primeira edição da Bolsa de Empregabilidade?

Em 2016, aconteceu a primeira Bolsa de Empregabilidade, um projeto muito tímido, ainda sem saber se teria capacidade de vingar, porque este não era o mindset da BTL. Em 2016, tivemos 20 empresas e um universo de 400 ofertas de trabalho. O projeto foi validado não só pelas empresas, mas também pelos candidatos. Foi o momento de alavancagem do projeto.

Sete anos depois, hoje têm várias feiras no país e até uma plataforma online. Que balanço faz destes primeiros anos?

Tem sido extraordinário. O melhor balanço que se pode fazer é constatar os exemplos reais. Por exemplo, hoje trabalhamos com muita proximidade com várias empresas e algumas delas têm ao seu serviço profissionais encontrados nas bolsas de empregabilidade. Funcionamos como um marketplace entre aquilo que é a procura – as empresas à procura de candidatos – e o lado da oferta – que são as pessoas que procuram oportunidades de trabalho. Estamos no meio, fazendo uma interface entre o lado da procura e o lado da oferta. Esta união não é assim tão simples quanto isso. O nosso radical principal de trabalho é offline, mas o online é uma tendência. A pandemia veio acelerar essa tendência.

Apesar dessa aposta na digitalização, o offline é ainda, então, o vosso ramo mais forte.

Sim, e temos desenvolvido o offline, nomeadamente, em termos de quantidade, isto é, o número de empresas [nas feiras] cada vez é maior e em cada evento presencial temos mais candidatos. Em 2016, a primeira feira centrou-se em Lisboa. Manteve-se assim até 2022. Nesse ano, teve a sua primeira ramificação. Fomos para o Porto. No ano seguinte, fomos para o Algarve e Centro. Já este ano temos a primeira edição no Alentejo.

Disse que o número de candidatos está a aumentar, mas fala-se muito em escassez de mão de obra. Afinal, o problema está resolvido?

Ainda é um grande problema. Quando há falta de trabalhadores, há que se tentar minimizar essa escassez. Sem dúvida que o que está na base dessa falta de trabalhadores motivados é a questão da remuneração. O setor do turismo prima por uma remuneração, em média, 35% inferior à remuneração média bruta do total da economia. O turismo tem também uma taxa de desistência de aproximadamente 27% dos trabalhadores. Ou seja, entram no setor do turismo, mas acabam por abandonar por falta de motivação e, muitas das vezes, até por dificuldades no exercício da profissão. Além disso, 34% dos trabalhadores que ainda vão ficando afirmam que se sentem um pouco inseguros. Só há uma forma de contrariar estes números: melhorar a relação entre a entidade e o colaborador, não só na sua base salarial, mas também em todas as condições de segurança, conforto, evolução e progressão. A Bolsa de Empregabilidade também tem vindo a trabalhar isso junto das empresas,

E há abertura por parte das empresas do turismo para ir fazendo essa melhoria das condições oferecidas aos trabalhadores?

Sentimos cada vez mais a adesão por parte das empresas em quererem profissionalizar a sua pesquisa e captação de força de trabalho. As empresas já levam tão a sério a captação do colaborador como a captação do cliente. Em 2016, o grande foco era a captação do turista, do cliente. Hoje estamos cada vez mais com uma igualdade entre situações: tão importante quanto a captação do turista é a captação do colaborador.

O turismo trabalha muito por turnos. As pessoas hoje querem igualdade de qualidade de trabalho face a outros setores de atividade. Se não for assim, não conseguimos atrair novos colaboradores.

António Marto

Fundador da Bolsa de Empregabilidade

Disse que os salários no turismo ainda comparam mal com a média portuguesa. A escassez de talento não tem puxado por eles?

A escassez faz com que as empresas tenham de colocar maior empenho na atratividade e na retenção das pessoas que já colaboram com elas. É claro que isso só se faz melhorando as condições salariais. Mas não só. Passa também muito pela adaptação àquilo que é o modo de vida das pessoas. O turismo trabalha muito por turnos. As pessoas hoje querem igualdade de qualidade de trabalho face a outros setores de atividade. Se não for assim, não conseguimos atrair novos colaboradores.

Durante muito tempo falou-se do turismo como um setor onde predominam a precariedade, os horários desregulados, o desemprego sazonal. Esse é ainda o cenário ou tem vindo a melhorar, numa tentativa de atrair mãos de outros setores?

Tem vindo a melhorar. Na altura da pandemia, o turismo perdeu muitos trabalhadores, por exemplo, para a distribuição e para as grandes superfícies. Hoje a tendência é inverter o fluxo. O turismo aprendeu que tem de dar condições equiparadas a outras áreas de atividade. Os trabalhadores que migraram para outros setores de atividade têm voltado progressivamente para o turismo, porque é um setor ainda de muita humanização. É difícil encontrar outros setores em que exista uma proximidade tal entre o colaborador e o cliente. E apesar das dificuldades, é um setor de atividade que permite chegar a qualquer posto de trabalho e permite uma evolução dentro das empresas, se existir um espírito de resiliência e inovação. Acredito que as empresas na área do turismo estão muito disponíveis a estar ao lado de quem está ao lado delas.

Noutros setores, a escassez de mão de obra tem sido mitigada com a imigração. No turismo, que peso tem essa “solução”?

Ocupa um espaço muito expressivo, mas ainda existe alguma resistência das empresas. Na última Bolsa de Empregabilidade de Lisboa, acredito que 50% do público que passou à procura de oportunidades era de nacionalidade estrangeira. Por exemplo, em relação à comunidade asiática, as empresas ainda se sentem um pouco reticentes na contratação. É claro que existe um período de adaptação. A língua é, claro, uma das barreiras. Mas poderá vir daqui uma das soluções para alterar a escassez de força de trabalho no setor do turismo. É isto que também temos vindo a dizer às empresas: preparem-se que esta será uma tendência cada vez mais forte nos próximos anos, tendo em conta que se prevê que em Portugal sejam criados cerca de 193 mil empregos nos próximos dez anos na área do alojamento, restauração e similares. Só será possível combater esta necessidade com a força de trabalho proveniente de outros países.

Que perspetivas tem para 2024, em relação a contratações na área do turismo?

Há dados que nos fazem estar otimistas quanto ao crescimento do turismo e, por sua vez, quanto ao número de oportunidades de emprego. As pessoas vão continuar a querer viajar, independentemente da inflação, das próprias guerras e da instabilidade existente nos diferentes pontos do mundo. Portugal tem vindo a marcar aquilo que é o saber receber e tem uma boa relação de qualidade-preço. Estes ingredientes fazem crer que Portugal vai continuar a crescer ao nível turístico. Mas isso só será possível com pessoas para trabalhar nas empresas.

A crise na habitação tem afetado de algum modo a disponibilidade de trabalhadores?

Sem dúvida. O que tem vindo a ajudar a atenuar esta dificuldade de encontrar profissionais é a flexibilidade que existe no aspeto de as pessoas poderem trabalhar em home office [a partir de casa]. Mas o setor do turismo precisa das pessoas de forma presencial, ou seja, o que é uma oportunidade para outros setores, no turismo não acontece. Vemos, cada vez mais, alguns destinos, nomeadamente a Madeira, a combinarem o trabalho e o alojamento. Este será o ingrediente de sucesso para podermos ter uma empregabilidade de maior sucesso, que é garantir condições de trabalho com condições de alojamento. Mas claro que não está à mão de qualquer empresa. É preciso ter alguma estrutura financeira para conseguir ter a combinação entre os dois mundos.

O meu desejo é que Portugal seja não só o melhor destino turístico do mundo, mas também o melhor destino para trabalhar em turismo no mundo.

António Marto

Fundador da Bolsa de Empregabilidade

Este ano têm cinco feiras de emprego agendadas. Que vantagens é que vê nas feiras presenciais face ao recrutamento online?

O turismo ainda é uma área onde importa muito a relação humana. Estas Bolsas de Empregabilidade primam por uma característica, que é o fazerem um match cara a cara. Existe uma leitura imediata daquilo que é o candidato e daquilo que é o seu interesse em trabalhar na entidade empregadora. É meio caminho andado para, depois, numa próxima entrevista, já possa haver, quem sabe, uma possível proposta de trabalho. Colocámos objetivos quantitativos quanto ao número de presenças de empresas nas bolsas que estão previstas para este ano e foram atingidos. Estão praticamente todas completas.

Em concreto, quantas empresas vão estar em cada uma das feiras?

No Algarve, tínhamos definido 70 empresas. Estamos com 75 empresas. No Alentejo, a primeira edição da Bolsa de Empregabilidade irá acontecer em Évora. Definimos 50 empresas e 50 já estão confirmadas. Em Lisboa, estamos com 100 empresas confirmadas. É o maior número de sempre. No Porto, estamos com 65 empresas, e não conseguimos aumentar mais o número de empresas no local onde acontece a feira. No Centro, estamos com 45 empresas.

Como é que vê o futuro do trabalho no turismo?

O meu desejo é que Portugal seja não só o melhor destino turístico do mundo, mas também o melhor destino para trabalhar em turismo no mundo. Hoje é uma utopia, mas, se queremos estar entre os melhores, temos de trabalhar para isso.

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