Pouco ou nada se sabe sobre os erros judiciais em Portugal
Desconhece-se o número exato de erros judiciais que possam ser quantificados de forma precisa em Portugal. Na justiça somos opacos. Pouco ou nada se sabe, e muitos erros podem passar despercebidos.
O Tribunal Supremo de Roma (Corte di Cassazione) – a última instância de recurso jurisdicional, como o nosso Supremo Tribunal de Justiça – absolveu um homem que passou quase 33 anos na prisão de Uta, onde cumpria pena perpétua por um triplo homicídio cometido em 1991, depois de as acusações contra ele terem sido retiradas por não haver cometido os crimes de sangue.
Trinta e três anos atrás das grades, doze mil dias de privação, de sofrimento e de abandono causados por um erro judicial cometido por polícias que investigaram, procuradores que acusaram e juízes que sentenciaram…
Tudo aconteceu em janeiro de 1991 quando um homem, conduzindo uma scooter numa estrada da comuna de Sinnai, em Cagliari, disparou contra vários agricultores, tendo matado três e ferido um outro. A única testemunha ocular da ocorrência, embora tenha garantido não haver reconhecido o agressor, já que ele usava uma meia a cobrir a cabeça e o rosto, não conseguiu persuadir o tribunal da inocência de Beniamino Zuncheddu, o qual sempre negou, firmemente, o crime.
Em Itália, só nos últimos 32 anos, as vítimas de erros judiciais e de detenções ou prisões injustas totalizaram qualquer coisa na ordem das 30.778 pessoas. Todos os dias, naquele país, três pessoas inocentes acabam na prisão, uma a cada oito horas. E para compensar as vítimas, o Estado, entretanto, já gastou 933 milhões de euros em indemnizações, o que perfaz 55 euros por minuto.
Lamentavelmente, desconhece-se o número exato de erros judiciais que possam ser quantificados de forma precisa em Portugal. Na justiça somos opacos. Pouco ou nada se sabe, e muitos erros podem passar despercebidos ou não serem oficialmente registados.
No processo penal, os erros judiciais são identificados por meio de recursos de revisões que nascem quase sempre de investigações independentes. No entanto, nem todos esses erros são descobertos ou corrigidos, seja pela extrema dificuldade de provar através do recurso de revisão, que restringe à verificação cumulativa de dois pressupostos: a descoberta de novos factos ou meios de prova; e que tais novos factos ou meios de prova suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação. Precise-se que os factos ou meios de prova devem ser novos, isto é, devem ir no sentido de não terem sido apresentados e apreciados no processo que conduziu à condenação.
Esta dupla verificação torna impossível a abertura de processos em que o erro provém de fatores que influenciaram o julgador. Como assim? Por mero exemplo, saber-se anos mais tarde que o julgador não aceita a igualdade de género, ou que é xenófobo, ou perfilha ideias radicais quanto a cores de pele, orientação sexual e território de origem. Ou seja, preocupações sérias em qualquer sistema legal, que convém ver identificadas e corrigidas para garantir a justiça e a integridade do sistema judicial. Não se pode proteger juízes, procuradores ou agentes de polícia que desrespeitam direitos e garantias constitucionais.
O nosso ordenamento jurídico precisa de se modernizar, de respeitar os direitos humanos e de minorar o erro judicial baseado numa interpretação excessiva do julgador.
Um dos obstáculos encontramo-lo no artigo 127.º do Código do Processo Penal, que permite «o princípio da livre apreciação da prova» – um princípio atinente à prova, o qual determina que esta é apreciada não de acordo com regras legais pré-estabelecidas, mas, sim, segundo a livre convicção do juiz.
Significa isto que, na ausência de critérios legais que predeterminem o valor da prova, o juiz pode fazer um uso da prova de forma livre segundo o seu critério pessoal, condenando ou absolvendo. Explicando melhor: na ausência, por exemplo, de prova documental ou pericial, a prova trazida ao processo pela investigação é escassa ou insuficiente para condenar, e, mesmo assim, o juiz, pela sua convicção pessoal ou por pormenores que ultrapassam o domínio jurídico, condena.
Os erros judiciais não provêm apenas de interpretações erradas do julgador, as quais podem ser suscetíveis de originar condenações injustas. Provêm, igualmente, de erros de identificação (testemunhas oculares que erram na identificação de suspeitos), de provas falsas (testemunhos produzidos para credibilizar condenações injustas), de má conduta na investigação policial (atitude derivada de linhas de investigação falsas, detenções ilegais, interrogatórios ilegais), de preconceitos involuntários (ideias baseadas em raça, género, classe social ou outras características pessoais), de confissões forçadas (declarações obtidas sob coação, ameaça, tortura ou obtenção de vantagem indevida), e de defesa inadequada (falta de recursos financeiros do acusado ou incompetência dos seus defensores).
Vejamos. O processo penal assenta em duas preocupações principais: 1) que os culpados sejam condenados e que apenas os culpados sejam condenados. Para tal, a presunção de inocência funciona como um direito protegido pela Constituição (artigo 32.º) e como princípio orientador do sistema que exige que a culpa seja provada para além de qualquer dúvida razoável, exigindo provas de acusação válidas que respeitem os direitos fundamentais; e 2) que existe um certo consenso de que, em caso de dúvida, seja preferível que um culpado seja libertado do que um inocente seja condenado.
São muitos os casos em que, por falta de provas conclusivas, as penas dos condenados acabaram por ser reduzidas, ou foram mesmo absolvidos, apesar de o juiz ou o tribunal terem sido claros sobre a sua responsabilidade nos factos que estavam a ser julgados.
O direito fundamental em matéria de apreciação da prova consiste, apenas, que se decida sempre a favor do arguido. Se assim não for continuar-se-á incessantemente a caminhar no sentido do erro judicial e no trilho oposto ao dos direitos humanos.
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