No início da pandemia, a Venezuela lançou uma ofensiva em Lisboa para desbloquear milhões do Novobanco e desencadeou uma guerra de pareceres jurídicos em Portugal. Fundos saíram mesmo do banco, mas...
- Este artigo faz parte de uma série de cinco episódios da “Guerra pelos milhões da Venezuela” e que conta os bastidores, disputas, reviravoltas e intrigas em torno dos fundos de mais de 1,4 mil milhões de euros que as empresas públicas venezuelanas guardam no Novobanco.
O mundo parou em março de 2020 quando a maior pandemia em décadas obrigou ao encerramento de fronteiras e à paralisação de quase toda a atividade económica a nível global, numa dimensão sem paralelo na história.
Os mercados financeiros viveram dias frenéticos. A 20 de abril, o preço do petróleo caiu pela primeira vez para valores negativos nas principais praças mundiais, atingindo os -40 dólares em Nova Iorque. Os investidores pagaram para se livrarem dos barris.
Para a Venezuela, cujas receitas provêm quase exclusivamente do petróleo, 2020 foi um ano particularmente dramático. Ainda que guarde as maiores reservas do mundo, as exportações petrolíferas colapsaram nesse ano, recuando para os níveis mais baixos em mais de oito décadas, depois de anos de desinvestimento e má gestão no setor e agravadas pelas sanções dos EUA e pela pandemia.
Como consequência, as reservas de moeda estrangeira afundaram num momento em que ter dólares e euros era mais crucial do que nunca para comprar equipamentos de saúde e medicamentos ao estrangeiro para ajudar a população a responder à crise pandémica.
Com ativos no exterior avaliados em 30 mil milhões de dólares, contas do próprio Nicolás Maduro, o esforço para recuperá-los ganhou outro sentido de urgência quando em todo o mundo se fazia contagens diárias do número de infetados e mortes por causa da pandemia. Mas em Caracas já estava em curso uma ofensiva para trazer de volta a riqueza que estava fora do país.
O primeiro alvo foram as reservas de ouro avaliadas em cerca de dois mil milhões de dólares guardadas nos cofres do Banco de Inglaterra. A Venezuela já tinha tentado desbloquear as barras de ouro, mas o pedido fora recusado porque o Governo britânico, juntamente com outros 60 de todo o mundo, não reconhecia Maduro como Presidente legítimo. Em maio de 2020, quando o banco central venezuelano avançou com um processo em Londres, havia um novo argumento e mais sensível: o dinheiro da venda do ouro seria encaminhado para o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) para financiar o combate ao coronavírus.
As autoridades da Venezuela não tardaram a vir a Portugal. No mês seguinte, a PDVSA e outras oito empresas públicas venezuelanas lançaram uma ação no tribunal de Lisboa para que fossem libertados mais de mil milhões de euros que o Novobanco recusava transferir.
Foi um derradeiro esforço que poderá ter valido de pouco para o regime de Maduro. Por várias vezes já se tinha pronunciado sobre esta disputa, tendo apelado ao Governo português para descongelar os fundos. Um apelo que já tinha merecido resposta do então ministro dos Negócios Estrangeiros português Augusto Santos Silva: “Os bancos não recebem ordens dos governos. (…) As disputas resolvem-se nos tribunais”. Assim foi.
Venezuela pede 1,3 mil milhões e 7% de juros de mora
Para a decisão do banco português de bloquear os fundos venezuelanos — que entraram nos seus cofres na década anterior por via das relações de proximidade de Ricardo Salgado com o regime de Hugo Chávez — contribuiu em grande medida a declaração de apoio do Governo de António Costa a Juan Guaidó a 4 de fevereiro de 2019.
Embora Maduro tenha conquistado as eleições em 2018, o processo foi considerado fraudulento por grande parte da comunidade internacional, incluindo Portugal, que através de um comunicado do Ministério dos Negócios Estrangeiros reconheceu o então líder da Assembleia Nacional venezuelana como Presidente interino com a responsabilidade de desencadear um novo processo de eleições livres no país:
“O Senhor Juan Guaidó possui a necessária legitimidade para assegurar uma transição pacífica, inclusiva e democrática, que permitirá evitar uma escalada da violência no país e restituir aos venezuelanos o poder de decidir livremente o seu destino, com vista a conduzir o seu país a um caminho de paz e prosperidade“.
Na Venezuela, coexistiam então duas fações reclamando serem legítimos representantes do Governo: de um lado Maduro com o poder efetivo e do outro Guaidó com o poder reconhecido internacionalmente. Para o Novobanco a situação de indefinição política e institucional em Caracas criava “dúvidas fundadas” sobre a quem devia entregar aqueles fundos.
O banco já tinha decidido cortar as relações comerciais históricas com a Venezuela e ficou numa posição de mais melindrosa quando cada um dos lados deu instruções contrárias relativamente ao destino a dar ao dinheiro: Maduro apontou contas em bancos na Rússia, Cazaquistão e Turquia; Guaidó queria centralizar os fundos numa conta do Banco Central da Venezuela na Fed de Nova Iorque. Nada feito e os fundos ficaram retidos — até porque por esta altura já existem medidas judiciais que bloqueavam o acesso a eles.
Não restou outra alternativa à PDVSA e mais oito entidades estatais venezuelanas — Bandes, Bandes Uruguay, PDVSA Petróleo, Petrocedeño, PDVSA Services, Petromonagas, Petropiar e Bariven — senão lutar nos tribunais portugueses e foi neste contexto que vieram à capital portuguesa em junho de 2020 para descongelar depósitos num montante superior a 1,3 mil milhões.
Estrutura da PDVSA em 2019
O argumento dos responsáveis venezuelanos – que para este processo contra o Novobanco tinham mandatado a Abreu Advogados — era relativamente simples: “A posição adotada pelo Governo português no plano estritamente político, em relação ao ato de autoproclamação de Juan Guaidó, não causou, nem podia causar, qualquer impacto legal ou efeito jurídico”, de acordo com o processo consultado pelo ECO.
Ou seja, segundo a acusação, o banco “não podia ter tido a veleidade de pretender determinar quem tem efetivamente poderes” na Venezuela e colocou “em pé de igualdade os representantes legais” das empresas venezuelanas “nomeados pelo Governo oficial e efetivo da Venezuela, e os representantes de uma fação política dissidente sem que houvesse qualquer fundamento jurídico”.
Nesse sentido, PDVSA e companhia pediram ao tribunal para que os gestores nomeados por Maduro fossem reconhecidos como legítimos representantes daquelas entidades e ainda condenar o Novobanco à restituição de cerca de 1,33 mil milhões de euros à Venezuela, acrescidos de juros de mora de 7% — cuja fatura rondava os 13 milhões na altura.
Guerra de pareceres
Para dar suporte à sua tese, as empresas venezuelanas apresentaram pareceres de dois pesos pesados do Direito em Portugal: Carlos Blanco de Morais (Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa) e Jorge Pereira da Silva (Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa).
Ambos concluíram no mesmo sentido:
“O reconhecimento meramente político da autoproclamação de Juan Guaidó, nenhum impacto ou efeito jurídico pode ter na relação estabelecida entre pessoas coletivas venezuelanas, como os autores, e uma sociedade comercial como o Novobanco, nem mesmo na sua posição perante os tribunais portugueses”, defendeu o primeiro (numa ação anterior que tinha sido interposta pelo Bandes).
“A ordem jurídica portuguesa não atribui qualquer relevância ou efeito jurídico ao ato de autoproclamação de Juan Guaidó como Presidente interino da Venezuela. Desde logo porque o poder (…) continua a ser exercido pelo Governo do Presidente Maduro, que detém o controlo político efetivo e a administração do aparelho do Estado. (…) Depois, porque o próprio ato de autoproclamação de Juan Guaidó como Presidente interino foi declarado inconstitucional no seio da própria ordem jurídica venezuelana, não produzindo assim, por maioria de razão, qualquer eficácia extraterritorial”, concluiu o segundo.
A contestação da parte do Novobanco foi submetida meses depois, em outubro de 2020, quando a instituição financeira e António Ramalho voltavam a estar sob a mira do Parlamento. Os deputados preparavam-se para pedir uma auditoria do Tribunal de Contas sobre os negócios imobiliários e de malparado supostamente ruinosos e as suspeitas de que o banco estava a atuar no sentido de maximizar os pedidos de dinheiro ao Fundo de Resolução.
Nesse mesmo mês António Ramalho viu os americanos da Lone Star — que controlam 75% do Novobanco — renovarem-lhe o mandato à frente do banco, num claro sinal de apoio quando o gestor estava sob fogo cruzado do Governo, Assembleia da República e Banco de Portugal.
Aos pareceres apresentados pela Venezuela, o banco defendeu-se com um parecer da Sérvulo, subscrito por nomes com enorme notoriedade como Sérvulo Correia, Rui Medeiros e Vasco Becker-Weinberg, com mais de 80 páginas.
As conclusões foram bem diferentes em relação aos efeitos jurídicos da declaração do Governo de António Costa de fevereiro de 2019 sobre o poder vigente na Venezuela:“A posição assumida pelo Governo português não é juridicamente inócua”.
“No exercício das suas competências que lhe cabem e no quadro da Constituição, [o Governo] exprimiu uma inequívoca posição” de não reconhecer a legitimidade do presidente Nicolás Maduro e de reconhecer Juan Guaidó como Presidente interino da Venezuela com um encargo específico e poderes limitados, sublinharam os três advogados.
Por outro lado, alertaram para as “consequências muito pesadas” para o Novobanco caso fosse obrigado a transferir o dinheiro de acordo com as instruções dos representantes de Maduro.
Isto é, havendo o reconhecimento de Juan Guaidó pelo Governo português e da necessidade de convocar eleições na Venezuela, o Novobanco devia preservar, no período de transição, os ativos e bens do Estado venezueluano, sob pena de “ter de repetir o pagamento” dos fundos, defenderam os advogados da Sérvulo.
Assim, concluiu a Sérvulo, só “havendo uma orientação clara em sinal contrário” do Governo português em relação à liderança da Venezuela é que o Novobanco poderia acatar as ordens das empresas venezuelanas e desbloquear os fundos. Estas palavras seriam premonitórias em relação ao desfecho deste caso três anos mais tarde, no verão de 2023.
Mas logo a seguir ao Novobanco ter respondido à ação da PDVSA, quase mil milhões de euros da Venezuela haveriam mesmo de sair do banco português. Não para as contas que a petrolífera e as outras empresas venezuelanas há muito tempo pretendiam. Foram parar aos cofres do Estado português.
- Este artigo faz parte de uma série de cinco episódios da “Guerra pelos milhões da Venezuela” e que conta os bastidores, disputas, reviravoltas e intrigas em torno dos fundos de mais de 1,4 mil milhões de euros que as empresas públicas venezuelanas guardam no Novobanco.
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#2. O contra-ataque da PDVSA ao Novobanco
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