#5. Cobrador do fraque bate à porta de Maduro

Governo português ajudou a desbloquear fundos venezuelanos, mas dificilmente Nicolás Maduro verá um cêntimo do dinheiro que guarda em Portugal. A luta agora é dos credores.

  • Este artigo é o último de uma série de cinco episódios da “Guerra pelos milhões da Venezuela” e que conta os bastidores, disputas, reviravoltas e intrigas em torno dos fundos de mais de 1,4 mil milhões de euros que as empresas públicas venezuelanas guardam no Novobanco.

A boa notícia chegou à Venezuela no verão do ano passado: o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa deu razão à PDVSA e outras oito empresas públicas venezuelanas e ordenou o Novobanco a libertar fundos de 1,3 mil milhões de euros que guardavam há anos no banco português.

Em Caracas, celebrou-se a decisão do tribunal lisboeta como “uma clara e contundente vitória” contra os “poderes internacionais (…) que queriam apropriar-se de recursos que são de todos os venezuelanos e causar sofrimento à população”, segundo declarou o Ministério das Relações Exteriores da Venezuela em agosto.

Mas, o que se pensava que seria um final feliz para o regime de Nicolás Maduro, depois de anos de uma luta incessante para recuperar o dinheiro, os esforços terão sido em vão ao fim de contas.

Gomes Cravinho ajuda a “desbloquear” 1,3 mil milhões

A decisão do tribunal de Lisboa de mandar o Novobanco restituir os fundos às empresas públicas venezuelanas teve uma contribuição decisiva do Governo de Portugal.

Se antes Lisboa reconhecia Juan Guaidó como presidente interino, conforme a declaração do Governo português emitida a 4 de fevereiro de 2019, agora já o via apenas como um “‘interlocutor’ privilegiado da oposição democrática venezuelana”, como deu nota o chefe de gabinete do Ministério dos Negócios Estrangeiros a 19 de outubro de 2022, após o tribunal ter exigido ao ministério de João Gomes Cravinho oficializar a nova posição do Estado português em relação à presidência da Venezuela.

O tribunal mandou o Governo oficializar uma nova posição porque as circunstâncias políticas em Caracas também tinham mudado substancialmente entre 2019 e 2022.

A Assembleia Nacional passou para as mãos do partido de Nicolás Maduro nas eleições que tiveram lugar em dezembro de 2020, ainda que o processo eleitoral tenha sido considerado (novamente) ilegítimo pela União Europeia.

Quanto a Guaidó, a impossibilidade de exercer um poder efetivo levou a coligação de partidos da oposição a deixar cair o seu governo interino já no final de 2022, forçando-o a um exílio nos EUA por tempo indeterminado. Agora, se regressar a casa será detido por crimes de traição à pátria, usurpação de funções, entre outros.

João Gomes Cravinho Lusa

Por que razão a clarificação do Governo português em relação à liderança da Venezuela foi importante para desbloquear os fundos?

A nova posição do Ministério dos Negócios Estrangeiros (que estava alinhado com as conclusões do conselho de Negócios Estrangeiros da União Europeia de 2021) ajudou a desfazer as dúvidas que existiam em relação aos legítimos beneficiários dos fundos das entidades estatais venezuelanas.

Até então, dois centros de poder na Venezuela diziam ser legítimos representantes legais das empresas públicas e as duas fações colidiram de frente quando instruíram o Novobanco a transferir o dinheiro para contas na Rússia, Cazaquistão e Turquia (fação Maduro) e para a Reserva Federal de Nova Iorque (fação Guaidó).

Com Portugal a reconhecer implicitamente Maduro como presidente da Venezuela, o tribunal português decidiu no último dia de julho de 2023 que o banco tinha de proceder “à devolução dos montantes de capital” às nove entidades que tinham colocado a ação em 2020: Bandes, Bandes Uruguay, PDVSA, PDVSA Petróleo, Petrocedeño, PDVSA Services, Petromonagas, Petropiar e Bariven, num total de 1,34 mil milhões de euros.

Em razão de desenvolvimentos políticos subsequentes, e de acordo com as Conclusões do Conselho de Negócios Estangeiros da União Europeia de 25 de janeiro de 2021, Portugal, juntamente com os restantes Estados-Membros da União Europeia, passou a considerar Juan Guaidó apenas como um “interlocutor privilegiado” da oposição democrática venezuelana.

Pedro Carneiro

Chefe de Gabinete do Ministro dos Negócios Estrangeiros

Homens do fraque batem à porta

Para o Novobanco, a viver por esta altura dias mais tranquilos depois de ter concluído o processo de reestruturação e numa nova fase de lucros, (à boleia da subida das taxas de juro) que o deixa mais perto de um IPO, a decisão do tribunal pouco ou nada mudou em relação ao seu objetivo inicial de cortar com as relações comerciais com a Venezuela.

Desde que, em 2019, tomou a decisão de fechar as dezenas de contas das empresas públicas venezuelanas, o banco reconhecia ser o credor daqueles fundos, só não sabia a quem entregá-los. Passou a partir de agora a saber.

Mas vinha aí outro problema. Cinco anos depois, uma boa parte deste dinheiro – cerca de 900 milhões de euros – já tinha saído dos seus cofres ao abrigo da medida de consignação em depósito implementada em 2021: 350 milhões de euros rumaram à conta do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça (IGFEJ) junto do IGCP e mais de 600 milhões de dólares foram transferidos para a Caixa Geral de Depósitos (CGD).

Quando o Novobanco pediu o dinheiro de volta ao IGCP e à Caixa, em setembro do ano passado, os “cobradores do fraque” imediatamente apareceram com notas de cobrança e ordens de execução em nome da Conocophillips, da Owens Illinois, da Gold Reserve e outros lesados, alarmados com a possibilidade de verem o dinheiro fugir para a Venezuela.

Nos últimos anos, enquanto Caracas tentava libertar os fundos presos em Portugal, o dinheiro acabou por atrair a atenção (indesejada para Maduro) de muitos investidores que vieram a Lisboa para ajustar contas com a Venezuela por causa de disputas antigas. Trouxeram na bagagem um cheque chorudo para cobrar: mais de 13 mil milhões de euros.

O primeiro a bater à porta do tribunal foi o Banco San Juan Internacional (BJSI), um banco com sede em Porto Rico e a quem o regime venezuelano fica a dever 100 milhões de euros.

Em abril de 2022 e março de 2023, a instituição porto-riquenha mandou arrestar saldos de cerca de 130 milhões de euros das empresas Petrocedeño, Petropiar e Commerchamp e que tinham sido transferidos para a Caixa.

Agora queria travar a saída do dinheiro do banco público. A 6 de setembro de 2023, enviou um requerimento ao tribunal nesse sentido, avisando que: “Sob pena de incorrer em responsabilidade civil, a CGD não pode devolver ao Novobanco os saldos que tenham sido onerados durante a sua consignação junto da CGD”. Para os advogados da Sérvulo, contratados pelo BSJI para cobrar a dívida, tão pouco o tribunal tinha qualquer palavra a dizer sobre os arrestos.

Sob pena de incorrer em responsabilidade civil, a CGD não pode devolver ao Novobanco os saldos que tenham sido onerados durante a sua consignação junto da CGD.

BSJI

Dois dias depois, apresentou-se a Gold Reserve, que reclama uma indemnização de 970 milhões de euros à Venezuela. A mineira canadiana, por intermédio da Morais Leitão, alertou o tribunal para a necessidade de “salvaguardar que o arresto em nada seja afetado” caso aceitasse o reenvio dos fundos venezuelanos do IGCP e CGD para o Novobanco.

A Conocophillips e os fundos Red Tree Investments e Contrarian apareceram depois. No caso da petrolífera americana, que reclama uma indemnização superior a dez mil milhões de euros ao regime venezuelano, enviou uma carta – através da Vieira de Almeida – ao IGFEJ a 26 de setembro para frisar que as penhoras se mantinham válidas “independentemente do que vier a ser decidido” em relação aos fundos venezuelanos.

Passados três dias, no dia 29, o tribunal aceitou o pedido de arresto da Owens-Illinois relativamente aos saldos da PDVSA (392 milhões de dólares e 135 milhões de euros), Bandes (187 milhões de euros), Petrocedeño (448 milhões de dólares e 43,5 milhões de euros).

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Novobanco “desespera” com IGFEJ

Um despacho de 24 de outubro do tribunal ajudou a descansar os credores:

Atuando o Novobanco na qualidade de fiel depositário das quantias que anteriormente consignou no âmbito dos presentes autos, tal significa que deverá, sob pena de ser responsabilizado do ponto de vista civil, atender e acautelar as penhoras e arrestos efetuados à ordem dos referidos processos.”

Aparentemente, a posição da juíza deixou tudo em pratos limpos em relação aos arrestos. Tanto que, pouco tempo depois de a reversão parcial da consignação em depósito ter transitado em julgado no final de novembro, a Caixa informou o tribunal que iria proceder à devolução dos 600 milhões de dólares ao Novobanco nos primeiros dias de 2024, incluindo “informação detalhada sobre todos os ónus existentes sobre os valores transferidos”.

E assim foi: logo a 2 de janeiro, o banco público fez regressar 448,7 milhões de dólares da Petrocedeño, 154,9 milhões de dólares da Petropiar e 121,9 mil dólares da Petromonagas para as contas do Novobanco.

Ainda assim, o esclarecimento do tribunal não foi suficientemente para afastar as dúvidas que se levantaram no IGFEJ em relação aos fundos em euros guardados no IGCP dada a existência de arrestos sobre esses saldos. A 17 de janeiro este instituto enviou uma carta à juíza avisando que não podia mexer no dinheiro. Se o devolvesse ao Novobanco poderia “incorrer em graves responsabilidade financeiras”. Posição que deixou o banco desesperado.

No requerimento enviado ao tribunal a 8 de fevereiro, o Novobanco queixou-se do comportamento do IGFEJ: três meses depois de reversão parcial dos fundos, este instituto continuava a reter “ilicitamente o valor de que é mero depositário”. Mais: encontrava-se “numa situação de clara e evidente mora no cumprimento de obrigações pecuniárias, com as possíveis consequências daí resultantes”.

À data em que este artigo foi publicado o dinheiro permanecia no IGCP, mas a situação deverá ser ultrapassada. Em resposta ao IGJEF, o tribunal disse “não compreender os receios” que levantou e, se dúvidas ainda existissem, confirmou que o Novobanco passou a “desempenhar as funções de fiel depositário” dos fundos venezuelanos desde que a reversão parcial da consignação transitou em julgado.

EPA/Rayner Pena R.

 

Para onde vai o dinheiro?

Cinco anos depois de o Novobanco ter decidido cortar com as relações históricas com a Venezuela, a pergunta mantém-se: para onde vão os 1,4 mil milhões de euros que 18 empresas públicas venezuelanas guardam em Portugal?

Em 2019, o dinheiro estava a ser disputado pelas fações de Nicolás Maduro e de Juan Guaidó. Entretanto, Guaidó saiu de cena, enquanto Maduro se prepara para ser reeleito Presidente da Venezuela nas eleições que têm lugar no dia 28 de julho. Aos 61 anos, avançará para o terceiro mandato (até 2031), mas dificilmente verá um cêntimo dos fundos que continuam retidos em Portugal, de acordo com as fontes ouvidas pelo ECO.

A totalidade dos saldos encontra-se arrestada pelos credores. ConocoPhillips, Owens-Illinois, Gold Reserve, Contrarian, Red Tree Investments, Banco San Juan Internacional e Brumby Shipholdings sabem que apenas 10% do montante que reclamam é que serão satisfeitos. A luta pelo dinheiro venezuelano agora é deles.

Quem chegou primeiro a Lisboa com a ação de arresto tem vantagem sobre os outros, por via da figura jurídica “prioridade de arresto”. Mas nestas histórias há sempre um mas: até hoje as autoridades portuguesas ainda não conseguiram citar os responsáveis venezuelanos. Enquanto Caracas não for citada, o dinheiro permanecerá congelado no Novobanco.

  • Este artigo é o último de uma série de cinco episódios da “Guerra pelos milhões da Venezuela” e que conta os bastidores, disputas, reviravoltas e intrigas em torno dos fundos de mais de 1,4 mil milhões de euros que as empresas públicas venezuelanas guardam no Novobanco.

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