Do estado a que se deixou chegar a justiça

  • Alexandra Bordalo
  • 18 Março 2024

O colapso está à vista. A academia pode ser bem-intencionada mas ignora a realidade e não tem força politica interna para exercer o ministério em conformidade.

Quem tomou contacto com a justiça nos anos 90, nomeadamente aqueles que como eu iniciaram o estágio na Ordem dos Advogados em 1995, conhece bem o longo tempo de espera.

Chegavam as férias judiciais e dias depois do 15 de Julho fazia a ronda da consulta dos processos. Subia ao 8º andar do Palácio da Justiça de Lisboa e ía descendo, indagando do estado dos processos, esperavam-se 2 a 3 anos por um saneador e outro tanto por sentença. A forma de saber notícias era passar no tribunal, consultar o processo e perceber quanto tempo mais haveria que esperar. Com o tempo as coisas alteraram-se. Pese embora não chegássemos a uma justiça célere, os tempos de espera diminuíram profundamente.

Os Advogados foram tendo cada vez mais funções e responsabilidades, nomeadamente de alívio das secretarias, passando a termos de nos notificar uns aos outros…

A utilização imposta do Citius foi uma absoluta revolução na justiça. Requerer, apresentar acção, contestar, recorrer, tudo através da plataforma. Deixar as maratonas junto ao fax ou as idas aos CTT do Aeroporto onde se reencontravam advogados e se faziam amizades…Poder emitir uma guia para pagamento de taxa de justiça, submeter peça processual, notificar os demais advogados intervenientes, consultar os autos, tornou-se uma tarefa muitíssimo mais simplificada e imediata, na secretária e no computador de cada um.

Aliás, o crash do Citius de 2014 bem demonstrou como o sistema funcionava bem até então e como se tornou absolutamente essencial para o funcionamento da justiça e dos tribunais, sem prejuízo da necessidade de melhoria continua e das questões de segurança a implementar.

Assisti por duas vezes à cerimónia oficial da abertura do ano judicial. Foi com muita incredulidade que num primeiro discurso ouvi dizer que se tinha de trabalhar para o digital e a formação para o digital!

Pois há anos que a Justiça trabalha e usa o digital. O que o Ministério da Justiça tem de fazer é garantir a substituição de equipamentos obsoletos e dotar os tribunais da estrutura necessária.

Por fazer parte de um Conselho Consultivo de Comarca, descobri que só na sede da Comarca faltam 70 telefones! Isto quando a Representante dos Juízes falava da necessidade de dotar as salas de audiências de telefones.

Pois, sempre que é necessário contactar outro tribunal, nomeadamente para fazer a ligação da videoconferência, a sessão interrompe, o funcionário desloca-se à Secção, tendo, não raras vezes, de atravessar átrios, subir e descer escadas, perfazendo os 10 mil passos ainda de manhã! Entretanto, tudo somado a audiência esteve parada 1 hora ou mais.

No segundo discurso ouvi anunciar a abertura de um concurso para 200 oficiais de justiça. Concurso nacional, mas os tais 200 podiam integrar-se numa só comarca! Pois entre os que faltam no quadro existente, os que deviam estar no quadro reformulado e aqueles que estão de saída…

Há dias fiquei a saber que há quem tenha abandonado a carreira e ido trabalhar para um supermercado à porta de casa.

Porquê? Bem, deixar de ter de pagar quarto, de passar longas temporadas sem ver a família (pois se de Lisboa a Bragança já não são 9 horas de caminho, 7 estão garantidas), de viver com um rendimento baixíssimo, com o quase nada que sobra. Enquanto isso, no supermercado, passou a estar perto de casa e da família, ah e quando tem de trabalhar mais, recebe trabalho suplementar… enquanto oficial de justiça não! A Justiça hoje está em queda livre.

O edificado tem problemas absolutamente dramáticos, de fungos e bolores, a insectos e roedores, uma ausência de condições de salubridade que numa empresa privada redundaria na aplicação de coimas.

Os processos não mexem porque não há funcionários que cumpram o expediente.

Há processos parados por largos meses, a aguardar que seja aberta conclusão, isto é, que o mesmo seja presente ao juiz para despacho. Nomeadamente despacho para admissão de recurso. Imagine-se quando tempo levará a chegar a decisão final.

Há juízos com funcionário único. Há despachos que quando são notificados já não têm utilidade. Ou foram ultrapassados porque leis se publicaram e entraram em vigor.

Despacho de Fevereiro notificado em Outubro!!! A Lei da Amnistia que entrou em vigor a 01.09.2023 arrumou isto! Logo, o advogado requer, volta a ir ao MP e ao Juiz para nova decisão. Tudo porque não houve meios para cumprir despachos em tempo útil.

Se a Justiça Administrativa está há largos anos afundada, a Judicial para lá caminha, e, só aqui, de forma célere.

Num momento em que se congemina quem vai ser Ministro de quê e quem vai ocupar o lugar A e B, só posso dizer que depois de uma campanha eleitoral sem notas e debates sobre justiça, é imperioso ponderar e cuidar da Justiça.

O colapso está à vista. A academia pode ser bem-intencionada mas ignora a realidade e não tem força politica interna para exercer o ministério em conformidade. Numa sociedade sem justiça adequada, célere e capaz não se cumpre o Estado Social de Direito. Não é a diminuir as garantias dos intervenientes, nem a arrasar com a Advocacia que tal desiderato se alcança.

Aguardemos.

  • Alexandra Bordalo
  • Advogada na BGRR Advogados

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